Amy Tokisuru em Portland escrita por AJ


Capítulo 10
Capítulo 10 - Chuva




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WALTER

Walter nunca pensou que se tornaria um deus algum dia, mas poderia se acostumar com a ideia. Depois que todos na tribo pensaram que ele era o deus da chuva, Amanaci, foi tão reverenciado que ficou envergonhado com tanta atenção.

Jaci foi a primeira a se levantar e se aproximar do rapaz. Ela se curvou novamente e começou a dizer:

— Por favor, deus Amanaci. Quero ser a primeira a me desculpar pelo que aconteceu. Eu fui tola em não notar que era o senhor na primeira vez em que o vi. Sinta-se livre para me punir.

Walter coçou a cabeça, desconcertado. Não tinha por que a punir já que ele realmente não era o deus Amanaci — claro que não havia necessidade de mencionar isso.

— Ah, imagina. — Sorriu descaradamente. — Não tem problema, sério.

— Obrigada por sua piedade. — Jaci endireitou o corpo. — O fato de o senhor estar aqui é porque trouxe um sacrifício para o ritual, estou certa?

— O quê? — Walter perguntou, então percebeu que ela se referia a Rick. — Ah, não. Espera. Rick não é sacrifício. Ele é... meu... ajudante.

— Entendo. Então que sacrifício nós devemos fazer para que o senhor atenda as nossas preces e nos traga a chuva?

Walter entendeu mais ou menos a história. Os índios — caiporas, curupiras, ou sabe-se o quê lá eles eram — daquela tribo, pensavam que se fizessem um sacrifício, o tal de Amanaci lhes traria chuva como recompensa. Aquele lugar provavelmente estava sendo castigado pela seca.

— Me escuta. — Walter olhou nos olhos felinos de Jaci. — Sei que devem estar enfrentando uma crise com a falta de chuva, mas matar gente inocente não é o caminho certo, entendeu?

A índia pareceu não compreender o que ele estava falando. Sua expressão era de surpresa total.

— Não entendo. Esses rituais sempre foram passados de geração em geração entre os caiporas. Nós punimos os que destroem nossas florestas e em troca o senhor, deus da chuva, nos oferece água em abundância... Por que é diferente desta vez?

— É complicado — Walter gaguejou. Não tinha ideia de como responder àquilo.

— Nós, deuses, estamos enfrentando uma... Bem, uma crise. — Disse a primeira coisa que veio em sua mente. — Tive que vir para o mundo físico e... resolver algumas coisas... pessoalmente...

Ela não vai acreditar nessas lorotas, pensou, aflito. Vai descobrir que não sou um deus e vai me matar.

— Tudo bem — Jaci disse por fim. — Não cabe a mim questionar as ações dos deuses. Vou ordenar que soltem seu... ajudante, para que possamos começar a cerimônia.

— Certo... Espera aí. Que cerimônia?

Jaci já estava se distanciando, mas respondeu à pergunta.

— A cerimônia onde o grande deus Amanaci trará chuva para os seus suplicantes. — Ela sorriu, e foi ditar as instruções para os dois guardas índios de antes.

Walter ficou extremamente preocupado. Ele havia se livrado de ser morto e até conseguira salvar Rick. Ótimo. Mas agora tinha um problema maior. Deveria trazer chuva a essa tribo indígena só de ruivos, ou eles perceberiam que Walter não era deus coisa nenhuma. Tentou pensar em algum plano que não acabasse com uma trágica morte no final, mas, infelizmente, não conseguiu.

Decidiu acompanhar o processo de libertação de Rick. Ele ainda estava inconsciente, e com feridas em algumas partes do corpo (ele provavelmente tentou resistir à prisão). O mais estranho era que em seu abdômen havia um símbolo pintado em vermelho. Algo como um sinal de mais envolto por uma esfera. Rick foi desamarrado e posicionado no chão pelos mesmos dois índios que estavam na guarda de Walter anteriormente. Walter se aproximou do rapaz e o chacoalhou de leve, tentando acordá-lo.

— Rick. Acorda cara. Está tudo bem... Por enquanto...

Rick balbuciou alguma coisa e então abriu os olhos. Levantou-se de repente, assustado, olhando para Walter como se estivesse impressionado com o fato de ele ainda estar vivo.

— O que aconteceu, Walter? — perguntou, mas então fez uma careta e colocou a mão na cabeça. — Droga. Que dor infernal!

— Eles te bateram na cabeça? — Walter questionou, mas não havia nenhum ferimento na cabeça ou na testa de Rick.

— Não. — Rick tentou colocar os pensamentos no lugar. — Nós fomos sequestrados por caiporas. Por que eles ainda não nos mataram?

— Bem. É uma história complicada de se explicar. Mas aja naturalmente. Se alguém te perguntar alguma coisa...

Walter foi interrompido por um curumim de aproximadamente dez anos que chegou para lhe dizer alguma coisa.

— Senhor Amanaci. — O menino fez uma reverência. — Jaci está esperando por você junto com o chefe da tribo. Pediu para que viesse comigo, se for de sua vontade, é claro.

Rick lançou um olhar para Walter que era parte espanto, parte dúvida e parte indignação. Resumindo, ele ficou de queixo caído e juntou as sobrancelhas, e isso fez Walter ficar mais constrangido do que já estava antes.

— Bem. Então é melhor irmos, né? — Posicionou sua mão no ombro de Rick como se dissesse: Disfarça.

Walter e Rick entraram na maior oca da aldeia, feita de madeiras grossas das árvores escuras que tinham visto anteriormente, e o teto feito de folhas de bananeira. O pequeno índio que servira de mensageiro ficou do lado de fora.

Lá dentro, Jaci esperava pelos dois, com um homem do lado dela.

Se Walter estava com medo antes, agora ficara apavorado. O índio, que ele deduzira ser o chefe da tribo, era tão grande que venceria uma briga com um búfalo sem dificuldades. Estava quase nu, exceto pelo tecido que cobria suas partes baixas. Tinha marcas vermelhas pintadas por todo o seu corpo — Walter esperou que fosse tinta, e não sangue. A aparência dele era medonha, com uma barba ruiva e espessa cobrindo todo o seu rosto, e seus olhos vermelhos intensos encaravam Walter com veemência.

— Bem-vindos, deuses. — Jaci foi a primeira a dizer, fazendo outra reverência, o que já estava irritando Walter um pouco. Ele não merecia nada disso.

— Esse aí que é o tal Amanaci? — o cacique bufou, sem disfarçar a decepção na voz.

— Pai, por favor, seja mais respeitoso com os deuses. — Jaci tentou soar educada, afinal estava falando com o chefe da tribo e, acima disso, com o seu pai.

O cacique estudou os dois com desconfiança.

— Então você pode controlar a água — disse, abaixando um pouco o tom. — E, baseado nisso, devo acreditar que seja um deus.

Walter ficou calado, pois o chefe não estava fazendo uma pergunta. Parecia estar pensando em voz alta. No entanto, não poderia ficar lá com cara de idiota. Precisava se posicionar se quisesse mesmo continuar com a farsa e evitar ser morto pelo máximo de tempo possível. Nesse momento, teve uma ideia que talvez pudesse salvá-lo.

— Senhor caipora... — disse, mas foi interrompido.

— Meu nome é Raoni, que significa grande guerreiro — o chefe informou. — Continue.

— Senhor Raoni — Walter continuou. — Sei que esperam que eu traga grande chuva para a tribo, mas temo informar que as condições não são favoráveis.

— Como assim? — Raoni encarou Walter com muito mais firmeza.

Apesar de intimidado, Walter tentou continuar confiante.

— Devido a certas crises, nós, deuses, decidimos vir à Terr... Quero dizer, Portland, para resolver um problema pessoalmente.

Raoni nada disse. Ficou coçando o peito nu e peludo, esperando que Walter terminasse de esclarecer as coisas.

— Temos que encontrar alguém — Walter falou por fim.

— Que tipo de alguém? — Jaci perguntou.

— Se me permitem... — Rick ficara tão quieto que quando ele disse isso Walter até se espantou. — O deus Amanaci não pode mais revelar os planos divinos. Tudo o que pedimos é a ajuda da tribo, já que em Portland nossos poderes ficam limitados.

— Estão pedindo ajuda para nós? — Raoni disse, com indignação.

— Sim. Precisamos de transporte. Talvez dois cavalos fossem o suficiente — Rick esclareceu.

O chefe da tribo olhou para sua filha e deixou escapar uma risada.

— Está ouvindo o mesmo que eu, Jaci? Os deuses precisam de cavalos para fazer uma viagem.

Jaci ignorou o pai e voltou sua atenção para Rick.

— Meus deuses, eu sinto informar que todos os nossos cavalos estão debilitados. Não há comida e bebida o suficiente para saciar todos. Perdemos muitos de nossos animais.

— Exceto, é claro — Raoni interrompeu — pelos curupiras. Eles estão em suas masmorras, fortes como sempre, esperando seus jantares pacientemente. — Ele olhou para Walter com um sorriso no rosto, que fez o garoto engolir em seco.

— O fato é — Jaci continuou — que não podemos oferecer um transporte aos senhores, mas temos conhecimento das mais variadas rotas no Bosque dos Rubis, que pode ser de grande ajuda.

Rick coçou o queixo, pensativo. Ele ainda parecia estar detonado, tanto por fora quanto por dentro, mas estava tentando segurar ao máximo a sua dor.

— Pode ser — disse por fim, e olhou para Walter. Era ele quem deveria dar a ordem final, já que era ele quem supostamente traria a chuva no fim disso tudo.

— Muito bem — Walter concordou. — Devemos partir agora. — Ele pensou em dizer “caso não se importem”, mas não parecia ser algo que um deus diria.

Jaci olhou para o pai.

— Bom. Claro que não me cabe questionar o que os deuses planejam. — Walter pôde sentir o sarcasmo na voz de Raoni. — A não ser é claro, que vocês não fossem deuses, mas... — Soltou uma risadinha. — Não, vocês não mentiriam para mim. — Andou em direção a uma das paredes feitas de troncos de madeira, onde estava pendurada uma saca de couro, com aproximadamente um metro de comprimento, de algum animal que poderia ser um leão.

Raoni pegou essa saca e desembrulhou seu conteúdo.

Walter deixou escapar um gemido de espanto.

O chefe da tribo pegou estava segurando uma perna humana, muito bem conservada inclusive. Ela provavelmente pertencera a uma pessoa negra, já que seu tom de marrom escuro não perdera nem um pouco a cor, como se ainda fluísse sangue pelo membro.

— Isso é o que sobrou da última pessoa que mentiu para mim. — Raoni disse, sombriamente.

Todos os pelos do corpo de Walter se arrepiaram. Ele olhou para o cacique com tanto medo que só isso seria o suficiente para que Raoni concluísse que Walter não era um deus.

— Walt... Amanaci — Rick chamou. — Temo que tenhamos que ir embora agora. — Deu mais ênfase no “agora” do que gostaria.

— S-sim... É claro.

— Ah, mais uma coisa. — Raoni guardou a sua “lembrança” de volta no saco de pele e pendurou na parede. — Se, por algum acaso estejam pensando em fugir quando saírem daqui sem nos dar nossa chuva... — Ele apontou para Rick. — Seu amigo foi marcado com um símbolo caipora. Além de drenar todos os poderes dele por algumas horas, vamos saber exatamente sua localização, o tempo todo. Sem falar que é um símbolo impossível de se destruir por alguém que não seja da tribo.

Walter entendeu por que Rick não usara seus poderes para se salvar antes. Se Raoni estava dizendo a verdade, então, de qualquer forma, eles estavam enrascados de todas as maneiras possíveis.

— De quanto tempo os senhores precisam para concluir sua missão? — Jaci perguntou.

— Bem... Nós... — Walter não conseguia responder. Estava com medo de mais para isso.

— Dois dias — Rick respondeu pelo amigo. — Dois dias e nós traremos a chuva de vocês.

Jaci olhou para seu pai. Ele ainda estava com a expressão sombria, mas balançou a cabeça afirmativamente.

— Muito bem, então — disse por fim. — Dois dias. Se não houver chuva até lá, mandaremos os nossos curupiras mais selvagens para encontrar e estraçalhar vocês. — Virou-se de costas e deu aquela conversa por encerrada.

Walter respirou aliviado quando saiu daquela oca. Mesmo que ainda não estivesse a salvo, se distanciar daquele caipora marombado o fez ficar mais calmo.

Ao seu lado, estavam Rick e Jaci.

— Perdoem-nos pelo jeito de meu pai lidar com as coisas, senhores deuses — a índia disse. — Ele precisa ser severo para ter a confiança e o respeito da tribo.

— Está tudo bem — Walter disse.

— No entanto — Jaci completou rapidamente. — Ele está certo sobre uma coisa. Se estiverem mentindo para nós, vamos cuidar para que sejam mortos. — Seus olhos felinos se encararam os de Walter com dureza. — Bom... — Ela pegou sua adaga de pedra atrás de sua saia. — Essa é uma adaga mágica da floresta. Ela vai mostrar o caminho para onde vocês quiserem ir, desde que haja vida vegetal por perto.

Walter recebeu a arma e a estudou.

— Vou cuidar bem dela — prometeu, embora não estivesse muito confiante sobre isso.

— Se me permitem, agora, tenho coisas a fazer. Boa sorte em sua missão, deus Amanaci — concluiu, e se retirou, deixando os rapazes a sós.

— Que diabos você estava pensando, Walter?! — Rick ralhou, quando os dois já estavam afastados o suficiente da tribo dos caiporas.

— Rick, eu não tive escolha — Walter explicou. — Quando eu dei por mim, todo mundo já estava me reverenciando e me chamando de deus Amanaci. O que queria que eu fizesse?

— Eu não sei — Rick gritou, mais alto do que deveria. — Qualquer coisa! Agora estamos nessa missão imbecil, como se já não tivéssemos coisas o suficiente para nos preocupar.

— Rick...

— Sem falar nesse símbolo imbecil!

— Rick!

— Eu nem sequer posso usar meus poderes e estou com uma terrível dor de cabeça. Como vou enfrentar a Sofia desse jeito?

— Richard! — Foi a vez de Walter gritar. — Acha que eu queria estar aqui? Foi você quem me tirou do sossego e me trouxe para esse mundo em primeiro lugar. Além disso, eu salvei a sua vida, mas, se você é ingrato o suficiente para reconhecer isso, talvez eu não devesse ter salvado.

Rick ficou olhando para Walter, com uma expressão um pouco assustada. Mas Walter estava certo, e ele tinha que reconhecer isso. Sentou-se no chão e apoiou as costas numa árvore de tronco escuro.

— Me desculpa, Walter. É que... — Rick se interrompeu, então Walter notou que ele estava chorando.

Não fora a intenção de Walter fazer o rapaz chorar. Ele nem tinha ideia de que suas palavras poderiam ter sido tão duras. Então ele se lembrou de algo.

— Rick. — Walter sentou-se ao lado dele. — Você está preocupado com ela não está?

Walter se lembrava. Quando Sofia veio para a Terra em busca de Rick, ele citou o nome de uma garota. Lilly, caso não estivesse enganado. A conversa não tinha feito muito sentido na hora, mas agora Walter sabia do que estavam falando. Sofia estava usando uma pessoa importante para Rick como refém, esperando chantageá-lo.

— Eu fui um tolo, Walter — Rick respondeu, entre soluços. — Eu não queria me juntar a Sofia porque sabia que Lilly não iria aprovar isso, mas se eu não me juntasse... — Colocou sua cabeça entre os joelhos. — Sofia já deve ter matado ela a essa altura. Eu falhei Walter. Era meu dever proteger a Lilly, mas eu fui fraco...

Walter ficou calado por um tempo, procurando em sua mente algo para dizer. Não queria dizer nada otimista, pois não queria dar falsas esperanças ao amigo, mas tinha que dizer alguma coisa.

— Então foi por isso que foi atrás de mim. Você queria que eu salvasse a Lilly das garras da Sofia, pois você não podia fazer isso diretamente — Walter concluiu, e então suspirou. — Me desculpe. Eu não deveria ter gritado com você.

Rick enxugou suas lágrimas com as costas da mão direita.

— A culpa não é sua — disse. Já não estava mais soluçando. — Você está certo. Isso não tinha nada a ver contigo e eu te arrastei para cá. — Fez uma pausa breve, como se estivesse escolhendo o que dizer a seguir. — Eu vou te levar até o Bart. Ele vai saber como te mandar de volta para a Terra. — Levantou-se, sacudindo a poeira de sua bermuda.

— Espera um pouco. — Walter levantou-se também. — Mas, e você? Se não trouxermos a chuva para a tribo, eles vão te matar.

— Talvez o Bart possa apagar o símbolo — Rick respondeu, mas Walter não gostou da forma como o amigo disse “talvez”.

— E se ele não conseguir? — Walter perguntou.

— Então eu irei aceitar o que vier — disse, apenas. Embora fossem palavras difíceis, Rick as dissera com firmeza.

Walter não podia falar nem fazer muita coisa, então ele somente assentiu. Ambos os rapazes se deitaram sobre aquele gramado úmido para descansar. Walter olhou para o céu sem estrelas e não pôde deixar de ficar um pouco deprimido. O brilho daqueles pequenos astros fazia mais falta do que imaginava.

— Rick — Walter chamou, para ver se conseguia uma conversa fiada antes de dormir, mas quando viu o amigo, ele já havia adormecido.

Dormia até serenamente para alguém que controlava a terra. Rick nem mesmo roncava. Walter virou para o lado, encostando numa árvore, e pegou no sono também.


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