Karina, a anti-caçadora escrita por Tynn


Capítulo 2
Capítulo 2 – Você não é meu convidado




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Eu definitivamente não gostava de andar sozinha de madrugada. Os olhares das pessoas na rua me inquietavam, sempre me julgando indefesa e vulnerável. Eu me irritava a cada par de olhos que me encarava com pena, como se eu fosse um coelhinho inocente andando em uma jaula de leões. Eu não sou frágil. Será que precisava gritar para a sociedade entender isso?! Vez ou outra, algum engraçadinho tentava puxar assunto comigo, achando que eu ia cair em algum truque patético. A única coisa que eu fazia era girar o braço do vagabundo e ameaçar quebrá-lo em dois. Isso sempre dava certo. Naquele dia em especial, eu estava sendo seguida. De novo.

Os meus passos eram firmes, como sempre foram, e eu levava nas costas o meu arco e flecha, embaixo da bolsa. Era difícil reparar naquela arma quando se escurecia e todo tipo de gente andava por aí. Muitos até confundiam aquilo com um suporte para trabalhos de arquitetura; vai entender? Eu virei na rua da minha casa, sentindo os passos que me seguiam de perto e sumiam misteriosamente quando eu olhava para trás. Ótimo, era um vampiro. Eu sinceramente prefiro tratar com os mortos do que com os vivos.

Abri a porta para o pequeno jardim da minha casa, uma residência marrom com um toque meio retrô. Por mim, eu deixaria a casa mais gótica, mas Samantha fazia questão de colocar umas flores na janela e deixar tudo muito bonito e arejado.

Girei a chave pela segunda vez quando cheguei à porta principal, virando o rosto para os lados a procura do meu perseguidor. Se fosse mesmo um vampiro, eu estaria salva assim que entrasse em casa.

— Karina! – Samantha gritou subitamente, fazendo com que eu levasse um susto. A mulher estava segurando seus bolinhos caseiros sob uma forma de metal, as mãos escondidas debaixo de luvas térmicas. – Você aceita um bolinho delicioso?

— Eu nunca como os seus bolinhos, Sam. – Disse simplesmente, atirando-me no sofá da sala. Olhei de relance para a janela, observando um vulto passar. – Tem alguém aí fora.

— Que ótimo! Aposto que ele vai adorar os bolinhos que eu fiz, já que você se recusa a experimentar. – Samantha, uma mulher de meia-idade e cabelos loiros, abriu a porta principal. Eu exasperei, nervosa. – Oi, tem alguém aí? Quer experimentar os meus bolinhos caseiros deliciosos? Foi tia Sam quem fez.

Qual o problema dela? Eu até aceitava que usasse um vestido de babado dos anos 1950, com aquele cabelo cheio de laquê que só minha bisavó usaria na sua época de moça. Até entendia sua paixão por bolinhos caseiros de chocolate. Mas abrir a porta para um desconhecido às 2 horas da manhã?! Santa paciência, Sam!               

Eu puxei o meu arco e flecha automático enquanto a mulher olhava de um lado ao outro da rua, tentando encontrar a pessoa que provavelmente queria me matar. Dei alguns passos até a porta e olhei por cima do ombro de Samantha. O bairro era tranquilo, nenhum carro ou alma viva andava pela rua. Por isso, logo suspeitei quando escutei o farfalhar de folhas na casa do vizinho.

— Entre agora mesmo! – Puxei Samantha pelo braço, obrigando-a a voltar para dentro da casa, e apontei o arco e flecha no peito do vampiro, que saltou para nosso jardim. Ele não me pareceu surpreso. – O que você quer?

— Está com medinho, é? – Ele sorriu para mim. Sua cara era uma mistura bizarra de rugas proeminentes e espinhas. – Eu nunca vou querer te morder. Você fede como um esgoto.

— Eu tive um dia cheio hoje. Dá para ir direto ao assunto? – Fiz menção de atirar a pequena estaca com minha besta automática e ele estremeceu.

— Eu tenho um recado do vampiro Amum.

— Ele tem meu whatsapp. Não precisaria mandar um urubu como você até aqui.

— Isso são modos, Karina? – Samantha me interrompeu.

Ela estava atrás de mim assistindo a cena como se visse um show de horrores. A mais velha me empurrou delicadamente com o seu próprio bumbum, fazendo um movimento com a cintura que me deixou enjoada. Ela sorriu para o vampiro desconhecido, tratando-o como um convidado ilustre ao mostrar seus doces deliciosos. Ela devia estar se achando em um comercial de televisão!

— Você por acaso não quer experimentar meus bolinhos deliciosos? Humm... Estão uma delícia!

Eu bufei atrás dela. Pude ver que o vampiro segurou o riso, parecendo se divertir com a cena enquanto eu analisava os fatos. Era estranho o mestre Amum ter mandado um vampiro como mensageiro. Ele tinha várias formas de entrar em contato comigo. Contudo, isso não seria impossível. Talvez se a mensagem fosse urgente, ele poderia até mandar um de seus lacaios para cá. Eu só não era obrigada a atendê-los com hospitalidade.

— Eu adoraria experimentar os seu bolinho. – Ele respondeu.

— Vampiros não comem bolinhos, Sam. Saia daí! – Avisei, tentando empurrar a mulher. Ela me encarou furiosa.

— Ele pode querer experimentar um se quiser. Olhe, ele tem dentes e boca! Deixe de ser antipática, assim nunca vai encontrar um bom partido. – Eca! Eca! Eca! Eca! Samantha simplesmente ignorou minha ânsia de vômito. O vampiro, com sua pele pálida e boca seca, estava achando a cena o máximo.

Nós podemos entrar?

Nós? Quem mais estava ali perto do vampiro? Eu girei minha besta, tentando encontrar outra criatura que estivesse junto dele. Vi um morcego voando perto das nuvens, um gato miando no outro lado da rua e uma barata no muro do jardim. Vampiros devoradores de sangue? Zero.

— Claro! Por favor, fique à vontade! – E então, Samantha fez a coisa mais estúpida do mundo. Ela afastou-se da porta, apesar do meu contragosto, e atendeu o vampiro com cortesia. Eu mesma queria pular em cima dele, mas sabia que era errado matar a visita dos outros. Samantha ficaria extremamente irritada comigo. E, acredite, nunca é bom quando Sam perde a cabeça.

O vampiro entrou sorridente, elogiando o avental cor-de-rosa de Samantha e pegando um dos bolinhos da mulher. Eu não deixei de apontar a besta para o seu peito durante um segundo sequer. Samantha não poderia me obrigar a deixar de fazer isso, apesar de suas caretas de reprovação.

A casa não era enorme, mas com certeza era aconchegante. O vampiro sentou-se em um dos sofás colocando o pé sobre a mesinha de centro. Samantha deu duas tapinhas na perna do “visitante”, que se comportou com mais modos diante da anfitriã, sentando-se direito. Ela foi até a cozinha e pegou uma jarra para carrega-la até a sala. Despejou o líquido vermelho no copo para o vampiro.

— Então, diga-me o seu nome. – Ela iniciou a conversa, empolgada.

— Sério que a gente vai fazer isso? – Tinha vezes em que eu simplesmente não suportava os bons modos de Samantha.

— Não ligue para a pequena Karina, ela é um pouco revoltada. Coisa da adolescência.

— Que estranho, Amum só falou elogios sobre a anti-caçadora. – Deu para sentir a ironia na sua voz. Ele pegou o copo e deu um gole, seguido de uma careta. – Isso é sangue de galinha? Ugh!

— Sim, nós não gostamos de roubar o estoque de sangue da cidade. Espero que não se incomode. – Samantha pegou um prato com biscoitos e o colocou ao lado dos bolinhos. – Você ainda não se apresentou.

— Ah, eu sou muito mal-educado mesmo! Me chamo Benjamin e moro em um beco apertado perto do centro da cidade. As pessoas não costumam gostar muito daqui. – Eu entendi a referência. Os vampiros não gostavam de mim, tampouco queriam me morder. – Amum pediu para que eu entregasse um documento para sua ‘’queridinha’’.

— Cadê? – Perguntei rispidamente.

Ele tirou do bolso da calça um papel todo amassado. Tentou desdobra-lo, mas só o fazia ficar cada vez mais amarrotado e difícil de ler. Eu puxei o papel da mão do vampiro, tentando entender o que era. Existia uma foto nele; uma foto de uma garota. Mas antes que eu pudesse ler o restante das informações, as janelas de vidro se quebraram em mil pedaços. Nós estávamos sendo atacados.

Puxei minha besta e atirei no primeiro vampiro que entrou pela janela, o pó se espalhando pela sala. Alguém teria que limpar isso depois, hein?! Girei meu corpo e chutei a barriga de uma segunda criatura, que entrou em seguida. Puxei a minha bolsa do chão, pegando uma estaca e cravando no peito do vampiro. Ele se desfez em pó no mesmo instante. Deveriam existir quantos ali dentro? Eu não sabia direito. Vi Benjamin segurando os braços de Samantha, prendendo sua boca com as mãos. A mulher parecia inconformada com aquilo. Eu podia até ler seus pensamentos: “Samantha, não mate os nossos visitantes!”.

Outro vampiro pulou na minha frente, deferindo um golpe no meu rosto. Girei o corpo e escapei, dando um soco em seu estômago e dando-lhe uma rasteira. Ele caiu sobre a mesinha, derrubando os bolinhos no chão. Ele terá que pagar por isso! Puxei a estaca e cravei no seu peito. A nuvem de pó me fez tossir agoniada.

Benjamin carregou Samantha até a porta dos fundos, onde mais dois vampiros tratavam de lhe dar cobertura. Eu carreguei a besta com uma estaca, a mira apontada no peito daqueles vagabundos.

— Amum só mandou entregar a mensagem para você! Ele disse que eu poderia fazer o que quisesse com a sua madrasta. E ela parece apetitosa. – O vampiro olhou para o pescoço de Samantha, sedento. –Os vampiros do Beco irão adorar quando eu contar o que fiz! Eu vou ser demais!

O vampiro ao seu lado virou pó quando atirei com a besta. Benjamin não pareceu impressionado, sabia que teria tempo de sair pela porta dos fundos com Samantha. A mulher, entretanto, estava perdendo a paciência. Parecia nervosa com a quantidade de pó que iria varrer durante aquela madrugada. Ela fechou os olhos.

Eu pensei em pegar mais uma estaca, mas sabia o que iria acontecer em seguida. Sentei no sofá para aproveitar o momento. O corpo de Samantha começou a ficar verde-acinzentado e seus olhos adquiriam uma coloração negra. Ela abriu os braços de súbito, arremessando Benjamin contra a parede com uma força sobre-humana. Garras saíram das mãos da mulher, assim como seus pés que ficaram grandes e feiosos. Ela fez uma careta de raiva, atacando o penúltimo vampiro ainda vivo em nossa casa. A criatura virou pó quando Samantha tirou-lhe a cabeça. Ela virou-se para Benjamin, que tremia no chão.

— Desculpa, desculpa! – Ele encarou o rosto transfigurado da mulher que sorriu subitamente.

— Você realmente não vai querer os bolinhos? Aposto que dá para salvar alguns do chão. – A voz doce de Samantha falou, voltando a sua forma humana. Ela correu até a mesinha e tirou um bolinho meio amassado, meio redondo. – Você ainda é meu convidado. Sinto muito pelos outros, mas eles fizeram um estrago e tanto.

— Sam! – Repreendi. Ela olhou para mim curiosa e, num instante, Benjamin fugiu pela porta dos fundos. – Quando alguém tenta te comer, você mata essa pessoa. Quantas vezes eu preciso dizer isso?

— Eu não sou de guardar rancor, Karina. Você sabe disso.

Eu respirei fundo. Não era fácil conviver com Samantha.

Nós trancamos as duas portas e voltamos para a sala, onde eu pude pegar o papel todo amassado que Benjamin me entregou. Nele, tinha a foto de uma adolescente e as seguintes palavras:

— Alessa Davis, 16 anos, Colégio Batista Campos Miranda. – Li em voz alta. Samantha já estava com a vassoura na mão quando me escutou, varrendo as cinzas.

— Você ainda está procurando a caça-vampiros?

— Sim, afinal ela matou os meus pais. – Eu respirei fundo, inconformada. - E eu vou vingá-los.


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