A Lenda da Abominação - Livro Um: Amizade escrita por Ren Kintasu


Capítulo 12
Capítulo 11: Dunas (Parte 2)




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O silêncio criado pelo choque tomou conta do grupo. Mas não duraria muito; aproveitando a oportunidade, Rohan tomou a iniciativa, antes que os outros dois saíssem do estupor e começassem a se desesperar.

— Yan — o nômade virou seus olhos para ele. — Volte a pilotar, rápido. Ainda estamos sendo perseguidos.

O dobrador de ar não respondeu nem agiu de imediato. Parecia querer começar a falar. O seu rosto deixava claro que não seria nada construtivo. O gigante o interrompeu com uma ordem enérgica, e finalmente o barco começou a se mover.

No final, não precisou se preocupar muito com Ember. Ela estava focada demais no que acabara de fazer para falar ou fazer algo característico de sua pessoa. Bastou pedir para que ela cuidasse de Kuzou e a garota concordou sem pestanejar, apesar da cara de desconforto que fazia toda vez que via a queimadura.

Rohan entendera muito bem o que aquela mão no ombro tinha significado. A responsabilidade era sua agora. Tinha de cuidar deles e guiá-los para fora daquele lugar. Nunca tinha sido qualquer tipo de líder ou chefe na vida, mas sabia que era melhor no papel que Yan ou Ember. Não tinha escolha, mas faria o melhor possível para agir como o ex-agente e mantê-los a salvo.

Algumas horas se passaram com um relativo silêncio. Kuzou continuava inconsciente.

Precisaram dar uma pausa para Yan descansar. O nômade se jogou no chão de madeira com os braços pulsando de dor. Dobrara sem parar nas últimas horas, com todas as suas forças. O gigante estava orgulhoso, mas sabia que logo teria de pedir para o coitado voltar a dobrar. Estavam em fuga, e os dobradores de areia tinham muitas vantagens contra eles. Logo os alcançariam.

— Yan. — chamou ele. O nômade gemeu como resposta. — Quando você voltar a pilotar... — Outro gemido. — Mude o curso para sudoeste.

— Mas... — tímida, Ember começou a falar pela primeira vez em horas. — O tal posto dos dobradores de areia não fica à sudeste? Acredito que estamos perto, aliás.

Mentalmente, o dobrador de ar agradeceu a garota. Queria perguntar a mesma coisa, mas não tinha forças nem para falar.

— Sim, mas acredito que não podemos arriscar. Estaríamos indo direto para território inimigo, e duvido que os dobradores de areia lá já não estejam informados do nosso roubo. — respondeu Rohan.

— Mas não temos escolha, temos? Mal temos suprimentos — rebateu ela.

— Realmente. Mas fiz uns cálculos, e com esforço, conseguiremos chegar no Oásis de madrugada. Lá poderemos reabastecer mais calmamente. Não teremos de nos preocupar com uma horda de dobradores de areia em cima de nós, pois eles não têm poder algum lá.

— Teremos outro problema em um lugar turístico como aquele. Com certeza lá está recheado de cartazes nossos. — Ela estava perturbada.

— É a nossa melhor aposta — insistiu o gigante, com um tom leve, para acalmá-la. — Talvez possamos até tomar um banho.

Aquela ideia tentou Ember o suficiente para ela aceitar. Rohan entendia perfeitamente. Nenhum deles conseguira se lavar de forma própria desde que essa loucura havia começado. O máximo que conseguiam era uma mergulhada em rio de vez em quando, e isso dificilmente era ideal. Sem contar que tinham de colocar as mesmas roupas após o mergulho, e ia apenas um de cada vez, por motivos de pudor. Um banho decente era uma bênção.

— Então vamos logo, nesse caso — soltou Yan, se forçando para levantar. — Mas não quero nem saber, a prioridade do banho é minha.

Após a surpresa, ambos os outros deram leves risadas.

— Vamos — incentivou Rohan.

Voltaram então a se mover em direção ao possível banho dos sonhos.

 

 

 

A noite no deserto era uma coisa linda e tranquilizante. As estrelas recheavam um céu que mais parecia uma tela de pintor. O grande mar amarelo se aproximava da cor escura do céu, e os sons pareciam ir dormir junto com o sol, trazendo apenas o farfalhar da brisa através das grandes dunas azuis. Tudo aquilo trazia uma sensação de relaxamento. De paz.

No entanto, isso tudo não a impedia de também ser traiçoeira. Enquanto o dia no deserto era escaldante, ao ponto de ser facilmente capaz de matar; a noite era cruel em sua frieza. Como se debochasse de todos os pobres viajantes que imploravam pelo doce toque de um vento gelado, ela lhes enviava o frio tão sonhado, mas em quantidade demasiada. Um frio também capaz de matar. Algo que aqueles ignorantes às realidades de um deserto achariam ridículo. Morrer de frio em um deserto parecia uma ideia impossível, mas a verdade é que essa era uma morte muito comum.

Yan, por acaso, era um desses ignorantes. Ficara ridiculamente feliz quando o sol começou a se pôr, e uma brisa refrescante o encontrou. A sua curta experiência no Pequeno Deserto não tinha lhe ensinado muita coisa; afinal de contas, aquele deserto era pequeno. Yan não sabia, mas tinha pego o caminho mais longo, além de ter se perdido várias vezes. Um deserto daquele porte não poderia lhe mostrar muita coisa. E assim, quando a noite se instalou nas dunas, o frio o pegou de jeito.

O nômade não demorou muito para chegar no seu limite, e logo parou de controlar o barco para poder xingar.

— Desertos são assim — conseguiu dizer Rohan, após a exaltação do outro. Queria dizer mais, mas queria poupar o calor dentro de si. Era possível ver sua respiração, tamanho o frio.

De fato, apesar de todos os presentes estarem tremendo e tentando preservar o máximo de calor corporal possível — até Kuzou fora coberto com um manto improvisado — apenas ele parecia estar surpreso com a situação.

Ember se mexeu e parecia tentar juntar energia para dizer algo. Depois de algum esforço e de gaguejar muito, ela conseguiu pronunciar uma palavra compreensível.

“Tapado”

Yan ia matar aquela menina.

— Sugiro que voltemos a nos mover, mestre Yan — soltou o gigante, interrompendo (intencionalmente) o que quer que o dobrador de ar fosse fazer. — Sei que parece difícil, mas movimentando o corpo, você estará em condição melhor que nós — explicou ele, após ver a cara incrédula que o nômade fez.

— Temos uma dobradora de fogo, cacete! Por que não estamos usando isso? — exclamou ele em resposta.

A vontade era dizer coisas mais impróprias em relação àquela cretina, mas decidiu se conter. Afinal, talvez precisassem da menina. Nunca pensou que precisaria recorrer a ela, mas também nunca pensara que iria pedir por calor na vida depois daquele dia infernal. O mundo era um lugar louco.

— Estamos em um barco feito primariamente de madeira. Não seria muito sábio — respondeu Rohan, de forma calma.

Olhou para Ember. O dobrador de terra decidira omitir a parte de que a garota também devia estar um pouco abalada de usar suas habilidades por causa de mais cedo. Queimar alguém de longe podia ser “fácil”, mas assistir o sofrimento em primeira mão era algo bem diferente. Os dobradores de fogo carregavam um fardo muito grande em seus poderes.

De cara feia, o dobrador de ar virou-se.

E eles voltaram a se movimentar, apesar da má vontade do piloto.

 

 

Graças a Gyatso, poucas horas depois eles já conseguiam ver as luzes do Oasis. Animado, Yan angariou o resto das forças que tinha e acelerou o barco. Ele mal podia esperar para relaxar. A única coisa que o mantivera em pé movendo aquela joça foram seus devaneios felizes sobre as maravilhas que encontraria naquele pedaço de paraíso perdido no meio das dunas mortais.

No entanto, Rohan logo o tirou de seu lugar feliz.

— Pare aqui, por favor.

O nômade parou de dobrar ar apenas por pura incredulidade.

O gigante estava preparado e o interrompeu antes que ele transformasse a exasperação estampada em seu rosto em palavras.

— Vamos “acampar” aqui, por assim dizer. Vamos descansar e conversar sobre o plano.

O “plano”, na cabeça de Yan, era tomar um banho de espumas de três horas enquanto comia um maravilhoso frango com batatas na manteiga e recebia uma massagem nos ombros.

Ember, que havia deitado algumas horas atrás, sentou-se, tentando parecer a mais concentrada possível.

— Não podemos entrar todos na cidade, nem estacionarmos muito perto. Somos procurados e estamos com um homem debilitado. Portanto, vamos nos dividir em dois grupos. Eu vou ficar cuidando de Kuzou, e vocês dois vão ao Oasis comprar comida e medicamentos — informou Rohan de uma vez, tentando impedir qualquer reclamação desnecessária.

Ficara matutando essa ideia durante horas, e lhe parecia a menos pior. Como diabos o ex-agente vinha conseguindo fazer isso nas últimas semanas sem descanso e ao que parecia meros segundo, ele não sabia dizer. Olhou para o ferido deitado ao seu lado com respeito, antes de continuar:

— Se cubram o máximo possível, sem parecer muito suspeito, óbvio. Por sorte, eu acho que o que mais se vê nesse lugar são pessoas cobertas por mantos. Ember — A menina se endireitou —, sugiro que você cubra a boca com o manto. Costuma ser uma atitude comum para mulheres. Yan — O nômade continuava com uma cara meio idiota —, prenda o cabelo, talvez em um rabo-de-cavalo. Assim vocês dois ficam diferentes das suas imagens nos cartazes. — Pelo menos um pouco. Era o melhor que ele conseguia pensar. — Entenderam?

A dobradora de fogo pareceu processar as informações e então anuiu de leve com a cabeça. O dobrador de ar ainda pensava no frango. E em outro detalhe.

— Espera, por que nós dois? — reclamou ele. A garota o fuzilou com os olhos.

“Previsível”, pensou o dobrador de terra.

— Vocês são os mais... — Ele ia falar “baixos”, mas preferiu não dizer. — “comuns” entre nós. São os que menos chamam a atenção.

— Menos atenção? Essa menina só falta berrar pras pessoas que somos fugitivos. — Como sempre, o nômade estava exaltado.

A garota pareceu que iria atacar, mas deu uma rápida olhada para o gigante, e reconsiderou. E permaneceu quieta. Aquela atitude surpreendeu até mesmo Yan.

Rohan aproveitou a lacuna deixada na conversa:

— Atitudes podem ser controladas — Ember pareceu se encolher —, tamanho não. Você prefere que eu vá?

O dobrador de ar permaneceu em silêncio.

— Não é seguro alguém ir sozinho, e um casal... — A pálpebra do nômade tremeu.  — de tamanho... “aceitável”, é mais comum, portanto, mais seguro.

O dobrador de terra não possuía nenhum tipo de malícia ao fazer aquele comentário sobre estatura; afinal, se tinha uma coisa que o homem apelidado de gigante não compreendia direito era tamanho considerado “normal”. No entanto o nômade sentiu aquela palavra bem no meio de sua autoestima. Sua pálpebra teve outro leve espasmo.

Surpreendendo novamente, Ember já estava com seu “disfarce” pronto e olhava fixamente para Yan, como se dissesse: “E aí, cacete, vai se arrumar logo ou não vai?”.

Rohan permaneceu em silêncio. A discussão parecia encerrada.

Com um gosto amargo na boca, o nômade começou a prender o cabelo.

 

 

O Oasis das Palmeiras Enevoadas era de longe o ponto mais movimentado de todo o deserto de Si Wong. Tinha crescido de forma exponencial no último século, chegando ao ponto de se tornar um dos maiores pontos turísticos do mundo, além do terceiro maior mercado do mundo, atrás apenas da Baía Mercante na fronteira leste da República Unida das Nações, e do mercado da tribo Zang. No entanto, exatamente por ser um ponto turístico, o mercado do Oasis tinha tipos mais específicos de produtos, o que o diferenciava dos outros. E se o assunto fosse produtos voltados para desertos, não existia lugar melhor que aquele.

Tudo isso culminava em uma cidade que iluminava o grande deserto, uma cidade que parecia respirar o ar noturno como se fosse seu. Os dias no Oasis eram calmos e serenos, deixando o deserto brilhar enquanto se preparava para sua vez. À noite então, a cidade acordava, com suas milhares de luzes contornando cada esquina e viela com perfeição, sem esconder nada. O som de incontáveis vozes preenchia cada rua e estabelecimento, e então entravam em perpétuo movimento, como se fossem a corrente sanguínea da cidade. Viver no Oasis era viver uma vida primariamente noturna e movimentada.

Quando Yan e Ember chegaram lá, encolhidos em seus mantos, a cidade estava a toda. Tamanho movimento assustaria eles; mas apenas depois de eles terem conseguido absorver todo o cenário, se maravilhando a cada canto. A garota parecia doente, de tanto que se movimentava. Seus olhos brilhavam com o reflexo de milhares de luzes. Até o nômade estava absorto naquele lindo lugar. Parecia que seu lugar feliz não era apenas parte dos seus devaneios. Sua boca já salivava sentindo a proximidade do frango dos sonhos.

Ambos continuaram a caminhar em linha reta em silêncio pasmo, sem prestar muita atenção aonde iam. Por sorte, lojas com os itens que necessitavam não faltava, então logo acabaram esbarrando em uma.

Quando voltaram a si, começaram as compras. Tiveram de barganhar bastante, pois não estavam na melhor das condições financeiras, mas logo conseguiram pelo menos o básico para não morrerem no dia seguinte. Mas nada de roupas ou apetrechos necessários. E os medicamentos que tinham pouco ajudariam. A situação era tão deprimente que nem fora necessário controlar os instintos consumistas de ambos. Eles não tinham como comprar nada.

Voltaram a caminhar a esmo, com outro estado de espírito dessa vez.

As pessoas mal os notavam. O número de pessoas tinha preocupado Yan antes, porém agora ele via que isso acabara sendo algo útil. Eles eram quase invisíveis. O gigante talvez estivesse certo...

“tamanho... aceitável...”

Espasmo no olho.

O nômade olhou para a peste ao seu lado, que andava cabisbaixa como ele. Ela parecia ser bem jovem. Discretamente, se aproximou e se endireitou. A garota não pareceu reparar.

“Somos quase do mesmo tamanho”. Ele era maior, claro, mas apenas por dois dedos, aproximadamente. Talvez a idade deles não fosse tão diferente assim. Afinal, aparências enganam. Assim faria todo sentido a questão dos tamanhos.

— Quantos anos você tem? — perguntou ele, sem nem pestanejar.

A dobradora foi obviamente pega de surpresa. Estava no meio dos seus próprios devaneios.

O nômade repetiu ao perceber que a menina não tinha entendido. Quase conseguia ouvir as engrenagens rodando dentro da cabeça dela. O rosto dela começou a corar, conforme ela colocava as coisas no lugar lá dentro, e sua face demonstrava uma mistura de vergonha, irritação e apreensão.

— Que diabos de pergunta é essa do nada? Por que você quer saber? — cuspiu ela.

Yan não pretendia responder a verdade. Mas também não havia pensado em uma desculpa. Kuzou provavelmente teria algo já na ponta da língua para uma situação daquelas.

“O que ele faria nessa situação?”

— Ahn... porque... — precisava de um bode expiatório — ... o... Rohan pediu... para nossa... missão... e tal...

“Belo trabalho! Missão! Somos agentes secretos agora? Seu burro, que desculpa de merda”, pensou ele.

Achava que ia apanhar, ou no mínimo receber um olhar fulminante. No entanto, a reação dela pareceu mudar ao ouvir o nome do gigante.

“Mas hein?”

— D...d-dezessete... — gaguejou ela.

Parecia insegura, mas o nômade não chegou a reparar nisso. Tinha estacado no lugar.

“Espera, deu certo?”

A garota interpretou o choque em seu rosto de forma diferente.

— M-mas eu vou fazer dezoito daqui um mês! — berrou ela, exasperada e com o rosto vermelho.

Só então ele processou a informação.

“Dezessete anos...”

Era como se uma bigorna houvesse caído em seus ombros. Era uma diferença de quase dez anos...

O nômade não teve muito tempo para se deprimir, porém. Seu olho tinha captado uma queda no movimento da rua. Ao olhar em volta, percebeu que várias pessoas os encaravam. Seus rostos não demonstravam muita cordialidade.

As suas próprias engrenagens que começaram a rodar dessa vez. Ember tinha falado um pouco alto demais, mas o que ela tinha dito mesm...

“Ai, meu caralho”

A situação tinha toda se encaixado em sua mente. Apressado, pegou a dobradora pelo pulso, tentando afastá-los dali o mais rápido possível. Por sorte, a surpresa dela a manteve calada tempo o suficiente para que se distanciassem do alcance auditivo das pessoas.

— Ei, o que foi? O que aconteceu? — indagou ela, finalmente. Tentava se desvencilhar.

— Te conto quando você for mais velha.

 

 

Quando Kuzou abriu os olhos, as constelações o receberam.

Apesar de se sentir melhor, decidiu não se mexer. Alguém o havia virado de barriga para cima e o coberto com um manto. Agradecia em seu interior, pois graças a isso estava confortável; e, estando confortável, não precisaria se mover tão cedo. Qualquer movimento poderia trazer alguma dor à tona.

A cidade vista de fora não deixava de ser bonita. Suas várias fontes de iluminação cegavam as estrelas acima, e iluminavam o deserto em sua volta em um círculo quase perfeito.

Percebeu que Rohan fizera questão de parar o barco longe desse círculo de luz, se escondendo na escuridão. Eles estavam invisíveis para quem olhava de dentro do Oasis. Infelizmente, não se podia dizer o mesmo de quem vinha de fora.

Tendo consciência disso, o gigante patrulhava a noite, atrás de qualquer indício da chegada de seus mais recente perseguidores. Até aquele momento, pareciam seguros. O mais seguro possível para a situação deles, pelo menos.

Rohan virou-se com intenção de fazer algo, mas se interrompeu ao perceber que seu “paciente” tinha acordado. Kuzou levantou de leve a mão do braço bom para cumprimentá-lo.

— Como você está? — perguntou o gigante, sentando-se ao seu lado. Preocupação era vista em seu rosto.

— Melhor. Uma noite de sono faz milagres — brincou ele. O outro sorriu. — Quanto tempo eu dormi, aliás? — Tinha impressão de que bastante.

— Acredito que umas sete horas, aproximadamente. Mas não tenho certeza, perdi a noção do tempo.

Se fosse aquilo mesmo, era a primeira vez que tinha uma noite decente em semanas. Ele realmente se sentia revigorado, apesar dos machucados.

— Mandei o casal problema para a cidade para arranjar suprimentos — soltou o gigante, sem querer deixar o assunto morrer.

O ex-agente riu. Doeu, mas não se importou.

— Logo eles devem estar voltando com remédios para tratar suas costas, além de comida, claro.

Kuzou sorriu frente a esse otimismo. Tinha pleno conhecimento das condições financeiras do grupo — controlar a verba também era um de seus vários afazeres — portanto não tinha ilusões quanto a quantidade de coisas que eles trariam do Oasis. Sabia que o que conseguiriam seria irrisório, e que logo estariam novamente na estaca zero, mas não pretendia estragar o humor de ninguém naquela noite. Apenas concordou.

— E você, como está? — Aquela pergunta pegou o gigante de surpresa.

Com tudo que vinha acontecendo, até mesmo o próprio Rohan havia esquecido de que também estava debilitado. As queimaduras feitas pelo mercenário ainda estavam bem visíveis. Yan fizera o possível lá no Canyon, e apesar de não ter sido nada mais que primeiros socorros, ajudara muito.

— Melhor também. O mestre Yan me salvou lá trás. De qualquer forma, minhas feridas são superficiais comparadas à sua — respondeu.

Apesar disso, o gigante tentou não demonstrar que ficara feliz com a pergunta, assim como estava aliviado que a responsabilidade de cuidar do grupo não era mais inteiramente sua. Podia não estar completamente livre, afinal o outro ainda estava ferido demais para exercer sua completa função, mas poderia contar com sua sabedoria, o que era a parte mais importante. O ex-agente, por sua parte, percebera ambos os sentimentos, como esperado; porém, seu sucesso em esconder esse detalhe foi bem maior que o de seu amigo.

Um silêncio desconfortável tomou conta dos dois.

Como sabia que o gigante não se atreveria a quebrá-lo para começar um assunto delicado com ele nesse estado, decidiu fazer as “honras”. Acordara não fazia trinta minutos, mas sabia que aquilo era necessário. Talvez não houvesse outra oportunidade tão boa.

— Rohan — O dobrador de terra se endireitou. Pareceu entender o seu tom de voz. — Precisamos conversar.

Como esperado, ao adivinhar o que vinha em seguida, sua expressão se fechou. Virou o rosto, como se tentasse encerrar o assunto antes mesmo deste começar. No entanto, a hostilidade anterior já não se encontrava mais ali. Aquele era o momento.

— Você ainda pretende ir para Gaoling atrás de Norkka? — inquiriu ele.

Kuzou anuiu de leve a cabeça, o máximo que conseguia sem sentir pontada de dor.

— Temos que ir. É nossa melhor chance...

— Não, não é — interrompeu o outro dobrador de terra. — Você não encontrará nada em Gaoling, a não ser desgraça. Eu sei, eu vivi lá por toda minha vida.

O escárnio por sua terra natal era bem aparente em sua voz. Ainda sem tirar os olhos do céu, o ex-agente levantou a sobrancelha. Cada vez mais as coisas ficavam interessantes.

— De Norkka então, tenha certeza de que a única coisa que você receberá é uma facada nas costas — O gigante se lembrou da ferida do outro e se arrependeu de imediato de ter usado aquela expressão. No entanto, continuou firme.

Desta vez, porém, quem foi interrompido foi ele.

— Ele deve ter te feito algo bem sério para esse assunto causar esse nível de alteração em você.

Por um tempo, ninguém falou nada.

Uma oportunidade perfeita para uma leitura facial. Todas as suas reações seguiram o padrão: irritação, desconfiança, se encolher como se tentasse impedir a informação de sair, etc.

No entanto, a primeira reação que o interessou. Podia jurar que vira Rohan corar. De leve, claro, mas perceptível aos seus olhos. Kuzou poderia ter se enganado quanto a isso, mas uma peça se encaixava naquele quebra-cabeça.

O gigante percebera que era analisado.

— Não vá tirando conclusões precipitadas. Você pode cometer um engano que vai se arrepender depois — cuspiu. Dessa vez, era desprezo que seu tom demonstrava. Mas não por ele. Nem por Norkka, pelo menos não diretamente, Kuzou percebeu.

“Hm, complicado”, pensou o ex-agente. Porém, estava longe de ser desarmado.

— Pois me esclareça, então. Assim evitará qualquer mal-entendido, não? Todos saem ganhando.

Novamente o gigante virou o rosto. Sua expressão deixava claro: Não confiava nele, nem gostava de suas “táticas”. Kuzou suspirou.

“Estou fazendo o possível, inferno. Me ajuda, cacete”.

— Rohan.

O tom de voz do mais baixo surpreendeu o mais alto. Não pela imperatividade, dessa vez; pelo contrário, ele soava preocupado, amigável. Até levemente triste. Aquilo o desarmou, de certa forma.

— Eu sei muito bem o que você pensa de mim. O que todos vocês pensam de mim. Desculpa, mas não posso fazer nada quanto a isso, esse sou eu. Não estou pedindo que você confie em mim com seus problemas pessoais, nem com que seja. Também sei que não importa o que eu faça, nada será suficiente para tirar essa desconfiança referente ao meu passado; e acredite, eu entendo. No entanto, se eu quisesse prejudicar vocês eu já poderia ter feito isso incontáveis vezes. Nenhum de vocês está preso comigo, podemos nos separar a qualquer momento se assim desejarem; eu posso deixá-los, se isso permitir que durmam melhor à noite.

Rohan parecia que havia levado um tapa na cara. Nunca esperaria um desabafo desses do ex-agente. De repente, começou a sentir vergonha de si mesmo. Desde que se conheceram, o homem deitado a sua frente havia feito o possível para mantê-los a salvo. Respeitava-o de forma imensa por tudo que fizera e do que era capaz, mas pela primeira vez percebeu que não o vira até aquele momento como um ser humano. Alguém com sentimentos, com defeitos e desejos. Ele nem conhecia Kuzou direito. Sequer sabia sua idade. Todas as palavras lhe escaparam, tudo que conseguia pensar era em sua vergonha.

— Eu só quero ajudar. Então, por favor, me ajude a ajudá-lo — suplicou o dobrador de terra ferido.

Com um movimento brusco, o gigante se ajoelhou e encostou a testa na madeira do barco.

— Me desculpe! Por favor, me perdoe, mestre Kuzou! — exclamou ele.

Por estar de cabeça baixa, acabou perdendo a cena rara que era ver o ex-agente surpreso. Logo um sorriso cruzou seu rosto, e ele voltou a olhar as estrelas.

— Tudo bem. Não é para tanto — respondeu, levemente sem graça, porém agradecido.  — E todos já dissemos: não precisa de tanta cordialidade. Parece que eu sou seu dono, ou algo do tipo.

— Senhor, então? — disse o outro. Tinha se levantado, agora apenas sentava-se sobre as pernas. Kuzou riu, sem saber se ele estava brincando ou falando sério.

“Talvez seja os dois”, pensou.

— Enfim — decidiu continuar o assunto. O tempo não estava exatamente do lado deles. — Quero deixar claro que não quero te pressionar, nem te acuar. Não precisa me contar detalhes, nem nada desse tipo. Só quero que você me conte o que você achar necessário, o que estiver relacionado com o que vamos enfrentar. Se você achar que nada é pertinente ao assunto, pode ficar calado, e eu vou entender. E aí, o que exatamente você quer me dizer?

Rohan pensou por um instante.

E então decidiu contar.

 

 

Yan parou de discutir quando chegaram ao centro da cidade.

Tinham andado bastante xingando um ao outro, sem perceber o quanto se aprofundavam no Oasis. O nômade teria ficado preocupado com esse fato caso não estive encantado com o que estava observando.

Quando Ember seguiu o olhar dele, após perceber que suas ofensas estavam sendo ignoradas, também ficou encantada.

No centro da cidade, havia uma das maiores e mais lindas fontes do mundo. Várias pessoas poderiam nadar em sua base com facilidade. Do centro da “piscina”, saía uma estrutura grossa de metal, que se espalhava para cima como se fosse uma árvore de aço. Na ponta de cada “galho”, havia uma bacia rasa cheia de água que transbordava constantemente, enchendo as bacias abaixo e fazendo correr o líquido cristalino por sulcos nos galhos, que se encontrava então com as outras correntes no “tronco” principal. Vários jatos d’água voavam pelo ar, saídos dos mais variados pontos, desde a base, até as hastes mais elevadas. No topo da estrutura encontrava-se uma pequena pirâmide cristalina irregular que fazia pequenos arco-íris se formarem toda vez que água a atingia.

Uma grande praça a rodeava, toda pavimentada de pedras cor de barro escuro. Bares e restaurantes recheavam sua borda, fervilhando de gente. Percebia-se que aquela era a área mais bem cuidada do Oasis.  Apenas o centro da cidade era completamente pavimentando; perto das fronteiras da cidade, as ruas eram areia pura. Era como se tudo culminasse ali.

A dobradora de fogo correu em direção à fonte. Por um momento, Yan se desesperou pensando que iria pular dentro e começar a nadar — uma ideia tentadora, ele tinha de admitir — mas graças a Gyatso ela apenas ficou mexendo na água enquanto observava em volta. O nômade decidiu se aproximar.

— Meu deus, como é linda — exclamou Ember.

— Sim. E ainda por cima é um ponto histórico — comentou ele.

A garota fez cara de confusão.

— Aqui nesse lugar ficava um grande bloco de gelo. Vários avatares passaram por aqui e o admiraram. Era um gelo que esnobava o deserto, que resistiu inteiro por centenas de anos.

A admiração na voz dele fez a dobradora se afastar um pouco. Ele nem reparou.

— E onde está esse gelo impossível? — zombou ela.

O nômade apontou para o topo da fonte, onde um arco-íris tinha acabado de formar. Quando ela parou de se encantar com a visão, ela entendeu e sua boca abriu de incredulidade.

— Nem ferrando. — O nômade anuiu com a cabeça, incisivo. Até ele não acreditara de primeira, mas não havia dúvidas quando se olhava bem. — Mas não era um bloco enorme? — questionou ela.

— Era. Derreteu. — Ele já esperava que ela fosse zombar dessa parte, então nem piscou quando ela o fez. — O bloco derreteu, mas não apenas por calor. Humanos que fizeram isso. Abuso e negligência humana.

A dobradora de fogo deu um assobio impressionado e voltou a encarar a fonte.

Seu arqueólogo interior ­— “ou historiador, tanto faz” — estava completamente à mostra. Era por coisas como aquela que ele viajava pelo mundo. De repente tinha esquecido de todos os problemas que o cercavam.

Entretanto, Ember o trouxe de volta ao mundo real.

A garota tinha se afastado da fonte e se dirigia a um estabelecimento que lembrava um bar, porém mais bem cuidado, o qual tinha bastante gente.

Yan quase teve um ataque cardíaco.

Só conseguiu alcançá-la na entrada do estabelecimento.

— O que você pensa que está fazendo, cacete? — sussurrou na orelha dela, para não serem ouvidos no meio das mesas cheias de pessoas embaixo do toldo.

— Esse lugar está mais barulhento que os outros. Quis ver o porquê — Do jeito que ela dizia, parecia ser a coisa mais normal do mundo a se fazer na situação em que se encontravam.

O nômade estava pasmo, e acabou não conseguindo impedi-la de entrar. Sem escolha, a seguiu.

Era um estabelecimento grande e bem cuidado. Todas as mesas estavam bem colocadas, e atrás do balcão principal um enorme espelho refletia as várias lâmpadas que iluminavam o lugar. No fundo, se via um palco, onde um jovem tocava com um violão uma música alegre, mas não muito agitada. Música ambiente, inútil contra a gritaria do lugar lotado.

Para o terror do dobrador de ar, a menina continuou adentrando o bar.

— Agora, meus amigos vou tocar uma que vocês adoram! — gritou o cantor do fundo do bar, tentando pegar a atenção do público. Uma atitude fútil em qualquer situação semelhante, mas o músico parecia confiante.

Algumas cabeças viraram, mas a maioria continuou sem se mexer. Pelo menos antes da música começar. Então quase todas viraram. Até Yan travou no lugar. Ele conhecia aquela música.

Era a Lágrimas de ferro. Uma das músicas mais apreciadas pelo povo, criada justamente por um bardo como aquele. Uma música sobre o Avatar.

Logo todas as vozes do lugar fizeram coro. Alguns até se levantaram enquanto batiam palmas. Isso fez o nômade perder a garota de vista.

Uma sensação desagradável começou a se instalar nele. Aquela música era de fato muito popular, mas não tanto a ponto de fazer tamanho público se interromper e agir como se estivessem em um concerto. Só os mais devotos tinham tal atitude, independentemente de onde estavam ou que faziam. Aquelas pessoas não eram esses devotos. Eram simples moradores e viajantes que se encontravam ali porque queriam beber, comer e rir alto. Algo de excepcional estava acontecendo para que essa situação fizesse sentido. E, com certeza, não seria algo bom para eles.

Como que por instinto, ele olhou atrás do balcão, onde o que temia achar costumava ser colocado.

O cartaz se encontrava bem atrás da moça que estava fazendo as bebidas. Quatro figuras lado a lado. Uma delas bem maior que as outras. Essa pessoa enorme estava em destaque, em primeiro plano. Algo em vermelho estava rabiscado no papel. Ele não fazia questão de saber o quê.

Agradecia que o cartaz fosse um desenho apenas, e não uma foto que possuía bem mais detalhes, mas o que era importante estava lá. Eles podiam até ter mudado nessas semanas desde aquele evento que os transformaram em procurados, mas não o suficiente. Seu cabelo não crescera muito, e nunca conseguira ter uma barba. Kuzou até arranjara uma decente, mas sua postura característica e cabelo estavam iguais. Ember não mudara nada. E mesmo que Rohan conseguisse deixar o cabelo aparecer naquela enorme cabeça lisa e arranjar uma barba de bárbaro, nada esconderia seu porte monstruoso.

“Bem, estamos todos esfarrapados, talvez isso ajude”, zombou mentalmente dele mesmo.

Estavam abusando demais da sorte. A qualquer momento alguém poderia dar uma conferida no cartaz e reconhecê-los. De repente, o nômade se sentiu exposto.

A música tinha acabado e o público batia palmas. E pedia bis.

Então a dobradora de fogo finalmente apareceu na sua visão. Vinha em sua direção, se espremendo entre as pessoas que berravam para o músico tocar novamente. Ela tinha expressão apreensiva em seu rosto. E uma bolsa em uma das mãos.

“Era por isso que ela queria um lugar lotado...”.

— Vamos embora, rápido — disse ela, agarrando o seu braço.

— O que você fez?! — exasperou-se, sabendo exatamente o que ela tinha feito.

O músico concordou em tocar de novo Lágrimas de ferro, mas antes começou a animar o público pedindo que repetissem “Viva o Avatar! ” várias vezes.

Aproveitando a deixa, se retiraram do bar.

O povo estava tão animado no exterior quanto no interior do estabelecimento. Sair foi difícil devido o aglomerado de pessoas na entrada, todas se espremendo para tentar olhar melhor o cantor enquanto repetiam as palavras junto com ele.

Ao conseguir sair, Yan precisou parar para pegar um pouco de fôlego. A dobradora de fogo tentava puxá-lo, desesperada, mas ele resistiu. Não estava se sentindo bem. Se apoiou na parede ao sentir as pernas perderem força.

Uma conversa na mesa ao seu lado acabou chamando sua atenção enquanto ele puxava ar.

—... cara, estou muito ansioso...

Aparentavam ser dois amigos. Taças de vinho meio cheias se encontravam ao lado de cada. O nômade percebeu subitamente que estava com a garganta seca.

— Será que ele passa por aqui? — perguntou o outro, dando um gole no vinho.

— Talvez sim, se estiver de bom humor. Afinal, ele não está vindo lá de Ba Sing Se para te ver.

Seu amigo lhe xingou, e também bebericou de sua própria taça.

— Só mesmo a abominação para fazer ele deixar Ba Sing Se no meio de uma guerra civil. — Mais um gole de vinho.

— É a primeira vez em anos que a abominação comete um erro desses. É claro que ele viria pessoalmente. Do contrário, ele não seria o Avatar, não é?

Um movimento brusco assustou os dois amigos. Um cara baixinho de rabo de cavalo saía apressado arrastando sua namorada que quase tropeçava graças a surpresa. Os dois amigos não conseguiram deixar de rir da cena. Mudaram de assunto imediatamente e ficaram se divertindo imaginando que tipo de problema aconteceu que causara a briga daquele casal e quem ia dormir na sala naquela noite. Ficariam nessa até a garrafa de vinho acabar.

Enquanto isso, a única coisa na cabeça do “baixinho” apressado era seu mantra pessoal, aumentado em várias vezes.


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