O Maior Amor escrita por Sâmara Blanchett


Capítulo 50
Capítulo 50


Notas iniciais do capítulo

Obs: Capítulo narrado em terceira pessoa.



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O silêncio reinava nos corredores do palácio. A noite chegara e com ela a certeza de que quando nascesse o sol já seria realidade o maior luto de toda a história do Egito. Tantas foram as oportunidades dadas ao faraó para mudar o rumo dos acontecimentos, mas já era tarde demais. Em seus aposentos, a princesa Henutmire observava o doce sono de sua sobrinha. Todavia, seus pensamentos estavam distantes dali. Pensava em Alon, que ao cair da noite havia sido levado por Leila para a vila. Sorria por saber que o rapaz estava em segurança e sua vida a salvo da praga. Pensava também em Leila, na última imagem que tivera de sua grande amiga e no último abraço que lhe dera. Henutmire não desejava dizer adeus a ninguém, mas as circunstâncias a obrigavam a isso. Mas sobretudo, pensava em Hur. Conhecia o marido bem o suficiente para ter a certeza de que ele estava esperando por Uri, em uma derradeira esperança de que seu primogênito chegasse a vila. Mas, Uri se deixara levar pelas ofertas do rei. Quando descobriu que o joalheiro havia saído do palácio para se encontrar com sua família, o soberano mandou chamá-lo e prometeu que permitiria o retorno de seu pai e seu filho ao palácio e lhes devolveria os títulos de nobres. Mas para isso, Uri deveria permanecer no palácio e não abandonar o rei. Diante disso, o primogênito de Hur se deixou convencer e, confiante de que fazia a coisa certa, retornou ao seu quarto e logo pegou no sono.

 

Na varanda do quarto de sua mãe, enquanto boa parte do palácio dormia, Hadany observava a cidade. Sabia que em pouco tempo o anjo destruidor passaria e levaria consigo a vida de todos os primogênitos do Egito. Se surpreendeu ao perceber que seus pensamentos se voltaram para Chibale. De longe, a princesa viu quando Gahiji deixou o palácio por amor a seu filho, levando-o para a vila. Mas Hadany não se despediu de seu amigo de infância, mesmo que seu coração gritasse por um último abraço.

 

—Vai ficar aqui a noite toda? — Tany perguntou ao se aproximar de sua irmã.

 

—Não tenho sono. — Respondeu.

 

—Eu também não. — Tany então olhou para toda a extensão da cidade. — Mas, talvez seja melhor não ver o que vai acontecer.

 

—Uri ainda está no palácio, não está? — Ingadou Hadany, com profunda tristeza.

 

—Sim.

 

—O orgulho de nosso irmão será a sua morte. — Hadany disse, sem ter ideia do quanto suas palavras estavam certas.

 

Na vila, Hur estava inquieto. Olhava para a porta a todo instante, esperando que Uri entrasse por ela e assim colocasse fim a sua angústia. Mas, quanto mais ele esperava que tal coisa acontecesse, mais certeza tinha de que estava por perder seu primogênito. Bezalel também esperava aflito pela chegada de seu pai, confiante de que ele manteria sua palavra em ir para a vila.

 

—Beba, meu sogro. — Leila lhe ofereceu um chá. — Irá ajudá-lo a se acalmar.

 

—Obrigado, Leila. — Agradeceu Hur, que logo tomou um pouco da bebida. Em seguida, seu olhar recaiu sobre Alon, que permanecia em silêncio a observar a movimentação da casa de Abigail. — Henutmire teve muito trabalho em convencê-lo a vir?

 

—Não. — Ela respondeu. — Desde o início, Alon entendeu que a princesa queria salvá-lo e não hesitou em concordar com seu pedido para que viesse para a vila. — Leila passou a olhar o rapaz. — Ele vai deixar toda uma vida para trás e irá conosco para Canaã.

 

—Uri também irá. — Hur afirmou, esperançoso. — Ele garantiu a mim e a Bezalel que viria.

 

E enquanto a família de Uri aguardava sua chegada, o soberano do Egito velava pelo sono de sua esposa e de seu filho. Olhava para seu primogênito como se aquela fosse a última visão que teria dele. Tantas noites se passaram desde que Moisés viera a sua presença anunciar a morte de Amenhotep e nada aconteceu. O faraó acreditava que tal praga já não mais viria sobre o reino. Havia cumprido seu papel de pai fazendo a guarda pessoal do príncipe desde aquele dia, ao menos assim pensava o rei. Ramsés então depositou um beijo no rosto de seu filho e se dirigiu para longe da cama, ficando a observar o céu anoitecido através da janela. E foi nesse momento que Simut chegou a casa de Moisés, levando consigo Karoma e o pequeno Pepy. Ikeni havia sido preso, pois o rei descobrira sua mentira sobre os os cordeiros, mas pediu ao sacerdote que salvasse a vida de seu filho levando-o para a vila. Estes foram os últimos egípcios que Moisés abrigou em sua casa, antes que a porta se fechasse e a celebração da Páscoa tivesse início.

 

Em todas as casas da vila, os hebreus serviam-se da carne do cordeiro que fora assado no fogo, acompanhado de pães asmos e ervas amargas, segundo Deus instruira a Moisés. E foi neste momento que o Senhor dos Exércitos se fez juízo sobre a terra do Egito. O anjo destruidor foi enviado e em cada casa cuja o sangue do cordeiro não estava como marca nas portas, a vida do primeiro filho foi tirada. E a cada primogênito morto, uma mãe e um pai exalavam gritos de dor. Por onde o anjo passava ali já não havia luz, não havia vida. Mas, conforme o Senhor dissera, os filhos de Israel foram poupados da praga mortal que Ele enviara sobre o Egito.

 

O anjo destruidor entrou no palácio e dali também levou todo o primôgito. Uri, que dormia tranquilamente, acordou de súbito mas sequer teve tempo de se dar conta de que estava acordado. Tudo o que viu foi um turvo vulto branco passar diante de seus olhos e lhe dar chance apenas para um último suspiro. Seus olhos sequer se fecharam, mas naquele momento deixaram de ter o brilho da vida. E em seus aposentos, abraçada a suas filhas, Henutmire chorava silenciosamente. Seu coração pesava, pois sabia que a vida do primogênito de seu marido havia sido levada e sentia-se a pior das mulheres por sua incapacidade de protegê-lo.

 

—Eu salvei o primogênito de Disebek e Anat, pessoas que tanto me fizeram mal. — Disse a princesa de forma que apenas ela mesma podia escutar. — Mas, não consegui salvar o primogênito do grande amor da minha vida.

 

O faraó então assustou-se quando um vulto branco passou por ele. De imediato entendeu do que se tratava, mas sua prepotência fez com que acreditasse que ainda estava no controle da situação.

 

—Eu sou o rei do Egito, o Hórus vivo na Terra! — Esbravejava Ramsés. — Ordeno que saiam do meu palácio! Vão para bem longe daqui, para além das fronteiras do Egito! — Gritava o rei. — Fora daqui! Fora!

 

Mas, de nada adiantou a fúria momentânea do rei. Seus gritos apenas fizeram com que a rainha e o príncipe despertassem de seu sono e percebessem o que estava acontecendo. Amenhotep sentou-se na cama e com olhos assustados contemplava sua mãe, pedindo dela alguma explicação ou espécie de proteção. O jovem príncipe assustou-se ainda mais ou ver vultos brancos atravessarem as cortinas e lhe rondarem. Desesperada, Nefertari tentava fazer com que nenhum deles se aproximasse de seu filho, mas todo o seu esforço era em vão. Então, o rei e a rainha viram com seus próprios olhos o anjo destruidor passar pelo príncipe. Uma cena que parecia inacreditável, mas que era tão real quanto dolorosa. Amenhotep caiu sem vida nos braços de sua mãe. A palavra do Senhor se cumprira mais uma vez.

 

—NÃO! — Gritou a rainha com toda a força da sua dor. — MEU FILHO NÃO! — Ela balançava o corpo sem vida de seu filho na esperança de que ele abrisse seus olhos. — Meu filho... Meu filho não!

 

O rei parecia paralisado diante dos gritos e do choro de sua esposa, mas logo saiu de seu transe e correu até o filho. Tomou-o em seus braços, colocou-o junto a seu peito e chorou ao sentir que seu coração já não batia mais. Dor como aquela Ramsés jamais sentira e jamais voltaria a sentir. Sentia-se frustrado como nunca antes estivera. De nada adiantou sua espada, as noites que ficou acordado fazendo pessoalmente a guarda do príncipe. Um pai ficara sem seu primeiro filho, uma mãe fora privada da primeira vida que gerou em seu ventre e o trono... O trono ficara sem seu herdeiro. Naquela noite, o Egito enfrentou a maior perda de toda a sua história.

 

Era o fim, tudo acabara ali. Estava feito e nada mais restava a não ser a dor da ausência. Mas, os gritos desesperados que vinham das ruas começaram a atormentar a princesa do Egito. Eram intensos demais e deixavam claro a dor de todos os que haviam perdido seus primogênitos. Henutmire fez por onde se desvencilhar do abraço de suas filhas e tapar seus ouvidos, mas aquele som era impossível de ser silenciado. Era como um clamor de choro por misericórdia.

 

—Eu não aguento mais isso! — Disse a princesa. — Parece que sinto a dor de cada um deles.

 

—Se acalme, minha mãe. — Pediu Tany, mas ela própria não estava calma.

 

Todavia, pedir que uma pessoa se acalme é a pior maneira de acalmá-la. E foi assim que a dor, até ali em silêncio, de Hadany se fez notar. O clamor das ruas da cidade deixava a jovem princesa desnorteada e assim ela de súbito deixou os aposentos de sua mãe.

 

—Hadany! — Henutmire chamou pela filha.

 

Mas, Hadany prosseguiu a passos lentos pelo corredor, enquanto lágrimas rolavam por seu rosto. Caminhava em direção ao quarto de Uri e sabia que encontraria morto o seu irmão mais velho. Aquilo a destruía de dentro para fora, era capaz de minar as poucas forças que ainda tinha.

 

Na vila, todos se deram conta de que a palavra de Deus se cumprira, os gritos e o grandioso choro que ouviam deixavam mais do que claro que o anjo destruidor passara e levara consigo os primogênitos. Leila chorava compulsiva e desesperadamente, havia perdido seu marido, o homem que amava apesar de tudo. Gahiji tentava consolar a amiga, mas seus braços fortes que naquele momento a sustentavam não eram capazes de diminuir sua dor. No entanto, ela não era a única ali a sofrer pela morte de Uri. Hur, juntamente com seu neto, havia se prostrado em terra e rasgado suas vestes em sinal de luto. Seu primogênito já não mais estava entre eles, seu coração já não batia e seus olhos não transmitiam o brilho da vida. Ele perdeu seu primeiro filho, o seu menino, aquele que pela primeira vez o chamou de papai. Uma dor que nunca antes sentira tomou o coração de Hur. Uma parte sua havia deixado de existir, ele nunca mais seria inteiro novamente.

 

—É horrível vê-los assim e não poder fazer nada. — Disse Alon diante da triste cena que presenciava.

 

—A vida é feita de escolhas, Alon. — Falou Abigail, que estava ao lado do rapaz. — Uri fez a sua escolha sem pensar no que aconteceria depois ou no sofrimento de sua família.

 

—Me sinto culpado por estar aqui, vivo, enquanto Uri está sem vida em algum lugar do palácio. — Alon baixou seu olhar, triste.

 

—O mesmo que a princesa Henutmire fez por você, fez ainda mais por Uri. — Afirmou Abigail ao colocar suas mãos nos ombros do rapaz e olhá-lo nos olhos. — Não sinta culpa por nada. Você escolheu se salvar, mas não podia fazer a mesma escolha por Uri ou por quem quer que seja.

 

E enquanto o soberano se dirigia para fora de seu palácio e o terrível som que ouvia o deixava ainda mais transtornado, Hadany chegou ao aposento de Uri. O ambiente tão pouco iluminado não a impediu de ver o corpo de seu irmão sobre a cama. Aproximou-se devagar, como se temesse o menor ruído que seus passos pudessem fazer. Os olhos de Uri ainda abertos pareciam olhá-la, mas de uma forma que a jovem jamais viu. Guiou sua mão esquerda até o rosto do irmão e delicadamente fechou seus olhos. Foi então que Hadany caiu em prantos sobre o corpo sem vida de Uri.

 

—Por que, Uri? Por que? — Perguntava repetidamente, mas nenhuma resposta lhe era dada. Havia apenas o silêncio. — Acorde, meu irmão! Por favor, acorde! — Ela pedia ao sacudir o corpo do irmão.

 

Foi neste momento que Henutmire e Tany, que haviam deixado os aposentos para ir atrás de Hadany, chegaram ao local. Tany desesperou-se ao ver o irmão morto e a única atitude que teve foi correr até a cama e ajoelhar-se ao lado dela, enquanto segurava uma das mãos de Uri e chorava com todas as forças da dor que naquele momento sentia. E ali estavam duas irmãs chorando a perda do irmão mais velho, o primogênito que tanto lhes ensinara. Em suas mentes se passaram lembranças de momentos de sua infância que haviam vivido com Uri. Cada travessura na oficina, cada passeio no rio Nilo, cada sorriso que ele dera a elas... Tais lembranças só lhes traziam mais lágrimas.

 

Por sua vez, Henutmire observava em silêncio, mas suas lágrimas falavam por ela. Sequer tinha forças para sair de onde estava e oferecer algum consolo a suas filhas. Então, era melhor deixá-las chorar sua dor. Mas, em seu coração, a princesa culpava-se pela morte de seu enteado. E se tivesse insistido mais vezes? E se tivesse tentado convencê-lo de outras formas? E se ela mesma o tivesse levado para a vila, mesmo contra a sua vontade? E se tivesse usado de sua autoridade como princesa do Egito para salvar a vida de Uri? Mas de nada adiantava se torturar com possibilidades passadas. A realidade, por mais dolorosa que fosse, estava bem diante de seus olhos azuis.

 

—Mayra? — Henutmire se surpreendeu ao ver a sobrinha a seu lado, já que a menina dormia por efeito de uma fórmula que ela e Paser lhe deram sem que soubesse.

 

—Não é sua culpa, tia. — Disse a menina com toda a sua inocência de criança, o que comoveu Henutmire. — A senhora fez tudo o que podia, mas não podia escolher por Uri. — Mayra então colocou sua mão direita sobre o ventre de sua tia. — Ele vai curar toda a dor que sentem agora.

 

Então, Henutmire se deu conta do verdadeiro propósito da criança que trazia em seu ventre: transformar lágrimas em sorrisos. Ali, naquele momento, ela entendeu que o Senhor lhe dera aquele filho para ser o consolo e a força que seu marido precisaria para superar a ausência de Uri. Para ser o consolo e os novos sorrisos de suas filhas daquele dia em diante, para superarem a perda do irmão.

 

Os gritos pareciam roubar a sanidade do soberano do Egito, que olhava para todos os lados sem conseguir expressar reação alguma. A dor de perder seu filho, uma parte de si próprio que havia no mundo, deixava o faraó estagnado. Todavia, não demorou muito para que soubesse o que deveria fazer.

 

—Vá chamar Moisés e Arão. — Ordenou a Bakenmut.

 

—Não será preciso, senhor. — Disse o general ao desviar seu olhar para o lado. — Eles estão aqui.

 

Ramsés então caminhou lentamente ao encontro de Moisés e Arão, até ficar frente a frente com aquele que cresceu como seu irmão. Olhou firmemente em seus olhos e respirou fundo antes de começar a falar.

 

—Moisés... — Pronunciou o rei em voz branda e tristonha. — Se aparta do meu povo e siga com o seu para o deserto. Vá servir ao seu deus como tem me pedido. Levem seus rebanhos e tudo mais que lhes pertence. — Os olhos do rei estava marejados por lágrimas que ele insistia em conter. — Como último pedido, peço que me abençõe.

 

—Que Deus o abençõe, Ramsés. — Disse Moisés, com o mesmo tom de voz melancólico do rei. — Eu nunca desejei o seu mal. E saiba que eu sofro com a sua dor, com a sua perda e as perdas de todo o Egito.

 

Os dois ficaram a se olhar por alguns instantes, enquanto mais lágrimas tomavam os olhos de Ramsés. Os gritos e choros continuavam, a dor de sua alma aumentava a cada segundo e seu coração... Seu coração parecia ter parado de bater junto com o de Amenhotep. Suspirou, como que para encontrar a força que já julgava inexistente dentro de si.

 

—Adeus, Moisés. — Disse o rei, como se pronunciasse uma irrevogável sentença.

 

—Adeus. — Falou Moisés, sentindo seu coração pesar por saber que se despedia de um irmão que tanto amava.

 

Então, o rei entrou em seu palácio e dirigiu-se até seus aposentos reais. Encontrou Nefertari abraçada ao filho morto, mas ela já não chorava. A rainha estava em um silêncio mortal e com seu olhar perdido em um escuro vazio, como se encontrava seu próprio coração. Ele se aproximou com cautela, mas seus passos não trouxeram a atenção de sua esposa para si.

 

—Deixei os hebreus partirem. — Falou Ramsés.

 

—Tarde demais. — Foi tudo o que disse a rainha.


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