Morte aos Lobos escrita por Beatriz Rozeno


Capítulo 8
Capítulo 7 - Fotografias


Notas iniciais do capítulo

O capítulo ta grandinho, mas vai valer a pena.
Espero que gostem e boa leitura!



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Quero dormir, mas toda vez que fecho os olhos, o garoto que vi mais cedo aparece para mim. Suas vísceras são arrancadas na minha frente, toda vez, e não quero que essa cena se repita. Se eu me esforçasse, talvez conseguisse pegar no sono, mas sei que em algum momento da noite teria pesadelos e acordaria Thiago e Caroline. Não é de agora que venho pensando neles. São ótimas pessoas, e estou feliz, na medida do possível, com sua companhia. Mas eu acabei me apegando, e agora tenho um medo real de perdê-los. Eu deveria mesmo ter deixado eles virem comigo?

Tiramos o dia para vasculhar a cidade; indo atrás de roupas, pilhas e, quem sabe, um sapato “novo”. Eu só tenho um par de tênis e ele está gasto, seria bom trocar, se eu encontrasse algum. A cidade parece totalmente saqueada, mas se vasculharmos cada canto das lojas, encontramos algo útil. Lembro do que vi no shopping em que Julie e os outros estavam, o local não havia sido invadido antes de eles fazerem isso. Provavelmente encontraram o prédio livre de pragas, mas cheio de suprimentos. Mas ainda assim Bob estava cheio de caixas naquele dia, coisas que não havia lá dentro. Eles não têm tudo.

Não vemos nenhum bicho pelas ruas durante todo o dia, nem mesmo a carcaça do garoto estava lá. Eles o carregaram para outro lugar, talvez à floresta. Ou então o devoraram até os ossos. Fico arrepiada de pensar que este foi o destino de meu pai.

Chegamos perto do limite leste da floresta, onde os prédios estão sendo tomados pela vegetação e o mofo. Entramos em um que está perto dessa situação, mas ainda estável. Ele é muito alto, daria pra ver muita coisa lá de cima.

— Será que daqui conseguimos ver a situação da tal cidade? — pergunta Carol.

— Talvez — responde Thiago pensativo.

— Já está na hora de pararmos pra almoçar — lembro a eles.

Duas pragas nos perturbam no interior do prédio, mas Thiago dá um jeito nelas. É estranho o fato de algumas serem mais fortes que as outras, resistindo às pancadas, correndo mais rápido... Deve ser por que nem todas eram doentes, muitas adquiriram o vírus sem nem mesmo ter um contato direto com um infectado. Isso me leva a pensar no porquê de outros, como nós, não terem sido atingidos pelo vírus. De certa forma, infectou a todos nós.

O prédio era um condomínio, mas nesse muitos apartamentos estão revirados, alguns totalmente vazios. Vamos até o terraço, onde tem uma pequena torre de energia. Vemos uma parte dos prédios da outra cidade, mas é preciso subir na torre para ter uma melhor visão periférica. Eu me ofereço para escalar e saber a verdadeira situação do local, a queda não me mataria, mas deixaria hematomas horríveis, portanto, tomo muito cuidado.

O vento sopra em minha direção, e sinto um cheiro de carne podre muito forte. Já imagino o que irei ver. A cidade está tomada, lotada de pragas. O local está inabitável. O lugar virou ponto de encontro das criaturas, onde se reúnem, saindo vez ou outra para caçar; como os lobos. Os irmãos Jones não ficam nada felizes, como eu.

A direção leste não é mais um caminho que podemos tomar. Ao norte e ao sul só há floresta, quais surpresas nos esperariam por lá? O único jeito é voltar pelo oeste, de onde já viemos. Passar pelo shopping e pela cabana, e retornar à estrada principal por onde estávamos seguindo.

Escolhemos um quarto para passar o restante do dia, nenhum de nós está com ânimo para continuar vagando pelas ruas. É um apartamento da cobertura, com mais cômodos do que os outros que vimos. Vou sozinha em um dos quartos procurar por algum colchão, e acabo em um lindo quarto, todo decorado e pintado de lilás. Era de uma garota, com certeza bem jovem. Tudo está sujo e cheio de poeira, mas ainda assim é bonito. Procuro por algo, não sei bem o quê, talvez algo útil, nas diversas caixinhas da dona do quarto. O que eu queria era me distrair um pouco. Acabo encontrando um bolo de cartas, bem amarrado com uma fitinha azul. Vejo as datas, e todas as cartas foram escritas na época da infecção. Não resisto, e leio algumas das últimas.

“Querida Carrie

Estou com saudades, apesar de ter te visto há dois dias. Cheguei hoje ao quartel, e daqui irei para a batalha. Voltarei de vez em quando, se permanecer vivo, para repor suprimentos e, claro, escrever para você. Às vezes penso que fiz uma besteira em ter me candidatado como um possível soldado. Deveria ter me empanturrado de doces, assim não teriam me chamado. Mas escuto as conversas dos outros rapazes, e alguns dizem que em algum momento o governo só teria a opção de recrutar todos os homens acima de 18, e as moças voluntárias. Tenho medo que descubram sobre esta carta, já que impediram nossa comunicação com a família até que tudo termine. Mas continuarei me arriscando por você. Não tente descobrir como as cartas chegam, é por um meio ilegal e não quero que você se meta em encrencas. Isso tudo tem de acabar logo, quero voltar para ter uma vida ao seu lado.

Com amor,

Jason.”

Pulo algumas cartas, e leio a penúltima do bolo.

“Carrie,

Tudo está errado. As pessoas estão virando monstros, devorando umas às outras. O que mostram nos noticiários é um mísero resumo do que vejo na linha de frente. Estamos desmoronando, muitos soldados viraram aquelas criaturas horríveis e causaram o caos no quartel. Eles dizem para sair da cidade, mas as estradas estão bloqueadas, eu vi tudo. Diga aos seus pais que é mais seguro esperar em casa, guardar suprimentos e trancar as portas. Não vá embora, eu vou fugir da linha de frente depois de amanhã. Um pequeno grupo planejou uma fuga de barco, no meio da noite, sem que sejam notados. Meu caminho até você é longo, mas te alcançarei.

Com amor,

Jason.”

A última carta que Carrie recebeu sela o destino dos dois para sempre.

“Carrie,

Consegui chegar a uma cidade pequena, mas longe da batalha. Aqui as coisas estão calmas, mas igualmente difíceis. Não estou tão longe agora, Carrie. Mas sinto em te dizer que não podemos mais nos ver. Eu fui infectado. Feridas cobrem a minha pele e as dores nas articulações me deixam de cama o dia todo. Fora a febre, que me queima até a alma. Sinto muito, mas se entrar em contato com você, receio que terá o mesmo destino, por conta da transmissão. Soube de um rapaz que passaria por aí, perto de seu endereço, e pedi que entregasse esta carta a você. Espero que ele consiga esse feito, porque quero que você saiba o porquê de eu nunca ter voltado. Quero que saiba também que eu te amo acima de todas as coisas, e que meu último pensamento será o seu lindo rosto, sorrindo para mim.

Com o maior amor que já existiu,

Jason.”

Sinto um nó na garganta. Quantas história foram perdidas no meio dessa bagunça? É algo incalculável. Não tem um dia em que eu não pense em como tudo teria sido diferente se as pessoas não pensassem unicamente no dinheiro, no poder, em ser sempre melhor que os outros, às vezes passando por cima das pessoas. Carrie e Jason, duas almas feitas para ficarem juntas, mas inevitavelmente separadas pelo destino. A dor é substituída pelo sentimento de renovação de esperança. Eu ainda estou aqui, não estou? Isso deve significar alguma coisa, algum propósito. Eu lutarei por eles também, e por todas as pessoas que perderam suas vidas. O significado em estar viva é maior do que eu imaginei; estar respirando é uma dádiva que muitos ainda queriam possuir. Eu tenho essa chance, e não irei desperdiçá-la.

**

Ao me preparar para dar o próximo golpe, piso em falso. Tombo levemente para o lado, e sinto uma pontada forte no tornozelo direito, é o lado que uso para dar chutes altos e fortes. Assim que caio, o rosto de Terry muda completamente, e ele se abaixa para que fique perto de mim. Ele não precisa que eu explique o que aconteceu, me pega no colo e me leva até a enfermaria da academia. Nós dois estamos muito suados por conta do treino de luta, e eu fico escorregando de seus braços de vez em quando. Não posso deixar de rir da situação constrangedora.

A enfermeira cuida do machucado e me leva até o lavatório feminino. Minha amiga Brittany me ajuda no banho e, quando sai, me passa para Terry, que me esperava na frente da academia. Ele me pega no colo, com um sorriso esquisito, e não consigo não perguntar:

— O que foi?

— O que seria da sua vida sem mim? — responde brincando.

Acabo rindo também. Mas, por mais que eu odeie admitir, é verdade. Terry sempre foi meu melhor amigo, desde que éramos crianças. Agora ele tem 14, e eu, 11. Ele já possui músculos notáveis, talvez por que treina desde os 6 anos. Eu luto apenas a alguns meses, e sou extremamente magricela. Queria ser bonita, assim estaria ao seu alcance. E então a pergunta me atinge em cheio. Mas por quê?

Chegamos rápido na minha casa, e lembro que talvez tia Yolanda não goste do que verá.

— Pode me deixar na porta, eu me viro.

— Nada disso. Vou deixar você no seu quarto, e depois converso com sua tia.

Depois que subimos as escadas, percebo que o quarto da minha tia está entreaberto. Ela está chorando, como eu nunca vi antes.

— Acho melhor você ir — digo baixinho.

Ele me deixa na porta e sai em silêncio. Adentro um pouco mais no quarto e a vejo na beirada da cama, segurando algo nos braços. Parece um papel, ou uma foto.

— Sinto tanto a sua falta, minha irmã! Por que você me deixou? Por quê?

Ao me apoiar com o pé direito, emito um gemido de dor.

— Julie!

Ela me vê antes que eu possa fazer qualquer coisa. Joga o que tinha em mãos na última gaveta do armário enquanto enxuga as lágrimas. É onde ela guarda as fotos, onde ela nunca deixa eu pôr as mãos.

— O que você está fazendo? Eu já disse que é feio bisbilhotar!

— Foi sem querer, eu cheguei e quis saber por que estava chorando — respondi.

— Vá para o seu quarto, agora! — diz apontando para o corredor. — Eu vou preparar o jantar, e não quero mais você no meu quarto.

Ela desce as escadas com rapidez e, antes que ela volte, corro para seu quarto, abrindo a gaveta de fotos. A curiosidade é maior que o medo que tenho dela.

A primeira foto que vejo é de uma bela moça, que está ao lado da minha tia. Elas são muito parecidas, mas a moça que não conheço é muito mais bonita. Elas usam lindos vestidos de gala, e fazem pose ao pé da escada. Na parte de trás da fotografia, dois nomes: “Naomi e Yolanda.”

Naomi! É o nome da minha mãe! Essa moça era a minha mãe.

Vasculho as fotos atrás de mais. Encontro uma onde minha mãe está com uma barriga enorme, e um homem de cabelo cor de mel e olhos verdes está ao seu lado. Seus sorrisos quase não cabem em seus rostos maravilhados. Viro a imagem: “Naomi e Albert”. Albert era o nome do meu pai, o homem da foto, tenho certeza. Remexo a gaveta mais uma vez, até que uma foto intrigante chama minha atenção. Dois bebês, ainda no berçário, um de rosa e outro de vermelho. Eles seguram as mãos, mas estão dormindo. Meus olhos saltam ao ler: “Amy e Julie”.

Escuto passos vindos da escada, mas não consigo me mover. Quando tia Yolanda aparece, meus olhos estão cheios de lágrimas.

— Por que não me disse que tenho uma irmã?

Antes que eu possa evitar, ela corre até mim com a mão erguida, desferindo uma tapa estridente no meu rosto.

//

— Julie! Você precisa se apressar, eu já estou terminando!

Bob grita do andar de baixo, e eu acelero o processo. Guardo tudo que acho extremamente necessário na minha mochila. Escuto Terry buzinar do lado de fora da casa. Corro pelo corredor, e paro em frente ao quarto de tia Yolanda. Uma força diferente me faz parar, impedindo que eu continue. Estarei esquecendo algo?

Abro a porta, o quarto está exatamente como ela deixou. Eu só fazia limpezas nele de vez em quando. Minha tia morreu quando eu tinha dezoito anos, desde então moro com meus amigos Terry e Bob, mas nunca fui muito feliz desde que ela morreu. Meus olhos encontram a gaveta onde ela costumava guardar suas lembranças, a maioria fotos. Minhas mãos agem involuntariamente e, antes que eu tenha noção do que estou fazendo, guardo algumas das fotografias que mais gosto na mochila e outras no bolso. Algo me diz que não terei a chance de voltar para pegá-las.

Terry buzina mais uma vez e desperto para a vida. Bato a porta atrás de mim, e desço as escadas às pressas. Bob joga algumas bolsas no porta-malas, e entra no carro ao mesmo tempo que eu. Terry dá a partida, e saio de minha casa para nunca mais voltar.



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Notas finais do capítulo

Sei que o cap ficou um pouco paradinho, mas precisava dele para coisas do futuro. Ainda assim, me esforcei para fazer e espero q tenham gostado.
O que acharam dessas lembranças da Julie? E da decisão definitiva da Amy para lutar pela vida?
Abraços, Beatriz ♥



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