A Lenda da Abominação - Livro Um: Amizade escrita por Ren Kintasu


Capítulo 11
Capítulo 10: Dunas (Parte 1)




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Foram seis longos dias de viagem até a fronteira norte do deserto. Seis dias basicamente silenciosos, com poucas palavras proferidas e grande tensão no ar.

Kuzou sempre estava à frente, guiando o caminho e as ações do grupo. Yan vinha ao seu lado, distribuindo comida para os companheiros — depois de comer, óbvio. Rohan ficava atrás, distante o suficiente para garantir a tensão, mas perto o suficiente para ouvir as instruções dadas. Ember seguia ao seu lado, mas não conseguia arrancar uma palavra do gigante, deixando-a cada vez mais deprimida.

Apesar do clima, eles conseguiram chegar em seu destino sem problemas, evadindo novamente com sucesso os guardas da grande — e única — ponte que os separavam da parte sul do reino da terra. Não havia sinais de que estariam sendo perseguidos, então a caminhada foi relativamente calma e devagar. Os únicos problemas pareciam ser o sol e ter de mastigar a maldita carne seca, que por algum motivo eles decidiram comprar em maior quantidade no mercado clandestino dias atrás.

Como de costume, eles pararam para descansar logo antes do deserto, que já cobria todo o horizonte norte. Nenhuma nuvem flutuava nos céus, deixando a vista do norte completamente azul e amarela. Lindo, mas terrível ao mesmo tempo. Aquilo seria um problema sério.

“Nós vamos morrer”, pensava Yan, a cada quinze minutos. Quilômetros e mais quilômetros fritando embaixo do sol, sem uma sombra sequer. O nômade já sofria por antecedência. E não era o único, julgando pelos rostos que o rodeavam.

— E agora? — soltou Ember, desesperada para quebrar o silêncio desagradável.

Kuzou demorou para responder à pergunta.

— Logo à frente, um pouco adentro no deserto, tem um posto de abastecimento dos dobradores de areia. Lá devemos conseguir um barco. Aí seguiremos para outro posto deles no meio do deserto para abastecer os mantimentos.

Então o silêncio retornou. Ninguém tinha mais o que dizer; descansaram o suficiente e voltaram a caminhar, no mesmo esquema de antes.

A areia torrava o pé deles e o sol, o resto. A pouca brisa que havia apenas trazia mais ar quente. Eles já viam o horizonte tremido por causa do calor. Porém, nem mesmo o calor quebrou a tensão; se fez algo, foi intensificá-la.

Por sorte, logo chegaram ao pequeno posto de abastecimento. Via-se uma quantidade razoável de casinhas de barro, que abrigavam desde bares até lojas artesanais. Vários barcos de areia estavam espalhados pelas “ruas” formadas pelos espaços entre as casas. Pessoas andavam pelas ruas cobertas de areia, todas vestindo a roupa padrão do deserto, a maioria com detalhes que os identificavam como dobradores de areia. O resto era composto de pessoas perdidas e turistas iludidos. Todos alvos fáceis.

— Eu não gosto do jeito que eles olham pra gente... — falou Yan, nervoso.

Os olhares os seguiam pela vilazinha. Eles não pareciam ser bem-vindos.

— Estamos sendo avaliados. Muito cuidado agora. Atenção aos bolsos e aos arredores — avisou Kuzou, fazendo sua própria avaliação das pessoas.

— E eles roubariam o quê? Nem nossas roupas prestam no momento — cutucou Rohan, falando pela primeira vez desde a Grande Divisão.

O ex-agente simplesmente ignorou o comentário.

Eles seguiram, quietos e atentos. No final da vila, encontraram o que deveria ser o equivalente a um porto para os barcos de areia.

— Ali. Lá poderemos alugar um barco — disse o dobrador de terra.

— Não temos dinheiro suficiente para alugar um barco. O que te faz pensar que eles iriam nos emprestar um? — cuspiu o gigante.

— Vou barganhar — respondeu o outro, seco.

— E se não der certo? — perguntou o nômade, temeroso.

— Aí teremos de... improvisar.

Todos entenderam o significado daquelas palavras.

Yan se aproximou de Kuzou, com um pensamento que não queria sair de sua cabeça.

— Você acha que eles sabem quem nós somos? Será que os cartazes já chegaram aqui?

Eles pararam em frente à cortina que os separavam de dentro do estabelecimento que controlava o porto.

— Já vamos descobrir.

A resposta não parecia ser positiva.

 

 

 

O interior tinha toda as características de uma taverna. Havia mesas, gritaria e bebida. Bastante bebida. Era escuro, como uma caverna, e parecia maior por dentro do que por fora. Um balcão quase imperceptível ficava apertado à esquerda, onde só se via uma pessoa. O barulho não parou quando eles entraram, mas Kuzou não se iludiria em pensar que não foram notados.

Não foi difícil achar o responsável. Ele estava no fundo, rodeado de puxa-sacos, sentado na parte mais luxuosa do lugar. Isso se alguma coisa lá dentro pudesse ser considerada luxo. Lá estava barulhento, mas era algo controlado, diferente do resto do bar/porto. Era óbvio que ele era líder de alguma gangue ou facção dos dobradores de areia.

O ex-agente se dirigiu a ele determinado e firme, com o bando logo atrás.

Repararam neles logo, talvez por causa dos movimentos bruscos de Kuzou. Ou pelo tamanho de Rohan.

Nenhum deles se mexeu, mas as conversas na mesa cessaram. E o burburinho das outras também pareceu diminuir.

— Imagino que você seja o dono do lugar. Gostaríamos de alugar um barco — começou o ex-agente.

O líder da gangue levantou a sobrancelha e se ajustou na cadeira.

— Bem direto você, não? — comentou ele, com um pequeno sorriso no rosto. O dobrador os avaliou de cima abaixo. — Pois bem. Dez mil moedas de ouro.

Todas as pessoas na mesa pareciam estar sorrindo.

— Só temos yuans... — respondeu o dobrador de terra.

— Sem problemas — interrompeu o chefe da gangue. — Somos “bem atualizados”. — Risadinhas soaram em volta dele. — Vinte cinco mil yuans.

Todos os presentes, de ambos os lados, sabiam o quão pouco precisa era aquela conversão.

Kuzou respirou fundo antes de continuar. Aquilo era claramente uma provocação.

— Será uma viagem curta. Daqui a dois dias o barco estará de volta em suas mãos, intacto e limpo. — Todos os seus três companheiros sabiam que ele estava mentindo.

— Jura? — exclamou o dobrador de areia, com uma alegria exagerada. — Vinte três mil então para esse pessoal prestativo!

Agora as risadas vinham de todas as direções.

— Que tal assim? Te damos cinco mil agora como garantia, e o resto quando voltarmos? — barganhou o ex-agente.

— Que tal o inverso? Fechado? — contra-ofertou ele, com um sorriso maior no rosto.

— É que vamos fazer um trabalho no Oasis, então só teremos essa quantia depois. Podemos pagar 25% a mais do valor quando voltarmos, que acha?

— Tentador... — O líder se fingiu pensativo. — Vão fazer o que lá? Duvido que consigam muito com essas roupas.

Todos ao redor agora ostentavam sorrisos.

— Aliás, eu acho que mesmo se a gente roubasse vocês, mal daria duzentos yuans.

Eles tinham mais que isso, mas a observação dele não deixava de ser bem correta.

O chefe da gangue levantou-se, e junto, os lacaios o imitaram.

— Mas eu imagino que duzentos yuans seja melhor que nada, não? — sibilou ele, com um sorriso cretino, vil.

A faca veio de fora de seu campo de visão, atingindo na parte de trás do ombro de Kuzou. O impacto o fez se ajoelhar. Depois que ele foi descobrir que a atendente do pequeno balcão que tinha atirado. Quase todos os dobradores de areia no bar se levantaram.

Todos do grupo foram pegos de surpresa.

— Fiquem calmos aí — ameaçou o líder, apontando para eles, também com uma faca. — Ou vocês vão sofrer pior que ele...

Novamente a surpresa dominou o lugar. Mas dessa vez por parte dos fregueses do bar.

Antes de o dobrador de areia terminar a ameaça, Kuzou levantou o braço intacto, o que fez com que a mesa, feita de barro, voasse em uma velocidade incrível na direção do homem, esmagando-o na parede.

Os outros membros do grupo nem respiraram. Rohan, desafiando seu tamanho, virou 180 graus na velocidade de um piscar de olhos. Isso fez com que o teto desabasse, fechando o caminho entre eles e o resto do bar, e esmagando quem fora infeliz o suficiente de estar perto demais. Ember tostou os capangas da direita, e Yan jogou longe os da esquerda.

O ex-agente levantou-se, com uma careta de dor no rosto. Andou então em direção ao líder, ainda prensado na parede, semiconsciente. Nem olhou duas vezes para o cretino. Dobrou a mesa novamente e a usou para fazer um buraco na parede, dando no pátio dos barcos. O homem foi parar entre dois barcos, sangrando na cintura.

— Subam no da esquerda, agora! Yan, você dirige — ordenou.

Todos obedeceram, e logo o bar cheio de dobradores irritados ficou para trás.

— Eles vão vir atrás de nós, você sabe, não? — avisou o gigante. Entretanto, pela primeira vez em dias, não havia veneno em sua voz.

“Nada como uma bela briga de bar para reacender amizades”, ironizou o ex-agente para si mesmo.

— Mais um grupo perseguindo a gente. Grande coisa — brincou Ember.

Ela tirou as palavras da boca de Kuzou.

Seria uma travessia interessante.

 

 

Por sorte, o sol estava contra eles, o que lhes permitia se proteger na sombra da vela. O barco navegava pelas dunas como se fossem marolas, mas o chacoalhar era muito mais brusco. Yan fazia o possível para amenizar isso, apesar de nunca ter manuseado um barco daqueles, pois sabia que cada leve tranco machucava Kuzou. Uma pena que ele estava falhando miseravelmente nesse trabalho.

A faca ainda se encontrava alojada em sua omoplata, criando uma dor pulsante e impedindo qualquer movimento significativo de seu braço esquerdo. Uma mancha vermelha se estendia pela roupa a partir do ferimento. O seu suor frio só passava despercebido por causa do calor. Logo ele estaria com febre.

Rohan, sentado atrás do ferido, observava tudo preocupado. Ele tinha de admitir, Kuzou era durão. Era óbvia a dor que sentia, mas ele mal demonstrava em sua expressão, nem havia se queixado.

— Temos de tirar isso — afirmou o gigante.

Sem querer deixar o assunto morrer, ainda mais um começado por Rohan, Ember não perdeu tempo em complementar:

— Por que infernos você não tirou isso ainda, aliás?

“Classica Ember”, riu Kuzou por dentro. Yan pensou a mesma coisa, mas não de forma tão calorosa.

— Porque a faca, apesar de tudo, está impedindo perda de sangue — respondeu o ex-agente, como um professor. — Só posso retirá-la se eu tratar a ferida imediatamente.

O silêncio tomou conta do barco. Ninguém ali era curandeiro, ou tinha a menor ideia de como tratar esse tipo de ferida. Kuzou lia no rosto de todos como esse fato os incomodava (ou pela postura, no caso de Yan que estava de costa para eles pilotando o barco). Nenhum deles sabia o que fazer, e todos estavam preocupados com o que aconteceria com ele.

O dobrador de terra sorriu feliz por dentro.

— Bem, então vamos tratar isso de uma vez — soltou ele do nada, olhando para seus companheiros.

— Você sabe o que fazer? — perguntou Rohan.

— E por acaso existe algo que eu não saiba fazer? — brincou o ex-agente.

Ember deu uma tossidinha nada discreta, e Kuzou tinha certeza de que ela pensara na vez que eles dividiram a comida no Canyon. Deu uma olhada de canto de olho para ela que dizia “quieta”, e ela respondeu com um sorriso travesso.

— E porque não falou antes então? — inquiriu o gigante.

— Porque eu preciso da ajuda de vocês, e não é para algo fácil. É algo pesado.

Rohan franziu o cenho em concentração, preparado para o que viesse. Já Ember deu uma de Ember.

— Tá duvidando de mim? Bela fé na gente, hein? — Seu tom não deixava claro se era brincadeira ou se ela falava sério, mas o ex-agente sabia que era uma mistura dos dois.

— Ok, então. Rohan, quando eu der o sinal, preciso que você arranque a faca. Eu faria isso, mas infelizmente eu não consigo alcançá-la. E faça com vontade, se você vacilar, o corte pode aumentar.

O gigante demorou para demonstrar reação, mas quando o fez, estava determinado. Ele entendia a seriedade da situação. Era perceptível que esse tipo de circunstância não era nova para ele.

Já Ember...

Apenas com aquela informação, a coloração dela empalideceu. “Sabia”, pensou Kuzou. Ela obviamente ainda era inocente, por mais que atuasse como durona. Infelizmente, ela ficaria com a pior parte.

— Ember... — A garota focou nele, o nervosismo estampado em seu rosto. — A sua parte é a mais importante. E a mais... dolorosa.

Ele sabia que tinha proferido a palavra errada antes mesmo de terminar de dizê-la. No entanto, a dobradora de fogo tentou não demonstrar, e se manteve focada. Ele decidiu seguir em frente. O corte doía muito, e se ele não tratasse logo, as coisas ficariam piores. Rasgou a camisa que vestia e a entregou ao outro dobrador de terra. Aquilo seria útil depois.

— Imediatamente após Rohan ter retirado a faca, você vai ter de cauterizar a ferida.

Com timing perfeito, o barco deu um súbito tranco, como se para enfatizar suas palavras. O ex-agente não pôde evitar de soltar um leve xingamento.

— Desculpa, desculpa, desculpa... — exclamou Yan à suas costas, a voz morrendo aos poucos por vergonha.

— Entendeu? — continuou, olhando nos olhos da garota. — Você só pode parar quando eu falar, ok?

Ela concordou lentamente com a cabeça.

— Vocês lembram o que temos de fazer aqui, certo? — Kuzou tinha repassado isso com eles mais cedo, por garantia, e agora rezava para que eles se lembrassem.

— Sim, mas por que... — começou Ember.

— Rohan — chamou o ex-agente, cortando a dobradora de fogo.

Ele via nos olhos do gigante que todo tipo de desavença tinha desaparecido. Apenas preocupação restava. Colocou sua mão boa no ombro enorme do outro, como sinal de solidariedade, e ele compreendeu a mensagem.

— Mas o q... — tentou a garota de novo.

— Agora, Rohan.

Sem pestanejar, o dobrador de terra pegou no cabo na adaga e a arrancou com um puxão forte e limpo. Kuzou soltou um pequeno gemido.

Ember tremia paralisada no lugar, mas o olhar de Rohan a fez se mexer. Colocou a mão de leve em cima do corte, que agora sangrava, mas não conseguiu produzir a chama.

— Faça labaredas comprimidas para apenas queimar a área do corte, mas seja incisiva. Quanto mais fraca a chama, por mais tempo vai doer — instruiu o ex-agente, tentando apressá-la delicadamente.

A dobradora de fogo continuou tremendo. Como se percebesse, Rohan se aproximou e segurou seu pulso, dando-lhe segurança. Respirando fundo, ela fechou os olhos e se concentrou.

As chamas brilharam fortes, mas insignificantes contra a luz esmagadora do sol. Ember sentia o corpo do dobrador de terra tremer e se retesar contra sua mão, mas ela se forçou a continuar. Pelo menos até ouvir os gritos.

Kuzou havia se controlado para não gritar o máximo que podia, mas uma hora foi impossível. Lágrimas escorriam por seu rosto como não faziam há anos, e seus dentes estavam sob tanta pressão que logo rachariam. Nessa hora que ele se lembrou que tinha esquecido de algo para morder, justamente para isso. Mas não é como se houvesse alguma opção disponível para a função, a não ser que ele quisesse arrancar um pedaço do braço.

A garota, desesperada, tentou tirar a mão, mas Rohan, que segurava seu pulso, a impediu.

— Mais... um pouco... por favor... — disse o ferido, entre dentes, ao sentir a mão dela dar uma leve vacilada.

Sem escolha, mas com lágrimas nos olhos, ela continuou.

— ...bom... tá... bom... — pediu Kuzou, segurando a voz para não assustá-la mais.

A mão dela se afastou como um raio. Abrindo os olhos finalmente ela viu o ex-agente ajoelhado à sua frente, se apoiando com o único braço bom no chão. O gigante estava ao lado dela, dando-lhe apoio, enquanto Yan a olhava diretamente à sua frente, também ajoelhado, ao lado do ferido. Foi quando ela percebeu que o barco havia parado.

— Você... fez muito... bem... — gemeu Kuzou, ainda olhando para o chão. Uma queimadura se encontrava onde antes havia um corte profundo. — Agora... se me dão ... licença...

E então ele desabou no chão do barco, desmaiado.


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