Torna-te Minha Rainha escrita por kalliope
Inglaterra, 1936.
Quem assumiria o poder naquela manhã ensolarada de 20 de Janeiro era Edward VIII. Sempre exalando todo seu charme, seja através das expressões fantásticas de seu olhar azul-profundo ou de sua postura extremamente elegante; Edward havia conquistado a lealdade e a empatia de seu povo desde o berço, além de ter causado grande influência nos Estados Unidos e em alguns outros países da Europa.
O povo todo estava reunido para o festejo. Havia bandeirolas com as cores representativas à pátria e rostos felizes aos montes pelas ruas britânicas.
O antigo rei, seu amado pai, havia terminado seu labor com grande honra e faleceu no grande ápice de seu reinado, mas Edward ainda não estava totalmente preparado para assumir a Inglaterra.
Embalada por uma melodia aleatória da rádio AM e envolvida pelo aroma marcante do chá de hortelã. Aimee dormiu. Eram 23:00pm, e 02:00am quando começou a sonhar.
Um vestido longo, branquíssimo e todo rendado era o que ela usava. O cabelo estava emboscado em lindos laçarotes de seda, e os olhos brilhavam de puro esplendor.
Aimee atravessava graciosamente uma poça de sangue razoável. Os pés descalços e a barra do vestido branco estavam manchados de um rubro denso. Intenso.
— Eu não disse Oliver, que seria uma rainha? — perguntou ao ar — Olhe para mim Oliver, eu sou sua soberana! — exclamou para o nada, com um toque maníaco no falar.
Caminhava sobre o sangue. E ria deliciosamente.
Tudo se tornou em um breu profundo. As coisas que restaram foram, então, o som do caminhar molhado e o riso.
O brilho do sol foi entrando manso no quarto de madeira fosca, despertando Aimee de seu sono. Deslizando sua pele para fora dos cobertores emplumados, ela levantou-se disposta, com um sorriso largo no rosto.
Aquela era a manhã de 21 de Janeiro de 1936, o dia que o povo jazia sob nova ordem.
Assim que deu o primeiro passo no assoalho frio, Aimee lembrou-se da sensação de pisar em sangue derramado. Um arrepio a tomou naquele segundo elétrico. Até ao espelho, ela andou devagar, contemplou o próprio rosto e riu, tal como no sonho lúcido. Suas feições atraentes e marcantes de uma donzela no auge de seus dezenove anos de idade lhe imputavam a imagem de uma incrível rainha, dissimulada e apaixonante.
Ali, não muito distante do casarão da família Holder, estavam sendo selecionados os novos servidores da Coroa. Aqueles que teriam praticamente contato direto com o próprio rei em diversos serviços, desde a manutenção dos estábulos até a limpeza da coroa real.
Aimee escolheu seus melhores sapatos e tropicou nas escadas rangentes de madeira para chegar até a cozinha — lugar de onde se originara aquele aroma de hortelã — e estalou um beijo na bochecha da mãe; pegou uma maçã na cesta de vime e saiu porta a fora, exuberando uma energia revigorante.
— Aimee! — Usando aqueles costumeiros suspensórios, era Oliver que se aproximava. — Está linda esta manhã. — Ele a examinou de cima a baixo, sem qualquer espécie de malícia em seu sorriso branco. — Para onde vai?
Aimee moveu um sorrisinho presunçoso no canto da boca e descansou a palma de sua mão no ombro do amigo.
— Vou tentar a sorte, querido Oliver. — Ela observou a tensão do rapaz na área tocada por sua mão, e se divertiu. — Irei conseguir um trabalho no palácio, depois, lutarei para me tornar uma rainha. Eu disse que me tornaria uma rainha, lembra? — instigou.
Oliver fora atingido de surpresa por aquela notícia. Com a respiração entrecortada, ele vasculhava em sua mente mais de mil formas de fazer ela desistir daquilo. Era óbvio que não queria perde-la, e mais óbvio ainda que não teria como impedi-la àquela altura. Ele a conhecia desde a infância, e essa ideia já havia tomado a cabeça dela desde esses tempos.
— Mas isso é covardia! Se o novo rei pôr os olhos em você, nunca vai te deixar voltar — concluiu ele, reconhecendo o potencial da jovem moça a sua frente. — Sua mãe sentirá tua falta, Aimee. Eu...
Os olhos azuis de Oliver marejavam enquanto ele escorria os dedos por entre as madeixas suaves de sua amada, já sentindo a dor da despedida. Ele sabia que, naquele momento, perderia de vista sua maior paixão em potencial, a razão de suas emoções baratas nos solitários sábados à noite.
Totalmente fria, Aimee segurou forte o pulso do rapaz.
— Bem disseste, meu amigo. — Ela o encarou. — O Rei — finalizou, trazendo uma relevância dolorosa à palavra "rei".
Virou as costas e tomou seu caminho, deleitando-se com a expressão quebrada que deixou no semblante de seu melhor amigo. Seu único amigo, aliás.
Os sapatos novos da garota amassavam as minúsculas flores do caminho feito no campo que a levaria até ao grande salão, localizado no centro pequeno da cidade pequena. O primeiro passo para realizar seu maior sonho. E ela garantiu a si mesma que aquela seria a última vez que andaria a pé em um campo aberto por mais de vinte minutos.
"Apenas carruagens de luxo daqui pra frente" — garantiu a si mesma.
Ao levantar os olhos, Aimee viu um aglomerado de pessoas em derredor ao grande salão. Pessoas simples, humildes, de todas as idades, era o que tinha por lá. Na ansiedade, ela encheu os pulmões e forçou suas canelas a levarem-na mais depressa ao destino.
"O rei procura por pessoas saudáveis e jovens para lhe prestar serviço". "Homens bilíngues são os favoritos a cargos maiores" — foi o burburinho que Aimee ouviu ao chegar ao local.
— Srta. Harper, por favor dirija-se ao salão — chamou a voz esganiçada de uma dama idosa, posicionada em roupas finas sobre um palanque de madeira.
Do meio da pequena multidão, surgiu uma moça pálida e de cabelos encaracolados na cor do mais silvestre e dourado mel; tinha no máximo seus dezessete anos de idade. Ela andou, apreensiva, até o salão. As portas foram fechadas, deixando Aimee do lado de fora, remoendo uma certa inveja.
Alguns minutos depois de ser duramente entrevistada, a jovem moça deixou o salão com uma carta selada em mãos. Uma felicidade inocente habitava seu rosto pálido e subia a seus olhos caramelados.
Espreitando a moça, Aimee percebeu que a conhecia. As duas haviam divido a mesma turma de alfabetização alguns anos atrás. E aquilo seria um ótimo viés para uma aproximação.
— Parece que alguém tirou sorte grande... — comentou, perto da garota, conseguindo sua atenção.
— Realmente! Estou sem palavras. Nunca mais terei que fiar para sobreviver. Consegui um emprego na limpeza dos aposentos reais, além de uma viagem paga até Londres. É incrível! — exclamou a jovem Srta. Harper, revelando sua boa nova.
Era totalmente normal alguém ficar exuberantemente feliz ao receber a garantia de emprego naqueles tempos difíceis — quando o país tinha a poucos anos atrás enfrentado uma das piores crises da história —, e quem dirá ainda tirar a sorte de conseguir um emprego no Palácio real.
Aimee construiu um falso sorriso no rosto e congratulou a jovem.
— Meus parabéns...
— Oh, sim, mil perdões, eu não me apresentei. Sou Lizzie Harper, mas pode me chamar apenas de Liz.
— É um prazer conhece-la, Liz. — Aimee inclinou levemente a cabeça, em um gesto gentil e delicado. — Sou Aimee Holder, já fomos colegas de classe na Dartmoor Primary School.
Lizzie apertou os olhos e fitou Aimee, recorrendo às suas mais profundas e escondidas lembranças.
— Perdoe-me Srta. Holder, mas não me recordo de seu rosto.
É claro que ela não lembrava, era muito jovem na época. Mas Aimee lembrava de tudo, até de como enganou a pequena Liz de seis anos, colocando em seu lanche a cabeça de um pássaro em decomposição; ou quando a traumatizou, matando seu gato siamês com um cutelo enferrujado.
— Se estiver livre, podemos ir até a ponte Huccaby e conversar mais — Aimee propôs. — Está um dia lindo — justificou.
— Eu adoraria — concordou, inocente.
E se foram elas, caminhando até a ponte, pelos campos e por uma pequena estradinha de areia no meio de uma floresta de pinheiros. Tudo sob aquele sol tão bonito e raro naquela terra de garoas geladas e dias acinzentados.
Aquele era um cenário amável. Duas moças jovens em seus vestidos leves andando sorridentes, lado a lado, pela margem do rio West Dart. Lizzie ainda segurava em mãos sua carta de contratação de serviços do Palácio, e Aimee, nada. Depois de caminhar, espairecer e conversar trivialidades, as duas pararam à entrada da ponte.
— Liz, querida, conte-me mais sobre sua família — puxou Aimee.
Perdendo aquele sorrisinho adocicado, Lizzie apoiou a mão em uma das pedras que erigiam a ponte. Seus olhos caramelizados agora estavam tristes, e fitavam o lago.
— Sabe, Aimee, quando alguém te pede para falar de família, o normal é sentir-se alegre. É uma pena que não seja o mesmo comigo — lamentou. — Meu pai vive perdido nos bares da cidade, meus irmãos mais jovens estão sempre doentes, e minha mãe não tem condições de nos dar uma vida melhor. Daí eu tenho que fiar até meus dedos esfolarem, para ao menos manter aqueles dois pestinhas vivos — ela riu, mas não de alegria.
Forçando uma sensação de pena, Aimee deu um abraço confortável em Lizzie e deixou palavras de consolo em seu ombro enquanto lágrimas rolavam.
— Mas pelo menos agora eu terei uma chance — começou a jovem Liz. — Vou trabalhar no Palácio e dar uma vida melhor para todos eles — afirmou, enquanto tentava um sorriso.
Ainda abraçando a garota, os olhos de Aimee lampejavam por causa da loucura que ela estava para cometer.
— Você é uma boa menina, Lizzie — amaciou. — Esse mundo podre não merece uma pessoa como você.
Num movimento rápido, Aimee posicionou as mãos na nunca e no queixo da menina Harper. Em um golpe certeiro e fatal, chocou a cabeça dela contra a pedra irredutível da ponte. Era granito puro. Ouviu-se o rachar do crânio frágil de Liz, junto a um grunhido feminino terrível. Logo, aquele corpo pálido desfaleceu à margem do rio, que estava plácido naquele momento fatídico.
Satisfeita, Aimee abaixou-se e recolheu das mãos da moça sem vida a determinante carta de contratação de serviços do Palácio.
— Desculpe, Liz — lamentou sobre o corpo estático. Aqueles olhos caramelizados estavam assustadoramente desvanecidos. Uma linha de sangue escura e espessa caminhava de uma das narinas até pingar no chão. — Vá em paz querida — despediu-se baixinho enquanto empurrava o corpo para a água, para ser engolido pelo rio.
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