Los Guaimarán escrita por Araimi


Capítulo 3
Capítulo 3




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Quando voltava para os braços de Tia Cecília, era quase como se nunca houvesse saído.

           

Outra carta dela havia trazido Marisela de volta à Araúca. Não houve grandes debates internos dessa vez. Apesar de ter passado a maior parte da carta decidida a não voltar, as duas últimas frases haviam feito Marisela começar a arrumar as malas.

           

Por favor, venha.

           

Santos está morrendo.

           

Câncer. Jamais havia imaginado que o fim de Santos viria daquela forma, nem tão cedo na vida. Dez anos haviam se passado desde a última vez que o vira, mas sabia que ele continuava com o mesmo sorriso de menino que fazia seu coração dar três voltas no peito. Fizera. Agora outra pessoa era responsável por isso, mesmo que Santos sempre fosse especial para ela.

           

Marisela se afastou do abraço da tia, que a observava com seus olhos claros cheios de lágrimas. Ela não havia envelhecido muito, uma ou outra ruga no rosto.

           

— Estou tão feliz que você tenha vindo. – Ela disse em meio as lágrimas.

           

Marisela deu um sorriso amarelo, apertando sua mão levemente.

           

Tia Cecília a puxou para que entrasse na casa de Altamira. Marisela olhou ao redor, já fazia tanto tempo que não entrava ali. Quase nada havia mudado em todos aqueles anos.

           

— Ele não queria que você viesse. – Tia Cecília dizia, fazendo-a subir os degraus da escada. – Não queria que você o visse nesse estado. Por isso não te avisei antes.

           

— Eu gostaria de ter sabido antes. – Marisela reclamou.

           

Tia Cecília lançou-a um olhar.

           

— Uma vez você me pediu que não contasse o que se passava na sua vida para ele. E eu o fiz. Agora foi a vez dele.

           

Ela tinha razão. Além do mais, foi ela quem escolheu sair da vida dele, de todos eles, não tinha mais o direito de exigir coisa alguma. Tia Cecília havia explicado aquilo na carta. Tinha falado sobre a descoberta da doença e seu rápido progresso. Falara sobre como agora não restava nada a ser feito. Santos estava morrendo.

           

Tia Cecília parou em frente  a porta do quarto dele, Marisela ainda se lembrava, e deu três batidinhas rápidas. Colocou a cabeça para dentro e falou algo que ela não conseguiu distinguir. Voltou-se para ela, sorriu, e disse que podia entrar.

           

Marisela entrou nervosa, incerta sobre o que iria encontrar. Santos estava deitado na cama, uma coberta cobrindo suas pernas. Ele estava consideravelmente mais magro e parecia vinte anos mais velho. Havia um cheiro esquisito no quarto, mas Marisela tratou de ignorar quando Santos sorriu para ela. Era o mesmo sorriso de antes. Seu coração bateu mais forte e ela empurrou o choque de vê-lo naquele estado para baixo e sorriu de volta.

           

— Meu sol. – Ele disse com a voz rouca.

           

— Santos. – Ela soltou em um sussurro.

           

Ela caminhou para o lado dele e pegou sua mão estendida. Estava magra e sua pele parecia de papel.

           

— Não queria que você viesse, mas estou tão feliz de te ver. – Ele disse.

           

Marisela sorriu, lágrimas começando a ser formar em seus olhos.

           

— Como eu não viria? Aliás, senhor Santos Luzardo, que ideia foi essa de não deixar me contarem? – Sua voz tinha um tom brincalhão por trás da reprimenda e Santos riu. – Não deveria ter feito isso.

           

Ele desviou o olhar.

           

— Eu sei. Mas eu sempre fiz coisas idiotas.

           

— Isso você fez. – Ela passou uma mão pelo queixo dele, terminando em sua nuca.

           

O cabelo dele estava grisalho e era curto e fino. Marisela trouxe a mão de volta para o seu colo.

           

— Então. – Santos chamou sua atenção. – Eu estou muito mal?

           

Marisela olhou-o séria.

           

— Na verdade, não. Eu estava esperando coisa bem pior.

           

Santos soltou uma gargalhada e Marisela o acompanhou com uma risada. Ele a olhava como um náufrago olha para o seu resgate. Marisela de repente ficou desconfortável.

           

— Senti sua falta, meu sol. Senti falta de como me faz rir. De como ilumina tudo quando está aqui.

           

— Santos...

           

— Eu sei, eu sei. Não vamos falar disso. Vamos falar sobre você então. Não recebo muitas notícias suas. Como está?

           

Marisela começou a lhe contar sobre a sua vida desde a última vez em que se viram. Falou sobre a universidade e que havia terminado seus estudos, contou sobre a escola que trabalha como professora há quatro anos. Contou sobre Maurice e como ele havia derramado um rio de lágrimas quando ela saiu da casa dele e foi morar sozinha em sua primeira casa. Um apartamento quase do tamanho do quarto na casa de Maurice, mas seu, todo seu. Contou histórias sobre seus vizinhos, seus colegas de trabalho, seus amigos, seus alunos.

           

Santos lhe contou sobre as coisas na Araúca, sobre as terneras e seus maridos e filhos, sobre o velho Melésio, sobre as crianças que cresciam em Altamira. Falou sobre seu filho e parecia que poderia passar horas falando sobre o menino. Em como era esperto, como era inteligente, como era habilidoso. Seus olhos brilhavam com admiração e orgulho e amor.

           

Marisela sorria enquanto escutava sobre o menino. Ouvindo Santos falar sobre ele, parecia que ele era apenas aquilo, o filho de Santos; quase se esquecia de que o menino era seu irmão.

           

Durante um silêncio confortável, ainda com um sorriso no rosto por conta de uma história engraçada sobre Frederica, os olhos de Marisela caíram sobre sua mão direita e o anel orgulhoso que brilhava em seu dedo. Pensou se deveria conta-lo. Decidiu que sim. Sem saber ao certo como começar, apenas disse:

           

— Eu estou noiva.

           

Santos não parou de sorrir, apesar de que pareceu ligeiramente menos alegre.

           

— Com quem?

           

— Você não conhece. Eu o conheci na universidade. Se chama Daniel Alvaréz.

           

— É professor também?

           

— Não, ele é publicitário.

           

Santos ficou em silêncio.

           

— Você gosta dele.

           

Marisela nem precisava pensar.

           

— Sim. Muito.

           

Eu o amo. Ela queria dizer, porque o amava. Mas achou melhor não dizer aquilo à Santos. Daniel não era Santos e ela havia desistido de comparar os dois há muito tempo. Não amava um mais que ao outro, eram amores diferentes. Daniel tinha a sua idade, a sua ambição. Ele era bonito, alegre e a fazia rir. Era seu melhor amigo. E o mais importe, ele não trazia nenhum peso consigo, nem havia engravidado sua mãe.

           

— Fico feliz que você esteja feliz. – Santos sorriu de lado. – Você está feliz, não está?

           

— Estou, Santos. Mais do que já estive.

           

Marisela tinha tudo o que sonhara. Bem, um dia havia sonhado com Santos e Bárbara e uma fazenda que nunca foi verdadeiramente sua; mas sonhos mudavam. Assim como ela havia mudado.

           

— Eu também estou feliz. – Santos disse. – Que esteja aqui. Me sinto tranquilo. Como se estivesse esperando por você para me despedir.

           

O coração de Marisela apertou e o sorriso logo foi embora.

           

— Não diga essas coisas. – Ela o repreendeu. A carta dizia que ele estava morrendo, vendo-o até podia acreditar, mas não queria que fosse verdade. – Você não vai morrer ainda. Precisa lutar. Ainda tem um filho menino, não pode deixar ele assim.

           

Santos sorriu, apertando sua mão.

           

— Tenho um filho pequeno. – Ele disse. – Mas nem tenho certeza se realmente faria falta na vida dele.

           

— Não diga isso.

           

— Você não esteve aqui. Eu sei que não fui tão bom pai como gostaria. Como deveria ter sido. Sempre pensei que eu o protegeria de Bárbara e não deixaria que ele visse o pior dela, mas a realidade foi exatamente o contrário.

           

Marisela sentiu-se incomodada em escutar sobre a Dona. Mas Santos continuou.

           

— Sabe, pela primeira vez eu a vejo de verdade. Sem amor, nem ódio, nem nada para tapar a minha visão. E o que eu vejo é uma mulher que, como ela sempre disse, pode contra tudo sozinha. Você vai ver. Quando eu morrer, ela vai chorar umas lágrimas, depois vai pegar o menino, a fazenda e vai seguir adiante. Ela é forte. Como você. Vocês duas são mais parecidas do que qualquer uma admite.

           

Santos sorriu para ela, mas Marisela estava desconfortável demais para responde-lo. Ele bocejou e Marisela aproveitou.

           

— Você deve estar cansando. Vou deixar você dormir.

           

Ele balançou uma mão no ar, dizendo que não estava.

           

— Você também deve estar cansada.

           

Ela estava, havia chegado ao Progresso e ido direto para Altamira. Ainda não havia descansado.

           

— Você vai ficar aqui? – Ele perguntou.

           

Marisela encolheu os ombros.

           

— Não sei. Tenho que falar com Tia Cecília. Acho que vou ficar na casa dela.

           

— Besteira. Cecília está dormindo aqui, você também fica aqui. Peça que Cassilda prepare um quarto pra você. A casa é sua. Vai ficar alguns dias, não é? Umas semanas talvez...

           

Ele tinha um olhar sugestivo e um sorriso brincalhão. Marisela sorriu.

           

— Alguns dias? Tenho que avisar ao Daniel. Mas tudo bem, eu fico alguns dias.

           

Santos assentiu, sorrindo.

           

— Pedro está sempre por aqui. Talvez vocês possam se conhecer. Você vai gostar dele.

           

Marisela sorriu amarelo.

           

— Eu sei o que você está pensando, Santos Luzardo. Nem tente. Não adianta começar a construir uma relação com ele, não vou estar aqui. Assim que esses meus dias acabarem vou voltar para a minha vida normal.

           

Ela até gostaria de ter um irmão mais novo, depois de ver o relacionamento de Daniel com seus irmãos, mas o destino quis que fosse assim, os dois separados.

           

Santos franziu a testa.

           

— Veremos. – Foi tudo o que disse.

           

Ele fechou os olhos e, por um momento, parecia que não iria abri-los mais. Mas os abriu com dificuldade, dando um pequeno sorriso para ela. Marisela acariciou sua mão.

           

— Vou deixar você descansar.

           

Ela levantou-se da cama e Santos perguntou:

           

— Você vai voltar amanhã?

           

Ela assentiu.

           

— Volto. De manhã estarei aqui.

           

Marisela abaixou-se para plantar um beijo em sua testa e saiu do quarto sem mais delongas. Procurou por Tia Cecília e a encontrou na sala, uma xícara de chá em mãos, um olhar preocupado no rosto e três crianças ao redor dela.

           

Um era um menino que se parecia demais com Antonio para não ser Tonito, outra era uma menina de longos cabelos castanhos e um nariz arrebitado, Marisela supôs que fosse Lucia. O terceiro, ela também supôs, deveria ser Pedro.

           

Ele era da mesma altura de Tonito e mais alto que Lucia, apesar de ser mais novo. Sua roupa e sua pele estavam sujas e seu cabelo castanho farto e um pouco comprido estava desgrenhado e apontava para todos os lados.

           

As crianças falavam ao mesmo tempo e Marisela não conseguia entender nada. Muito menos Tia Cecília, que parecia completamente perdida. As vozes só se calaram quando ela mandou que todos ficassem quietos.

           

— Por Deus. – Ela disse, olhando para Pedro. – Onde você estava metido?

           

— É o que nós estamos tentando te falar, mãe. – Era a menina, Lucía.

           

— Pedro? – Tia Cecília falou.

           

O menino deu um passo a frente.

           

— Chuva sumiu. Eu procurei por ela em todos os lugares, mas não consigo achar. Eu caí enquanto estava procurando por ela, por isso estou sujo. Tonito e Lucía estavam querendo me ajudar.

           

Marisela não entendeu nada.

           

— Você viu a Chuva, mãe? – Tonito perguntou.

           

Tia Cecília pareceu pensar.

           

— Eu acho que a vi no caminho para cá. Entre El Miedo e Altamira.

           

As crianças voltaram a falar e pareciam estar armando um plano para recuperar essa chuva. Tia Cecília pôs fim a eles.

           

— Vocês não vão a lugar nenhum. Está ficando tarde e daqui a pouco vai anoitecer. Chuva é uma cadela muito esperta e aposto que já está em El Miedo, esperando por você, Pedro.

           

Agora a história começava a fazer sentido.

           

— Então eu vou pra lá. – Pedro declarou.

           

— Você vai tomar um banho. – Tia Cecília rebateu.

           

— Eu tomo banho em casa.

           

— Está anoitecendo, Pedrinho.

           

— A minha mãe deixa. Eu vou pro Miedo, tomo banho e durmo lá. Ainda procuro a Chuva pelo caminho. Eu sempre ando por esse caminho.

           

Tia Cecília pensou a respeito e por fim assentiu meio a contragosto.

           

— Posso ir com ele, mãe? – Era Lucía.

           

— Nem pensar.

           

— Mas mãe...

           

Tia Cecília viu Marisela nesse momento, ela sorriu para ela e a chamou para perto.

           

— Essa é Marisela Barquero. – Tia Cecília a apresentou. – Ela é a filha do meu amigo, Lorenzo. Eu falei sobre ela, vocês lembram?

           

Tonito e Lucía assentiram, Pedro a estudava com os olhos.

           

— Você é bonita. – Lucía declarou e Tonito concordou com a boca aberta.

           

Marisela riu e agradeceu.

           

— Pedrinho. – Tia Cecília o chamou e o menino desviou sua atenção para ela. – Ela também é filha da sua mãe. É sua meia irmã. Você lembra dela, não? Eu e o seu pai já falamos sobre ela com você.

           

Pedro assentiu, mas não expressou sua opinião sobre ela como os outros. Ele esfregou uma mão em um pedaço relativamente limpo de sua bermuda e estendeu-a em sua direção. Marisela apertou-a com um sorriso cordial, olhando nos olhos de Bárbara atrás daquele menino.

           

— Prazer. – Ele disse baixinho. E olhou para Tia Cecília. – Mas agora eu tenho que ir. Tá ficando tarde.

           

Ele soltou a mão de Marisela e passou correndo por ela.

           

— Oi, mãe! – Ela o ouviu gritar e sentiu um frio percorrer sua espinha.

           

Alguns segundos depois Bárbara Guaimaran entrou na casa, suas botas fazendo barulho e o chicote batendo levemente contra sua coxa.

           

— O que está acontecen... – A frase morreu em sua boca assim que ela viu Marisela. Parou onde estava e colocou as mãos na cintura. – Olha quem está aqui. Bem vinda de volta, filhinha.

           

Sua voz não era de todo debochada, mas não era sincera tampouco. Começou a acreditar no que as terneras falavam sobre a Poça dos Suspiros, porque Bárbara não havia envelhecido um dia. Talvez se parasse para procurar, iria encontrar sinais de que o tempo passou para ela também, mas há primeira vista, ela era a mesma de anos atrás. Seu cabelo estava preso em uma trança de lado e a roupa escura era justa e modelava seu corpo como se ela tivesse a sua idade.

           

— Olá, Dona. – Marisela a saudou com um aceno de cabeça.

           

Tia Cecília ficou de pé, pondo-se entre as duas.

           

— Bárbara. – Ela disse. – Santos pediu que você fosse até o quarto quando chegasse.

           

Os olhos de Bárbara estavam grudados nela, como se fosse uma presa, um sorriso nos lábios. Tia Cecília esperava uma resposta, mas Bárbara não olhava para ela, era impossível dizer se sequer a havia escutado. Por fim relaxou sua posição, desviou o olhar para Cecília e assentiu.

           

— Está bem. – Ela disse.

           

Caminhou ao redor de Marisela, desviando o olhar dela apenas quando começou a subir as escadas.

           

Marisela soltou um suspiro quando não escutou mais suas botas contra o piso e Tia Cecília fez o mesmo. Ela mandou as crianças irem tomar banho e disse que Marisela deveria fazer o mesmo. Levou-a até seu antigo quarto, preparou o banho, lhe deu um lanche e praticamente a colocou para dormir.

           

Pensamentos sobre Santos, o menino e Bárbara martelavam sua mente, principalmente quando estavam eles tão próximos, mas ela estava tão cansada da viagem que dormiu no instante que deitou na cama.


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