A lenda da moderna Mulan escrita por ZodiacAne


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Eu espero que isso esteja bom.
Só declaro que estou apaixonada pela minha Mulan. :3



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Depois de encarar os chatos anos de colégio, finalmente cheguei ao primeiro dia como universitário. Atravessei o portão de entrada totalmente animado para o meu primeiro de aula.

Peguei meu horário no balcão logo a frente e após saber qual era a sala, me dirigi a ela. A vi lotada ao chegar. Só tinha uma carteira livre, bem atrás de uma menina de cabelos bem negros, olhos castanhos e puxados, com um batom bem vermelho nos lábios. Sentei e logo a cumprimentei:

—Bom dia!

Ela se virou naturalmente, sorrindo e respondeu:

—Bom dia. Eu sou a Mulan e você?

—Tiago.

—É um prazer. E qual o seu curso? - ela perguntou isso, pois claramente era uma matéria em que diversos cursos estavam misturados.

—Design de Jogos.

—Que legal! Somos colegas de curso.

E mantivemos um papo bem legal mesmo quando a professora estava explicando o programa da disciplina, que não era nada diferente do que estudávamos no ensino médio. Havia mais uma aula depois, Mulan e eu seguimos para a outra sala e foi então que vimos só o pessoal do nosso curso, já que era algo específico.

No meio da explicação do professor sobre como tudo funcionava e muitas outras coisas, uma dupla de veteranos adentrou e nos falou do trote, que considero inútil, e também de algo que despertou a minha atenção: Um clube de nosso curso, um que já faz alguns jogos simples e os disponibiliza de graça para teste. Eu me interessei pois é um ótimo modo de conhecermos melhor a área em que trabalharemos. Mas, tinha uma regra, que, a meu ver, era meio boba: O clube era exclusivo para garotos.

O sorriso de Mulan, que havia acendido quase em sincronia com o meu, se desmanchou quando ouviu essa frase. E imediatamente ela externou sua indignação, perguntando aos garotos:

—E por que dessa regra? Não achei justa.

—Querida, - eu senti o desdém na voz dele – este não é um curso muito para garotas. E também, de vez em quando produzimos uns conteúdos que talvez algumas “feminazis” reclamariam e pelo visto você também é uma.

—Feminazi não, sou feminista. E admito ser contra a sexualização das personagens femininas, não só nos jogos, mas em outras mídias. Agora, se você produz um date game erótico, não vejo nada de errado nisso. Aliás, os japoneses adoram.

Pude perceber que o professor simplesmente adorou essa mini discussão e sorriu com comentário da Mulan. Mas, o garoto veterano entendeu de outra forma:

—Caloura e ainda quer bancar a engraçadinha. Se quer tanto participar de um clube de jogos, faço um só para você.

—Calma, não precisa se irritar, só lhe fiz uma pergunta. Mesmo que não tenha me convencido com esses argumentos péssimos. – e que nem podem ser considerados como argumentos – Quem sabe não possa abrir um clube exclusivo para garotas e abrimos uma concorrência bem legal nessa coisa de distribuir jogos, pelo menos aqui na faculdade.

O outro ficou sem resposta, apenas agradeceu a atenção de todos e se retirou. A aula prosseguiu normalmente e eu comentei com minha colega:

—Mulan, isso foi sensacional. Você bateu boca com um veterano no primeiro dia de aula.

—Eu não bati boca, só fiz uma questão pertinente. Ele que não a recebeu bem, achou que queria ofendê-lo.

—Realmente.

—Isso só vai me causar problemas no trote talvez, acabei me marcando com ele.

—O que significa isso?

—Você é menino, não teria muito como entender.

—Explique, talvez eu entenda.

—Eu corro sérios riscos de ser assediada no trote. Esse cara me parece fazer isso, notei só pelo jeito dele falar.

—E você vai?

—Tenho que ir. Não posso deixar de viver minha vida com medo de um babaca aleatório. Posso dar um jeito de resolver isso.

—Eu estarei lá também, se isso te tranquilizar de alguma forma.

—Obrigada! - sorriu

O trote seria apenas na semana seguinte, então resolvi não me preocupar tanto com isso.

O resto da primeira semana correu normalmente, mas não vi Mulan pelo menos até a sexta-feira. Não via tanto problema em faltar aulas iniciais, onde não tem nada que claramente cairá em prova.

E eu fiz inscrição para o tal clube da turma, que se chamava: Games para mudar o mundo. Mandei uma ficha com meus dados e seria entrevistado na semana seguinte.

***

O dia do trote chegara, nada demais aconteceu. Tivemos os rostos pintados e pedimos dinheiro no sinal. Mulan estava lá também e nos divertimos bastante.

E como o povo de faculdade gosta de fazer: foram beber depois. Só então notei isso que o veterano falou de “não ser um curso de meninas”. Só consegui contar mais umas cinco além da Mulan.

E claro, os caras todos estavam rodeando as meninas, como se nunca tivessem visto uma na vida. Isso incluía minha nova colega, que mesmo sentada, de boa, conversando comigo e mais uma galera, ainda foi chamada pelo tal veterano, já alterado.

—Ei, Feminazi, vem cá que eu vou te ensinar o que é bom.

Ela fez uma careta e soltou:

—Eu não acredito que estou ouvindo isso.

—Finge que não tá ouvindo.

—É meio difícil quanto tem mais cinco junto dele. Vai ser complicado ir embora assim. - completou com cara de que já não queria ficar nem mais um segundo

—Quer ir embora? Também não tô mais a fim de continuar aqui.

—Vamos sim, Tiago.

E nos levantamos, só para continuar ouvindo até sair do alcance de nossos ouvidos:

—Olha lá, Tiago esperto! Usou os dotes de negão – sim, eu sou negro – para atrair uma japinha. Elas adoram um “super dotado”.

Como íamos ao mesmo ponto para voltar, viemos conversando:

—Isso que eles falam não te incomoda? Eles te zoam por ser negro e eu, por ser asiática.

—E feminista.

—Isso também.

—Sempre ouvi coisas assim na minha vida. Antes até me incomodavam, mas passei a entender que é ignorância deles e que sou bem melhor do que eles dizem que eu sou.

—Deve ser pior do que ser mulher então né?

—Não sei te dizer, porque eu não sou. Mas eu notei o quanto ficou incomodada com os comentários dele. Rolou uma empatia.

—É tão difícil algum menino entender toda essa situação tão rápido. Você realmente deve ser de outro mundo, Tiago. - Ela riu

***

Uns dias depois foi a minha entrevista para o clube. Eu e mais um monte. Mas, tinha um cara diferente. Um rapaz sentado do meu lado e com uma touca na cabeça, aparentava ter descendência asiática.

—Olá, nunca te vi por aqui. Qual seu nome?

—Meu nome é Murilo. Eu sou calouro também.

—Sou Tiago.

Apertamos as mãos.

Passados alguns minutos, eu finalmente fui chamado à sala. E aquilo se assemelhou muito a uma entrevista de estágio, onde perguntaram minhas aptidões e o que eu esperava daquele grupo. Levou menos de dez minutos, e na sequência fora a vez de Murilo. Antes dele entrar, desejei-lhe sorte. Ele agradeceu!

Apenas na semana seguinte anunciariam o resultado. E pelo visto entrariam apenas cinco.

Mulan, mais tarde, via mensagens me perguntou como tinha sido. Respondi que fiquei um pouco apreensivo por eles serem muito rigorosos, mas confessei estar animado para o resultado.

***

Nos dias que se passaram, reencontrei com Murilo e Mulan, mas eles nunca vinham no mesmo dia. Sabia que ambos faziam as mesmas aulas comigo. Estranhamente parecia que eles alternavam nos dias que vinham. Os professores nunca faziam chamada em voz alta, sempre passavam uma lista onde assinávamos nossos nomes. Porém, eu não era amigo de Murilo e nem perto de mim ele sentava nas aulas. Já a Mulan tava sempre comigo.

Talvez fosse só uma coincidência um pouco incomum e tudo o que pensei fosse coisa da minha cabeça.

***

Cerca de uma semana e meia depois, foram anunciados no mural do curso quem tinha sido escolhido para a Games para mudar o mundo. Logo de manhã e logo na entrada. Estranhamente encontrei Mulan parada diante do quadro quando cheguei e ela sorria. Mas o quê? Ela nem tinha se inscrito. Ela nem podia.

—Bom dia, Mulan. - abordei-a

—Meus parabéns, Tiago. Você faz parte do clube. Estou feliz por você!

—Sério? - olhei e confirmei o meu nome lá – Obrigado! - sorri e cocei a cabeça – E eu já começo hoje? Deixa eu ver.

Então, um outro nome me chamou atenção: Murilo. Ele tinha passado também. Acho que finalmente vou descobrir os mistérios em que meti a minha própria cabeça. Ele também parece ser um cara legal.

E por sorte, só começaria no dia seguinte. Que bom! Eu já tinha outros planos para mais tarde.

***

No dia seguinte, foi o dia do Murilo no revezamento. Não sei se ele sabia, mas resolvi avisá-lo de qualquer forma. Assim que entrei na sala, me aproximei dele:

—Cara, não sei se viu, mas você foi aprovado no processo de seleção do clube.

—Ah, valeu. Eu vi meu nome no mural ainda agora. Mas agradeço o aviso.

—Nos vemos mais tarde então?

—Passou também? Que legal! Nos veremos mais tarde sim.

E sentei numa carteira do outro canto da sala. Após as aulas, dirigi-me a sala do clube, que de longe é uma das melhores da universidade inteira.

Entrei e vi dezenas de computadores de última geração dispostos em duas colunas, uma de frente para a outra, no meio.

Os veteranos membros já estavam lá e pediram para nos sentar, pois eles explicariam as regras e como tudo funcionava. Esta foi a fala que ouvimos:

—Olá e sejam bem-vindos a Games para mudar o mundo. Meus parabéns por terem passado no nosso processo seletivo, vocês são os melhores e os escolhidos. Como já lhes foi dito antes, o grupo funciona como uma empresa que produz jogos, maioria deles mobile, mas estamos com um projeto grande, de um jogo de tiro, para outras plataformas, por conta disso abrimos inscrições logo nas primeiras semanas de aula. Muitos se formaram período passado e ficamos desfalcados. Precisaremos da ajuda de vocês nisso tudo. E calma para quem não sabe quase nada, aqui também é um ambiente para aprender. Por enquanto, vocês novatos farão um jogo para mobile, pois tem uns bons meses que não conseguimos fazer nada, já que nossos esforços estão todos nesse jogo principal. Podem se reunir e decidir o que farão. Trabalhem nele e daqui duas semanas vocês nos mostrarão o projeto e uma primeira versão. É isso! Divirtam-se!

Éramos cinco novatos: Eu, Murilo, João, George e Henrique.

Nos sentamos todos juntos na mesa que havia no canto da sala e começamos a nossa primeira reunião.

—Então, pessoal, que tipo de jogo nós faremos? - indagou George

—A gente mal chega e os caras já nos jogam esse pepino. - João reclamou

—Não é óbvio que é um teste? Querem ver do que somos capazes. - Murilo falou

—Então, rapazes, ideias? - Henrique começou

—Sabe, tava pensando na gente fazer um jogo de ação e bem casual. Tipo com uma guerreira ou algo assim.

—De onde tu tirou isso? - João disse meio incrédulo

—Uma das garotas do nosso curso se chama Mulan, e não consigo não pensar naquela bendita lenda e naquela animação e eteceteras.

—Mas o que teria nesse jogo? - Perguntou pertinentemente George

—Pode ser um endless runing, onde uma guerreira de armadura empunha uma espada e luta contra os inimigos na guerra.

—É um mobile, pode ser a ideia mais simples possível. Por que não fazer um puzzle game? - Henrique opinou

—Porque já tem mais uns trezentos que são exatamente iguais. - Murilo, quieto até então, soltou – A ideia do Tiago é bem diferente e original para um jogo dessa plataforma. Eu, pelo menos, nunca ouvi falar de nada parecido.

—E podem ter “fases” em que ela só precisa vencer o ambiente, ou enfrentar alguns desafios. - George gostara da ideia

—Isso pode ser dentro da mudança de cenários que esses tipos de jogos tem. - Henrique completou

—Então, temos nossa ideia? Assim, em menos cinco minutos? - questionei

—Sim, Tiago. - João ironizou – A gente tava sem nada na cabeça, sua ideia foi a única que veio. Vai ser ela.

—Ok! - disse – Já podemos começar a preparar o projeto para apresentar.

Assim, fizemos uma divisão de tarefas, um montaria o roteiro de base, outro faria os esboços dos personagens e cenários, mais um faria a base do jogo em códigos, haveria uma montagem do design do jogo (com as fontes e barras e coisas assim), e o que sobrou compilaria as ideias na apresentação.

Nos faríamos isso no decorrer das duas semanas que se seguiriam. Claro que com um apoiando o outro, trocando opiniões e fazendo o trabalho em conjunto.

***

Os dias de aula e da construção do projeto foram transcorrendo. As reuniões do clube eram três vezes na semana e nós fazíamos reuniões presenciais ali e mantínhamos contato através de um chat em grupo. Então, tudo se construía de uma forma impressionante.

E Murilo só vinha nos dias de clube, Mulan vinha nos outros. Ou seja, ela estava faltando mais aulas do que o normal e Murilo também. Estava me preocupando pelos dois.

Ao abordar sobre este assunto, os dois me deram uma mesma resposta:

—Tem uma pessoa que me passa matéria e assina meu nome na lista. A gente alterna os dias de vir a faculdade.

Aquilo ainda continuava muito estranho. Mas, deixei para lá. Ou pelo menos, eu tentei.

Já na metade da segunda semana, estávamos resolvendo os detalhes finais da apresentação que seria na próxima sexta. Ficamos apenas eu e Murilo por lá, até os veteranos já tinham saído. Eis que, me atento a algo muito estanho na mochila dele. Um chaveiro de uma bonequinha, que era exatamente igual ao que Mulan tem. Além dele, pude ver que o estojo também era idêntico.

—Cara, que chaveiro é esse? - resolvi sondá-lo

Ele deu um pulo e gaguejou:

—É da minha irmã. Como que isso veio parar aqui?

—O estojo é dela também? - apontei

Pude ouvir um resmungo baixo: Não acredito que fiz isso. Para depois ouvir como resposta:

—É sim! - sorriu amarelo

—Seja sincero comigo, Murilo. Você é irmão da Mulan?

—Mulan? Que Mulan? Aquela que te inspirou no jogo?

—Sim. Essa mesma! Você a conhece, não?

—Conheço sim! - ele baixou o olhar, então se dirigiu a mim – Não posso mais esconder isso de você. Será que a gente poderia conversar num lugar mais reservado?

—Tem lugar mais reservado que esse?

—Prefiro que não seja aqui. Podemos ir a lanchonete aqui em frente?

—Claro que sim.

E nos dirigimos até lá, nos sentamos e pedimos um milkshake cada um, ambos de chocolate. Murilo foi direto ao assunto:

—Bem, Tiago, serei bem sincera com você.

—Perai, - interrompi – sincera?

—É! Já vai entender. Bem, o Murilo, ele não existe.

—Ah? - arqueei a sobrancelha – Como assim?

—Feche os olhos e só abra quando eu mandar.

—Tudo bem!

Assim o fiz. Ficando alguns segundos em eterna escuridão e ansiedade. Queria entender logo aquela história maluca. Ao sinal de mandar abrir os olhos que eu finalmente liguei todos os pontos e coloquei os pingos nos is. Mulan e Murilo eram a mesma pessoa.

Ela tirou a touca e passou o batom vermelho. Sorriu quando nossos olhares se encontraram.

—Então era isso o tempo todo? Um disfarce!

—Não! Não é um disfarce, sou eu, só o nome de Murilo que é um disfarce.

Fiz uma careta e ela decidiu me explicar.

—Não sei se já ouviu falar em uma pessoa de gênero fluído, mas eu sou uma.

—Isso só me lembra RPG. Quer dizer que tem dia que você é menina e outro é menino.

—Basicamente sim! Digamos que eu me identifico com os dois ou até com nenhum dos dois, dependendo do dia. Não é coisa de humor não, é que a cada dia eu me percebo de uma forma diferente. E eu passo esses sentimentos, na maioria das vezes, nas roupas, no jeito de falar, na maquiagem, coisas assim.

—Foi por isso que eu nunca percebi pela voz, não é? Você a altera.

—Exatamente. Mas, mesmo para um garoto, a minha voz é bem fina. - e riu – Está surpreso?

—Sim, também um pouco confuso. Por que e como fez para entrar no clube?

—Não é óbvio? Fiz para provar aos veteranos preconceituosos que as garotas podem participar e fazer jogos tão bem quanto eles. E não descumpri as regras, não me condene. Nos dias que vou ao clube, me sinto mais masculina.

—E como fez para alterar os registros da faculdade?

—Não alterei. Eu mexi no meu perfil do site da faculdade, usando o nome de Murilo e com uma foto parecida de quando fiz ao teste. E passei, sem problemas.

—Só você, Mulan.

—Promete que não contará para ninguém sobre isso?

—Prometo. Pode confiar em mim! E, já que estamos compartilhando segredos: Eu sou bissexual.

—Eu imaginei quando o vi trocando mensagens com um “amigo”. - gargalhou – Eu sou Panssexual.

Nossos pedidos chegaram e continuamos conversando e rindo. Nem parecia que uns dias depois teríamos uma apresentação muito importante.

***

Finalmente chegara o grande dia, o dia de apresentar o jogo que chamamos apenas de “Mulan, a guerreira”. Mostramos todo o briefing do jogo, que por sorte também estávamos aprendendo nas aulas de Marketing. Mostramos os designs, as artes iniciais e como foi a evolução até chegamos ao atual momento. Um demo foi jogado pelos veteranos. Cada um do grupo falou um pouco sobre as partes que foram responsáveis. A apresentação fluiu sem maiores problemas e sem nervosismo, pois sabíamos do que falávamos. A gente quem fez!

Ao final, houve um enorme silêncio da parte dos outros membros do clube. Um momento que nenhum de nós cinco saberia o que viria a seguir. Inconscientemente, peguei na mão de Mulan/Murilo para extravasar esse nervosismo.

Então, o líder, aquele veterano que “brigou” com a Mulan no primeiro dia de aula, discursou:

—Meus parabéns, novatos! - palmas se seguiram, quando se acalmaram, ele prosseguiu – O jogo, apesar de simples, tem uma proposta bem legal. E é perfeito para uma plataforma mobile. Sejam oficialmente bem-vindos ao clube. - mais palmas – Continuem trabalhando no seu projeto e nos ajudarão nos que já estão em construção por aqui.

Agradecemos e, por conta do horário, fomos dispensados. Eu e ela seguimos juntos para pegar o ônibus. Então, enquanto estávamos parados, decidi perguntar:

—Vai fazer algo amanhã, Murilo? - eu a chamava pelo nome do disfarce

—Não, por quê?

—Sei lá! Você quer dar uma volta no shopping amanhã? Assim, fora da faculdade e tal, longe desse povo. - ela entendeu bem o que eu disse

—Claro! Onde e qual o horário, moço? - e riu

Decidimos por um local de mesma distância para ambos e um horário no meio da tarde, pouco após o almoço.

E no dia seguinte, lá estava eu, às três da tarde parado, diante do cinema, esperando a Mulan. E ela não demorou a chegar. Apareceu com os cabelos penteados para cima, fazendo quase um moicano, um vestido e tênis.

—Olá, Tiago. - cumprimentou e me abraçou

—Diferente ver você de vestido. E curti o cabelo!

—Por isso que gosto dele bem curtinho, posso usar ele chanel, fazer isso ou colocar uma touca.

—Eu só posso manter o meu bem baixo assim. - passei a mão no meu cabelo – Senão vira black power.

—Quem disse que você não pode usar?

—As pessoas falam, Mulan.

—Elas sempre falarão, Tiago. O que você fazer é ligar para o que elas dizem ou não.

Sorri. Era verdade. Acho que tanto eu quanto ela tínhamos entendido muito cedo na vida a não dar atenção para o que os outros falavam de nós.

Fomos a uma lanchonete dentro do local e passamos horas e mais horas conversando. Sempre rolava um papo legal e bem natural entre nós.

***

E no início da semana seguinte aconteceu algo, que, nem eu e nem ela esperávamos. Pouco antes de ir embora, sai da sala do clube para resolver um problema com minha matrícula. Mulan ficou sozinha no clube, e depois disso iríamos embora. Afinal, éramos os últimos.

Não demorou muito para eu conseguir o objetivo e retornar à sala. Não diria que foi uma surpresa, mas um susto e apavorador.

—Mulan, vamos embora? - entrei abrindo a porta com a maior naturalidade

—Segura ele! - gritou alguém

No segundo seguinte, dois veteranos me seguraram pelos braços e após reclamar para me soltarem que eu notei o acontecia. O tal veterano estava batendo na Mulan e sem pena nenhuma.

—Cara, por que tá fazendo isso? - foi a única coisa que saiu da minha boca.

—Não se preocupe, sua vez vai chegar também, sua bicha. - ele respondeu dando mais um soco no rosto dela

—Acha que não vimos vocês dando as mãos na apresentação na sexta e depois combinando de sair? Seus viadinhos de merda! - um dos que me segurava disse e depois me bateu, com um soco certeiro no estômago

Eu cai, sentindo toda a dor e uma vontade maldita de vomitar. Então, o mesmo pegou minha cabeça e bateu em meu rosto.

De repente, ouvi o que estava do outro lado falar:

—Que faixa é essa? - referindo-se a que ela usa para esconder os seios, parecia que havia aberto a camisa de botões dela

—Não mexa ai! - Mulan soltou, pude sentir o choro na voz

—Por que não? - algo se rasgou – Você é uma garota? Não acredito!

—Quem foi que você chamou quando entrou? - meu rosto foi direcionado ao olhar do segundo veterano

—Mulan. - não podia mentir

—É aquela garota do primeiro dia de aula. - bravejou o líder - Sua puta! Agora vai conseguir o que quer e não vai adiantar pedir socorro. A única pessoa que poderia te ajudar também está sob nosso controle.

Foi então que os novatos entraram e imediatamente apagaram os próximos a mim, chamando atenção do outro, que tomou um soco lindo da Mulan, que quebrou o nariz dele e o fez cair gemendo de dor.

Ela se levantou depressa, fechou a blusa com uma das mãos e com a outra pegou nossas mochilas e falou:

—Vamos embora daqui!

E nós quatro a seguimos, parando apenas do outro lado da faculdade, bem longe da sala do clube.

—Você está bem? - perguntei

—Estou sim, Tiago. Não sei o que teria sido de nós se não fossem o João, George e Henrique. Obrigada, meninos!

—A gente estava por perto, ai vimos os veteranos entrarem quando o Murilo – pigarreou Henrique - estava sozinho e depois o Tiago foi para lá e vocês não saiam.

—Sentimos que havia algo errado. - completou João

—Vem cá, você é mesmo uma menina? - questionou George

—Em questão biológica sim, mas não “sou” uma garota o tempo todo. Sou Mulan, prazer. - e riu, como se fosse a coisa mais normal do mundo, os três fizeram careta, sem entender – Digamos que eu me disfarcei para provar ao veterano machista que garotas podem fazer bons jogos sim. E fizemos isso na sexta.

—Quer dizer que o Murilo não existe? - Henrique disse

—Exatamente. Só que ele vive dentro de mim, em algum canto.

—Mas, depois do que aconteceu, como fica a gente com o clube? - George pontuou, pertinentemente

—Não fica! Pelo menos não eu. Não seria aceita de novo, por razões óbvias. Façam o que quiseram, meninos, agradeço pelo que fizeram por mim agora. De verdade!

—Não foi nada. Fizemos o que achamos que devíamos. - sorriu João

—Você vai ficar bem mesmo? - indagou Henrique

—Ficarei sim. Obrigada de novo!

Assim, eles se despediram de mim e de Mulan. Eu não podia deixá-la sozinha. E foi ai, que eu me surpreendi com ela, que me abraçou e desabou. Não precisou ela falar, eu tinha entendido: só confiava em mim para poder chorar daquele jeito. Uns minutos depois, quando ela se acalmou, eu disse:

—Eu vou com você para sua casa e depois vamos denunciar esses caras.

—Tiago, não precisa disso.

—Mulan, - peguei seu rosto e a fiz olhar para mim – o que aconteceu ainda agora não foi nada. Não, é você que diz que não tem que ficar calada?

—Sim. Mas... - ela não tinha argumento

—Então, nós vamos colocar um gelo nesses roxos e vamos a delegacia para denunciá-los. Mesmo que tenha mentido para eles, isso não lhes dá o direito de te violentarem.

E foi assim que fizemos, mesmo que tenhamos passado o resto do dia para tal.

***

Alguns meses se passaram e tudo mudou na universidade. Por conta da agressão, os veteranos perderam o direito de continuar com o clube e não demoraria muito para que eles pagassem o que fizeram com a Mulan (e comigo) naquele final de tarde. Eles podem pegar até uns treze anos de prisão. Os garotos que nos ajudaram foram nossas testemunhas no caso.

Um novo clube, o Games para diversidade, foi aberto e quem é a líder: sim, a própria. (Não vou dizer o nome, vocês sabem.) Os outros membros são o João, George e Henrique. Em breve abriremos inscrições para novos membros e todos podem participar.

Alias, estou assistindo a uma palestra ministrada por ela. O tema? Claro que é sobre personagens LGBT nos games. Ontem mesmo, ela também palestrou sobre ser uma pessoa de gênero fluído. E ouvi sobre coisas que nem eu mesmo sabia, mesmo com o convívio diário com ela.

Ainda lembro do dia em que a Mulan me contou sobre A Balada de Mulan, que foi o poema que inspirou tantos filmes e doramas, que tanto ela e a família gostam. (Ainda mais a avó.) E não pude deixar de associar tudo o que aconteceu a essa personagem que, com certeza, inspira, e muito, a Mulan que vejo diante de mim falando para mais de cem pessoas no auditório. Não foi um disfarce de doze anos, mas de alguns dias, que ainda continua dando frutos.

Um alvoroço de palmas se seguiu após o agradecimento dela ao final. Ela desceu e se sentou ao meu lado, sorrindo e pegando na minha mão.

—O que achou, em, Tiago?

—Eu sou suspeito para falar. - ri baixo – Adoro te ouvir falar. Eu gostei, não conhecia todos esses personagens.

—Seu bobo! Você me viu pesquisando em casa.

—Sei disso. Só não prestei tanta atenção assim. Queria ver na apresentação.

—Uma pena que não tinha sua mão para segurar lá. Acabo ficando nervosa sempre, desde o colégio é assim.

—Na próxima vez, eu fico ali na frente então.

—Não! Não! Fica aqui atrás. Olhar para você enquanto falo me acalma e consigo dar impressão que estou falando para a plateia.

—Tá bom! Se assim quiser.

—Vamos ao cinema depois?

—Claro que sim! Tô louco para ver aquele filme e ficar sozinho com você.

Ela sorriu, daquele jeito que passei a amar.

Nesse momento, o professor encerrou a atividade e dispensou todos. Mulan e eu saímos, de braços dados. Quem diria que eu e ela acabaríamos namorando, não é?


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Notas finais do capítulo

Comentem e façam a autora feliz!
Agradecimentos as lindas moças do grupo Pessoas Femininjas e Escritoras, que tiraram minhas dúvidas sobre gênero fluído.