A Lenda da Abominação - Livro Um: Amizade escrita por Ren Kintasu


Capítulo 10
Capítulo 9: Um Passo Atrás




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/690542/chapter/10

    

 

 

 

Sair da Grande Divisão foi um problema bem maior que o imaginado. Após a vitória sobre o mercenário, a última coisa em suas cabeças era como sairiam dali. A adrenalina os movia, nada parecia poder incomodá-los. Logo ela se dissipou, no entanto, e as prioridades mudaram.

Ember não aguentou carregar Yan por muito tempo — também estava cansada —, então o nômade teve de ser colocado no leito, junto com Rohan. Infelizmente, não demorou para o leito em si também se tornar um estorvo. Foi fácil o suficiente transportar os amigos através do solo plano do fundo do Canyon, com pequenas exceções aqui e lá; mas era basicamente impossível levá-los para fora de lá, quando chegaram no grande paredão de uma de suas extremidades.

Há tempos não existiam mais rampas ou trilhas para entrar ou sair do Canyon, muito menos guias. A Grande Divisão não tinha mais o potencial atrativo de décadas atrás. Sempre havia os peregrinos, mas era um número muito ínfimo; o resto das pessoas não se interessava, simplesmente porque havia pontos turísticos melhores e mais seguros. Nem como passagem o lugar servia mais: com a tecnologia atual, existiam dezenas de formas de se chegar do outro lado da Divisão sem precisar necessariamente cruzá-la. Em consequência disso, o antes famoso ponto turístico se tornou um buraco selvagem e perigoso. E os dois estavam sentindo isso na pele.

Kuzou não tinha forças para criar um caminho novo, e mesmo que tivesse, o tempo estava contra eles. Rastejadores tinham sido um problema constante durante a viagem, e com a lua em seu ponto mais central no céu, eles pareceram ficar mais ousados. Metade dos mantimentos foi perdida. Sem falar da ameaça constante de mais mercenários.

Ember sentou na lateral do colchão de pedra, ao lado dos amigos, exaurida.

— Como... como vamos chegar lá em cima? — bufou, olhando para o céu estrelado.

“Boa pergunta”, pensou o ex-agente.

— Você consegue usar seu fogo como propulsão? — tentou o dobrador de terra.

Se ela conseguisse, poderia levar Yan nos ombros, e aí...

“E ai, o quê? Levaria Rohan nos ombros também? Ela mal conseguiu carregar o nômade a pé, imagina voando... não, essa é uma péssima ideia. O cansaço está prejudicando seu raciocínio, seu grande idiota”

— Não, não consigo.

A garota parecia contrariada de ter de admitir isso.

“Mas admitiu. Ela nunca teria feito isso antes. É uma boa evolução”

Kuzou estava feliz de ter conseguido deixar ela mais amigável. Ninguém sobrevive sozinho.

“Queria ter aprendido isso dez anos atrás...”, lamentou-se ele.

— Você não consegue, sei lá, jogá-los lá pra cima? — perguntou a dobradora de fogo, tirando-o de suas lembranças.

— Não sem matá-los.

— Oh... então, é... esquece...

O ex-agente se permitiu um sorriso.

— Continue tentando — provocou ele.

— Ah, não sei. Tu não aprendeu nada de útil no Dai Li pra isso?

Durante o silêncio que se seguiu, ela percebeu o que tinha dito.

— Foi mal, eu não queria...

— Na verdade... — interrompeu Kuzou, perdido em pensamentos, sem perceber que a garota falava. — Mas geralmente são necessários dois dobradores de terra para funcionar, no mínimo.

— O quê?

Ember até levantou em sua curiosidade.

— Elevador de terra, era assim que chamávamos.

“Se Rohan estivesse acordado, isso seria muito fácil. Mas içá-los todos sozinho...”

— Parece bem... simples — comentou ela, insegura.

— Na teoria, sim. É uma tática de rápida elevação de carga. Muito útil e pratica, mas nas atuais circunstâncias...

“Eu não tenho energia para isso. Precisaria de um belo descanso. Quem mandou ficar sempre na ativa? Yan estava certo, eu devia ter descansado quando tive a chance...”

— ... as atuais circunstâncias exigem ações imediatas! — gritou Ember, ao perceber o que acontecia ao redor deles.

Kuzou acompanhou a direção do olhar da garota.

Os rastejadores estavam de volta. Aproximadamente cem metros à frente, os primeiros apareciam contornando os pilares de terra, tanto pelo chão como pelas paredes de rocha.

“É claro. Tava demorando.”

— Barreira de fogo, agora! — ordenou ele, correndo em direção ao colossal paredão que os prendia dentro daquele buraco maldito.

Sem pensar duas vezes, a menina se moveu, e as chamas dançaram. Um “muro” de fogo se formou entre eles e os insetos. Estes, por sua vez, recuaram ante as labaredas; mas não por muito tempo.

Pegando um grande impulso com a corrida, e com toda a força que podia angariar, o ex-agente socou o penhasco. De baixo para o topo da grande parede, a terra recuou, formando um canal horizontal em sua face, que visto de longe não seria mais que uma simples listra no desfiladeiro do canyon. Em seguida, encaixou o leito com os amigos em seu “foço” artificial milimetricamente feito, e chamou a dobradora de fogo.

— Mantenha-os afastados! — berrou, quando ela subiu na cama de pedra.

Os rastejadores já tinham avançado pela barreira de fogo, agora nada mais que cinzas, e estavam perigosamente próximos. Mais chamas vieram e os atrasaram por mais alguns segundos.

Kuzou firmou-se, e começou a rodar os braços. O leito começou a subir, deslizando pelas bordas como se estivem derrapando por um foço de paredes lubrificadas.

Ember parecia uma criança, tamanha sua estupefação e alegria ao se ver elevada no ar. O vento vindo da única abertura lateral jogava seus curtos cabelos negros para todos os lados, na inútil tentativa de embaraçá-los.

— HÁ! Isso é demais! Toma essa, seus insetos cuzões! — E desatou a rir.

Sua alegria durou pouco. Logo as criaturas começaram a escalar o paredão atrás deles, em uma velocidade alarmante.

— Ah, merda — xingou a garota, vendo a distância entre eles diminuir.

Abriu a mochila, pegou mais alguns alimentos e jogou pela borda na esperança de atrasá-los. Funcionou em aproximadamente uma dúzia, que caíram para a morte na tentativa de abocanhar a comida. No entanto, ainda havia dezenas e mais dezenas deles. Ela xingou mais um pouco.

A subida então parou. E por meio segundo, eles caíram, até acertarem algo.

— Que porra foi essa?! — exclamou a dobradora de fogo, olhando para o companheiro. Se surpreendeu ao vê-lo sentado, ofegante, pingando litros de suor.

— Eu... hunf... eu dobrei... uma camada de te... hunf... terra embaixo da gente... para não cairmos... — respondeu ele, mal conseguindo formar as palavras.

— Por que paramos?

— Você... hunf... você acha que é fácil carregar um mal... maldito pedaço de rocha de mais de 400 quilos, mais os nossos pesos combinados com pura... pura força bruta? Por que você acha que é necessário mais de um dobrador... hunf... pra essa técnica, porra? — desabafou Kuzou.

— Eles estão se aproximando! A comida não funciona mais. O que eu faço?

— Tosta eles.

Xingando mais, ela se virou para a borda e começou a atacar tudo que se movia.

O ex-agente sentia os músculos pulsarem. Mais um pouco daquilo e não sentiria mais os braços por dias. Mas ele tinha de voltar. Era ficar de cama, ou ser devorado vivo. Não era uma escolha difícil. Porém, isso não fazia o ato de levantar-se mais fácil.

“Você consegue... é só respirar fundo... deixar a adrenalina te levar...”

Ember tinha conseguido se livrar de pelo menos vinte insetos, antes do mais próximo finalmente alcançá-los. Ela queimou a criatura, jogando-a de volta as profundezas da Grande Divisão, mas logo outra a substituiu.

— Me diga que estamos chegando — pediu o dobrador de terra, ainda sentado.

— Ahn...

Eles não estavam nem na metade. Um terço já seria otimista demais.

— Minta se necessário! — gritou ele.

A garota estava confusa e ocupada em deixar as criaturas longe da borda, mas disse mesmo assim:

— Estamos quase lá!

“Estamos quase lá”

Kuzou se levantou devagar, e encostou-se à parede.

“Estamos quase lá”

Mais dois rastejadores os alcançaram.

Ele se firmou na posição.

Mais dois rastejadores saíram voando.

O leito voltou a subir.

“Estamos quase lá”

A velocidade aumentou e ele começaram a se afastar dos insetos.

— Isso! Continua assim! Estamos quase lá! — incentivou a menina, fazendo chover bolas de fogo.

“Estamos...”

A velocidade chegou a níveis alarmantes, desequilibrando a dobradora de fogo.

“...quase...”

Ember teve de deitar para não ser jogada para fora. O vento estava ensurdecedor. Eles realmente estavam chegando...

“...LÁ!”

A garota podia jurar que eles iam se lançar ao espaço em direção a mortes dolorosas, dado a velocidade deles. Entretanto, no último segundo, algum tipo de freio foi ativado, e um tranco ridiculamente forte fez todo o conteúdo de seu estômago dos últimos dias querer pular para fora. Ainda assim, eles passaram do ponto e se viram voando acima da borda, todo o negro horizonte visível por dois segundos. Até a queda começar.

Uma enorme rampa floresceu do solo lá embaixo, e fosse por milagre, ou pela dobra de terra, eles caíram do jeito certo e derraparam por sua extensão até o chão, onde continuaram deslizando por metros e metros, a velocidade diminuindo naturalmente até o leito parar meio quilômetro depois, perto das sombras das árvores.

Ember tropeçou para fora da rocha e vomitou. Muito.

Quando seu estômago esvaziou e sua cabeça parou de rodar, ela se deixou cair de lado no solo árido. As imagens finalmente começaram a se ajustar na sua mente.

— Tudo... milimetricamente... planejado... — bufou Kuzou, esparramado na cama de pedra.

— Vá... se... foder... — rebateu ela.

Ambos começaram a rir do melhor jeito que podiam.

 

 

 

 

Kuzou só acordou doze horas depois, quando o sol se encontrava bem acima dele. A luz quase o cegou, e ele temia que finalmente havia conseguido um bronzeado daqueles.

Sentia ambos os braços moles e fracos, formigando. Mal podia mexer os dedos. Um enjoo horrível se apoderou dele, mas ele conseguiu controlar.

“Cacete, parece que eu estou de ressaca”

Com uma força de vontade incrível, ele conseguiu se sentar. Ember encontrava-se no mesmo lugar de antes, babando no sono. Os outros dois continuavam inconscientes.

Kuzou tinha de se parabenizar. Tinha feito coisas inacreditáveis para trazê-los ao topo, e ainda por cima intactos. Porém, não podia esquecer-se da contribuição de Ember. Ela fora uma ótima parceira após a quebra da sua casca de grosseria.

Depois de deduzir que era meio-dia, o ex-agente se levantou e começou a recolher as coisas. Duas das mochilas foram atiradas longe durante a queda. Encontrou a primeira presa no galho de uma das árvores próximas, em boas condições, na medida do possível. Achou o que restou da outra perto da borda da Grande Divisão.

“Rastejadores”, pensou.

Eles estavam longe o suficiente da área de conforto dos insetos, mas a mochila não teve tanta sorte. As malditas criaturas comeram até o que não era comestível. Uma das alças estava empapada de sangue dos bichos.

“Brigaram pela mochila. Espero que tenham uma puta indigestão”, amaldiçoou ele.

Depois disso, analisou os arredores em busca de comida e de sinais de visitantes indesejáveis. Não encontrou nenhum dos dois. Estavam relativamente seguros, mas já estavam abusando da sorte.  Haviam perdido preciosas horas de vantagem sobre os inimigos. Eles podiam estar ali a qualquer momento. Tinham de partir o mais rápido possível, mas Kuzou não tinha coragem de acordar seus companheiros.

“Companheiros. Quem diria que chegaria nesse ponto?

Unidos pela adversidade. O destino era algo estranho.

Estava no meio da construção de um abrigo quando Ember acordou.

— Meu Sozin, eu estou morrendo. — gemeu, tentando se sentar.

— Você não é a única.

A garota arranjou forças para se levantar. Pela cara dela, parecia que ia vomitar. Se tivesse sobrado algo para colocar para fora. A poça seca com os conteúdos de seu estômago ainda se encontrava ao seu lado.

— Parece que eu fui atropelada por um trem.

— Quase. Infelizmente, agora que você acordou, temos de partir. Já arriscamos demais aqui — disse o ex-agente, não sem culpa.

— Merda, por que eu não voltei a dormir? — lamentou-se.

— Você sabe alguma coisa de primeiros socorros? — soltou, ignorando a lamúria.

O rosto da dobradora de fogo respondeu para ele.

Eles então seguiram, Kuzou derrapando o leito, e Ember vigiando os arredores e os “pacientes”.

Andaram muito, sempre à sombra das árvores para evitar mais bronzeados indesejados, mas nunca adentrando a floresta; seria impossível levar os amigos através dela sem desflorestá-la, o que, como resultado, causaria um estardalhaço gigantesco, e uma trilha tão óbvia que até um bebê seguiria.

“O que eu não daria por uma chuva agora”, pensou o dobrador de terra.

O céu estava completamente limpo, desprovido do menor indicio de nuvens. Aquelas terras sempre foram áridas. O Inferno Amarelo era como alguns chamavam a grande área que começava no Deserto Si Wong e apenas terminava no extremo limite da Grande Divisão. Era um caminho irregular, quase sem relação nenhuma se olhasse de cima, ou pelo mapa. Porém, nada florescia ou vivia entre as Dunas da Morte e o Buraco Selvagem. Alguns loucos tentavam peregrinar nesse caminho; a maioria morria. Fosse de fome, sede, insolação, devorado... a lista era gigantesca.

— Como está nossa situação? — perguntou Ember.

— Sério? — indagou Kuzou, observando a menina sentar no leito.

— O quê? É mais fácil assim, eu só te atrasaria a pé — comentou, com o sorriso mais sem vergonha possível no rosto.

Rindo, o dobrador de terra deu um tranco na cama de pedra, que jogou a garota para trás, xingando.

— Enfim, como estamos? — insistiu ela, voltando a se ajeitar no pedaço de rocha.

— Mal. Apenas uma mochila restou: a sua. Ou seja, estamos com pouquíssimos mantimentos, cortesia das pestes do canyon; os primeiros socorros todos foram usados nesses dois e só possuímos as roupas do corpo, o que nos faz parecer mendigos.

— Nossa... — foi a única coisa que ela conseguiu dizer.

— A única boa notícia é que ainda temos dinheiro o suficiente para não morrermos de fome. O problema é achar aonde comprar, já que graças ao nosso amigo esmagado lá atrás no canyon, o mercado que estávamos está fora de questão.

— Ou seja, não é exatamente uma boa notícia.

Ele concordou com a cabeça. A situação realmente não era boa. Mas ele já tinha passado por pior.

— Então, pra onde vamos agora? — a dobradora estava deitada ao lado de Rohan, apreciando a sombra das árvores que ia e vinha.

Kuzou não sabia se devia contar. Seria melhor ter todos juntos na hora que ele contasse o plano.

Por sorte, Rohan o salvou da dúvida.

O gigante começou a se remexer e a balbuciar coisas sem sentido. Ember imediatamente mudou sua postura. Olhou para o ex-agente com um misto de desespero e preocupação. Seus olhos diziam tudo.

“Não conte pra eles.”

Como resposta, ele simplesmente passou dois dedos pelos lábios, como se fechasse um zíper. Mais confiante, a garota voltou a olhar para o colosso, que começava a tossir. Kuzou parou de mover o leito, por segurança. Pegou um pouco de água de seu cantil e hidratou Rohan.

— Boa tarde — disse ele, sentando-se.

Os outros dois sorriram.

 

 

 

 

Eles acamparam mais adentro da floresta, para todos poderem descansar. O leito fora desfeito, então eles carregaram o nômade juntos, para não exigirem demais do gigante, por mais que ele insistisse em ajudar. Acharam um pedaço aberto o suficiente para acomodá-los confortavelmente, mas não aberto o suficiente para não haver sombra. De folhas foi feita a nova cama de Yan.

O ex-agente pegou o que restou do bloco de queijo dentro da mochila de Ember, e entregou a Rohan. Ele claramente precisava daquilo, mas não comeu tudo, em vez disso deixando o restante ao lado do inconsciente dobrador de ar.

Eles colocaram o colosso a par de tudo o que aconteceu desde que ele tinha apagado. O dobrador de terra ouviu tudo com grande atenção, e depois começou a agradecer. Muito.

Kuzou tentava apaziguá-lo, sem conseguir segurar um sorriso. A dobradora de fogo parecia estar entre a risada e a preocupação.

Três horas depois Yan finalmente acordou, e então fora a vez dele de ouvir a história. As reações deles eram bem mais interessantes. Sua espontaneidade trazia altas gargalhadas à clareira. Ele não acreditou no que o ex-agente fizera, e fora necessário que a garota corroborasse os fatos para que ele começasse a ver aquilo a sério. Por outro lado, ele imediatamente aceitou, e até provocou, quando Kuzou deixou escapar que Ember vomitara. O bate-boca começou como de costume, mas os dois dobradores de terra apenas se divertiram com a situação.

Conforme o crepúsculo chegava, e o assunto se tornava mais escasso, a hora de partirem parecia cada vez mais próxima. Assim como a hora de contar o plano.

— Estou morto de fome — reclamou Yan, tendo devorado o pedaço de queijo no instante que acordara. Um dos pedaços de carne seca tinha sido dividido entre os quatro, tendo desaparecido tão rápido quanto o queijo, por mais desagradável que tenha sido comê-lo.

— Você não é único — rebateu a dobradora de fogo, como sempre.

— Bem, ainda temos dinheiro, não? Vamos voltar pro mercado e...

— Não tem como. Aquele mercenário nos achou, então o mercado nesse momento deve estar cheio de gente nos procurando. — interrompeu Kuzou. — Inclusive Dai Li, provavelmente.

Esse comentário foi o suficiente para tirar imediatamente a ideia da cabeça deles.

— Temos de nos mover. Logo — continuou.

— Mas pra onde? Nosso plano já era. Nem comida temos mais. É arriscado até mesmo comprar alimento! — exclamou a garota.

O ex-agente deixou o silêncio pesar antes de começar.

— Bem... existem outros mercados clandestinos.

— Como a Baía Mercante de madrugada? — considerou Rohan.

— Seria uma alternativa, não fosse por lá ser o maior mercado do mundo. Nem na parte obscura da “Baía do Piratas” estaríamos seguros. No momento que pisássemos lá seríamos reconhecidos — rebateu. — Eu tenho uma alternativa melhor em mente.

Todos olhavam para ele, esperando. No céu, o sol começava a chegar perto do horizonte, e as sombras cobriam toda a clareira.

— O mercado dos dobradores de areia é uma boa opção.

— Mas... não fica no meio do deserto de Si Wong? — Yan parecia preocupado com o caminho por qual aquela conversa estava trilhando.

— Sim, o que, no caso, é perfeito — respondeu Kuzou.

Rostos confusos o rodeavam.

— Você tem um plano — soltou o gigante. Não fora uma pergunta.

“Lá vamos nós...”

— Sim. O mesmo de antes.

— Mas Norkka fugiu... — disse o nômade.

— ... como o covarde que ele é — completou o colosso.

O ex-agente sempre se surpreendia em como a reação calma e comedida de Rohan se alterava quando Norkka estava envolvido. Ele precisa descobrir a conexão entre os dois, mas aquilo teria de ficar para outra hora. O assunto atual era mais importante.

— Sim, sim... mas o plano não morreu. Norkka disse pra nos reunirmos perto de outra base de operações sua.

O silêncio perdurou, até ser quebrado pela pessoa mais impaciente do grupo, assim como Kuzou esperava.

— Onde? — indagou Ember, confusa.

Ele fez questão de olhar diretamente para o gigante antes de responder. Era a reação dele que importava. Seu rosto já exibia desconfiança.

— Gaoling.

O rosto de Yan demonstrava apenas cansaço, provavelmente em pensar que teria que atravessar meio mundo. Novamente. O nômade ainda não tinha feito a relação, percebeu Kuzou.

No entanto, a reação dos outros dois era mais interessante. Ember olhou preocupada e assustada para o colosso. Este, por sua vez, nem reparou na garota.

“Como sempre...”, pensou ele.

O rosto de Rohan foi de desconfiança para surpresa, de surpresa para suspeita, de suspeita para irritação, e então finalmente, para resolução.

— É uma armadilha. — Era a primeira vez que via o colosso tão agitado.

— Talvez... — começou ele.

— Não estou considerando, estou afirmando — cortou o gigante, sendo descortês pela primeira vez, sem sequer perceber. — Eu tenho certeza de que é uma armadilha.

Mais uma vez, Kuzou observou os rostos de seus companheiros. Saindo do determinado Rohan por segundos, as outras reações se revelaram. Yan continuava perdido, olhando de um para outro, confuso. Como sempre.

Ember, curiosamente, era a mais interessante de ler dos três. Seu rosto demonstrava medo. Um receio do futuro e de ser descoberta. Ele reparou que ela sabia o porquê daquilo tudo, mas que ninguém sabia que ela sabia. Mais especificamente, Rohan não sabia que ela sabia.

Voltou então a olhar o gigante no segundo seguinte, sem nem o colosso perceber o desvio de olhar.

Antes de o ex-agente responder, no entanto, foi interrompido por outra demonstração de descortesia vindo do ser mais cortês que conhecia.

— Não vá me dizer que confia nele? — o dobrador de terra parecia desafiá-lo.

— Eu confio no medo dele. Ele sabe que me ajudar sai bem mais barato do que me contrariar — explicou.

Essa lógica Yan compreendia. E concordava.

Mas o gigante não parecia menos determinado.

— Você está subestimando aquele verme. Ele está longe do nosso alcance, ele pode fazer o que quiser. Já deve ter nos delatado — cuspiu Rohan.

Kuzou teve de se segurar para não começar um interrogatório ali mesmo sobre a relação dos dois. Faltava pouco para escurecer e eles precisavam partir.

— Então é melhor irmos andando — foi apenas o que respondeu.

— Para Gaoling? — provocou o gigante. — Pro meio da armadilha?

— Independente de Norkka, eu conheço cada esconderijo dele. Ele desconhece esse fato. Não somos nem de longe tão bons como ele em falsificação, mas sobreviveremos sem ele. É isso que você quer ouvir? Então sim, vamos para Gaoling.

— Se é assim, por que não vamos em uma das bases mais próximas? Como a na margem do rio que ele mencionou, aqui perto? — inquiriu.

“Céus”

— Porque é sempre bom nos movermos o máximo possível. Além de ter um porto perto de sua cidade natal que é perfeito para desaparecermos. É bem pequeno e pouco movimentado.

— Admito que é uma boa ideia confundir nossos perseguidores fazendo o caminho de volta... — tentou Yan, querendo participar da conversa — mas não estaríamos arriscando justamente ir de encontro a eles também? Afinal, duvido que aquela cidade não esteja mais sendo vigiada...

Kuzou respondeu antes que Rohan pudesse usar esse argumento como arma.

— Porque vamos por outro caminho. Vamos atravessar o grande deserto.

Aquilo silenciou a todos. Até o gigante mudou sua postura, surpreso.

— Aproveitamos pra comprar os mantimentos no mercado dos dobradores de areia. Quando chegarmos no Oásis das Palmeiras Enevoadas seguimos então para oeste, para as montanhas. Entraremos em Gaoling através delas, pela “entrada dos fundos”. Assim mal seremos notados.

— Mas isso é suicídio. Nunca sobreviveremos ao deserto inteiro a pé — argumentou o nômade. Ele não tinha experiências boas com desertos.

— “Alugamos” um dos barcos dos dobradores de areia. Com um daqueles poderemos cruzar o deserto em quatro dias. Um dobrador de ar pode manuseá-los quase tão bem como um dobrador de areia. Além disso...

— É um longo e árduo caminho para se fazer só para nos jogarmos nos braços da morte — sibilou o gigante.

“Chega, já demoramos demais”

— Ótimo! — exclamou Kuzou, levantando e virando-se em direção ao colosso. — Tempo suficiente para você nos contar suas longas histórias com Norkka. Como você sabe tanto sobre ele e por que tem tanta raiva, por exemplo.

Ele era o mais alto do grupo, mas mal batia no peito do gigante. Isso, no entanto, não diminuía a autoridade que ele passava pela voz. A aura que ele soltava era tão opressora quanto o tamanho do amigo. Yan e Ember tinham levantado, mas não ousavam se meter entre os dois. Nem saberiam o que fazer se o fizessem.

— Temos três dias até o deserto. Você pode nos contar também como realmente fugiu daquelas celas como aperitivo, antes do prato principal, que tal? — cutucou o ex-agente.

Com timing perfeito, as árvores encobriram completamente o sol, escurecendo a clareira. Rohan pareceu murchar um pouco, pego com algo que não estava preparado.

Foi a vez de Ember demonstrar confusão. Yan cobria a boca de espanto, como uma mulher refinada vendo algo vulgar. Hilário, se o clima não fosse tão pesado.

Aproveitando a mudez repentina, Kuzou recolheu as coisas, colocou na mochila e começou a caminhar na direção pela qual tinham adentrado a floresta.

Passado a estupefação, o nômade se apressou a seguir o companheiro. Olhando para trás, viu que a menina tentava convencer o colosso a fazer o mesmo. O gigante simplesmente a ignorou e começou a segui-los de longe, com a garota em seu encalço.

— Meu deus... — foi só o que o dobrador de ar conseguiu falar.

O ex-agente se manteve calado.

— Você... tem certeza disso?

A coragem que Yan tivera de angariar para perguntar aquilo fora inacreditável.

— O menor dos males. — foi só isso que ele disse.

O clima não era bom, e era necessária união para superar o que eles estavam enfrentando. Mas sem que todos eles se abrissem, a confiança era impossível. Às vezes, era necessário dar um passo para trás para dar dois para frente. Assim como aquilo fora necessário.

Ainda assim, a cabeça de Kuzou estava a mil, sempre pensando à frente. Ele não descartava armadilha. E ele com certeza não seria pego despreparado. Acontecesse o que fosse, ele enfrentaria de frente.

E após isso, planos alternativos não faltariam. Sempre um passo à frente dos inimigos, como seu capitão costumava dizer.

Assim como Leia todos, e nunca será pego desprevenido.

Caminhando ao seu lado, nervoso, seu amigo só pensava em uma coisa. Seu mantra pessoal.

“Merda, merda,merda,merda,merdamerdamerdamerdamerdamerda....”


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Lenda da Abominação - Livro Um: Amizade" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.