Karina, a anti-caçadora escrita por Tynn


Capítulo 1
Capítulo 1 - Você não precisa da minha ajuda




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A menina corria desengonçadamente na floresta. Ela parecia uma pequena anã de jardim de tão estranha que estava a combinação de suas roupas: camisa rosa-choque de botões, com uma blusa verde embaixo, daquelas bem escandalosos. Para completar, ela usava calça boca-de-sino. Sobre o sapato, era difícil eu opinar porque não conseguia ver os pés dela. Eles bruxuleavam demais, mais do que o resto do seu corpo. Eu sei que almas penadas costumam ser bizarras e quase transparentes, só que essa daí queria mesmo era aparecer.

— Ande logo, Karina! – a menina gritou lá na minha frente. Será que ela não conseguia ver a dificuldade que era correr em uma mata fechada? – Os adolescentes estão aqui perto.

— Eu não consigo flutuar como você!

Saltei mais um lance de raízes e voltei a correr entre as árvores. Estava de noite, por isso correr naquele lugar se tornava um obstáculo e tanto. Ainda bem que a luz da lua iluminava boa parte do caminho. Eu continuei meu percurso em falso, até a alma penada parar de correr e eu esbarrar nela. Se ela fosse de carne e osso, provavelmente nós duas já estaríamos embolando mata abaixo; só que a garota era como um grande gás flutuante com o formato de criança. Paramos diante de uma clareira, onde um grupo de adolescentes parecia jogar... Verdade e consequência?!

— Sério que você quer que eu os espie agora? – Eu estava furiosa com a ousadia da alma. – Sabe como os adolescentes são nojentos nesses jogos?

— Espere um pouco, Karina! Você vai entender o que eu estava falando.

Bufei. Aquela menina abusava da minha paciência.

O grupo à nossa frente era composto por seis pessoas: três meninas e três meninos. Eu estremeci só com a ideia de como aquele jogo iria terminar. Vi o grupo de amigos rirem quando a garrafa girou por alguns instantes e parou entre uma menina loira e um garoto magrelo. Os dois trocaram olhares nervosos enquanto o restante do grupo gritava: “Beija! Beija! Beija!”. A dupla se encarou por um tempo, como se trocassem uma conversa silenciosa com o olhar.

— Ah... A adolescência... Tempo das descobertas, dos namoros, dos primeiros beijos... – a alma falou como se lembrasse dos bons tempos.

— Eca! Você ainda é uma criança! – acusei.

— Ei, lembre-se que eu sou um espírito milenar! Já tive vidas em que morri depois dos 75 anos de idade. Eu gosto da minha aparência como criança apenas para assombrar humanos.

Ignorei aquilo, encarando os jovens sorridentes. A cena me lembrava da vida que eu teria se fosse uma adolescente normal. Eu não tinha amigos para trocar risadas ou confidências. Isso não passava de uma grande página em branco na minha vida. Em vez disso, eu saia para resolver problemas que meu mestre não era capaz de solucionar, como ajudar almas penadas ou matar monstros irritantes. Senti um vento gélido na minha barriga e olhei para baixo: Lorena, a menina fantasma, estava tentando me cutucar.

— Olhe! – Ela apontou para o casal de amigos que agora trocavam um beijo muito tosco entre as árvores. Os outros quatro jovens cochichavam perto da garrafa.

— Já vi isso na televisão – eu disse.

— Não, atrás deles! – a menina avisou. Só então meu coração bateu mais acelerado.

Uma silhueta masculina esgueirava-se entre as folhas, olhando fixamente para o casal apaixonado. Ele caminhava a passos lentos, um pé de cada vez. Pude ver os seus olhos amarelos, o rosto enrugado e os dentes... Ah, esses dentes caninos.

Meus reflexos foram rápidos. Puxei a grande besta automática que eu carregava nas costas e encaixei uma fina estaca de madeira, correndo para o meio da lareira o mais rápido que pude. Os adolescentes gritaram assustados, mas me ignoraram quando viram que eu passei direto. Fui em direção ao casal, que agora estava em estado de alerta.

— Você escutou isso? – o garoto perguntou para a nova namoradinha, ainda sem me notar.

— Deve ter sido a galera querendo nos assustar. – a moça respondeu. Eles logo trocaram um olhar de cumplicidade e eu atirei uma flecha entre seus narizes.

A flecha atravessou o matagal e atingiu a criatura na barriga. Droga, minha pontaria estava péssima! O casal gritou apavorado, correndo para o grupo de adolescentes. Eu equipei a besta com mais uma estaca, sentindo a tensão se espalhando pelo ar como um pum fedorento. A criatura estava furiosa, cambaleando entre as árvores e saltando como um animal feroz, a boca aberta e pronta para me devorar. Atirei a estaca uma segunda vez e o vampiro se transformou em pó assim que o objeto atravessou o seu coração. Uma chuva de cinzas tingiu meu cabelo.

— Eu tenho que parar de mata-los quando estiverem no ar. Argh! – Balancei meus cabelos negros, derrubando as cinzas no chão.

Ao me virar, reparei que o grupo de adolescentes ainda estavam abraçados uns aos outros, em uma união bastante desesperadora. Nunca vi caretas de pavor tão engraçadas; eu me segurei para conter o riso. Coloquei a besta nas costas para mostrar que eu não iria ataca-los com a minha arma e caminhei lentamente, mostrando as mãos vazias.

— Calma, pessoal, eu não vou fazer mal a vocês. – avisei. Infelizmente, eles ainda tinham feições de pavor. Eu achei que a galera estivesse sem entender o que eu falava quando me dei conta da realidade. E foi tarde demais.

Um vampiro me atacou pelas costas, derrubando-me. Eu embolei no chão e bati contra uma árvore, a criatura grudada em mim como chiclete. Ele segurou os meus ombros e abriu sua boca fedorenta, pronto para morder o meu pescoço.

— Sai daqui! – Chutei o abdômen do monstro com força, arremessando-o para longe. O vampiro girou o corpo e conseguiu ficar em pé.

Assim que eu me levantei, contudo, um terceiro monstro segurou o meu braço e me jogou contra uma árvore. Minha cabeça bateu forte no tronco, fazendo o mundo girar na minha frente. O vampiro ficou a alguns centímetros de mim, o rosto enrugado como um buldogue velho.

— Ora se não é o cão-de-caça de Amun! – ele ironizou e tentou me socar. Eu consegui mover a cabeça para o lado, mas quase cai no chão com isso. A criatura aproveitou o vacilo para me derrubar com uma rasteira. – Você matou o nosso irmão! Nós éramos um trio, agora somos uma dupla. Você vai pagar caro por isso.

— Infelizmente, não sou eu que faço as regras aqui. – Eu comecei a puxar a minha bolsa, onde tinha pelo menos umas 5 estacas. Matar vampiros com estaca de madeira, apesar de arcaico, ainda era a melhor forma de exterminá-los. – E fico feliz que você saiba matemática.

— Engraçadinha. Nós vamos te matar e ninguém mais vai se preocupar com a criada de Amun!

— Eu não sou a criada dele!

Minha perna direita atingiu em cheio o joelho do monstro.  Seu corpo se contorceu em resposta e eu aproveitei para derrubá-lo com outro golpe na barriga. Girei meu corpo para o lado, esquivando do ataque da segunda criatura. Eu precisava ser ágil para continuar viva, por isso, usei toda a minha força e destreza para ficar de pé rapidamente. Em seguida, puxei uma estaca de madeira e enfiei no peito do monstro dentuço que tentou me atacar. O vampiro se desmaterializou em cinzas, formando um punhado de pó no chão.

— Socorro! – Uma moça gritou do meio dos adolescentes.

Meus olhos varreram o local com rapidez, reparando na loira que outrora dava seu primeiro beijo – e agora era carregada nos ombros de um vampiro. Droga, ele precisava mesmo pegar uma refém? O grupo de adolescentes continuava a gritar e a chorar, apesar de eu ter visto alguém tirando uma selfie.

A criatura se enfiou entre a mata carregando a garota. O monstro olhava para trás de tempos em tempos para ter certeza que eu o seguia. Se os meus instintos estiverem certos – e todos os filmes da sessão da tarde – aquela criatura estaria me levando para uma bela emboscada. Talvez uma boate cheia de vampiros prontos para me matar. De repente, senti um vento gélido passar por mim.

— Agora deixa comigo, Karina – Lorena, a alminha, avisou.

Eu não sabia como aquela menina poderia me ajudar. Ela começou a fazer: “buuuuu”, como se aquilo fosse assustar uma criatura da noite. Eu continuei correndo, para conseguir observar no que aquilo iria dar. A menina parou a alguns metros da criatura e eu vi que ela, na verdade, estava chamando o restante de seus amigos.

Ao poucos, vislumbrei algumas almas vagando de um lado ao outro da floresta. O vampiro parou de correr, percebendo que estava cercado por seres de outro mundo. Ele parecia ter mais medo de alma do que uma criança de 10 anos. Os espíritos eram dos mais variados; eu vi hippies, militares e até uma velhinha de bengala. O vampiro passou a suar frio, soltando a refém no chão e afastando com as mãos o ataque daquelas criaturas semitransparentes, que passaram a flutuar por cima dele. Eu aproveitei o momento para ajudar a jovem.

— Volte para os seus amigos idiotas. – disse. Ela me encarou, praticamente ignorando o meu tom de deboche.

— Obrigada. – falou agradecida.

Fiquei encarando a menina correr para o grupo de amigos que fizeram uma festa ao reencontrá-la.

Voltando para o vampiro assombrado, pude vê-lo agachado no chão, as mãos tampando os ouvidos e os olhos, o barulho de choramingo emanando da pobre criatura infeliz. Ele finalmente teve coragem de abrir os olhos e correu em desespero, sem orientação. A criatura foi de encontro a uma árvore e deixou um galho pontiagudo atravessar o seu peito. Ele se desfez em pó no mesmo instante; as almas comemoraram.

— Que maneira horrível de matar um vampiro – comentei para Lorena, que agora flutuava ao meu lado.

— Não me venha com esse olhar! Nós não fazemos isso com pessoas, só com criaturas cruéis e horrendas.

— Sei... – Cocei a cabeça. De fato, eu nunca escutei histórias sobre almas penadas causarem a morte de alguém. Elas só faziam assombrar, como diversão. – Acho que já fiz a minha parte aqui.

— Muito obrigada, Karina!

— Colocar o mundo em ordens é o meu dever! – Eu bati continência, como se fosse uma soldada, e caminhei para fora do bosque. Não precisava ficar ali para saber o que iria acontecer.

Os adolescentes ainda estavam no meio da clareira, sem saber se seria seguro ou não sair de lá, quando as almas penadas surgiram assombrando todo mundo. Eu escutei o grito de pavor da molecada que agora corria sem pensar duas vezes. As almas riam-se à vontade, felizes por terem readquirido o seu ponto de assombro.

Há exatamente uma semana, o trio de vampiros tinha chegado ao bosque e roubado o local onde as almas gostavam de se divertir. Como eram três e nunca estavam sozinhos, as criaturinhas flutuantes não conseguiam assombrá-los e elas logo perderam seu espaço. Sorte que eu, a anti-caçadora, estava por perto para fazer com que tudo voltasse para a mais perfeita ordem. Vi a ex-refém cair no chão e ser ajudada pelo namorado. Ela me encarou, pedindo socorro, e eu apenas continuei andando. Se eles fossem mais espertos, veriam que as almas penadas nem conseguiam tocá-los. Mas os humanos são fáceis de assustar.

— Buuuuuuu! – Lorena saiu correndo atrás do casal e eles dispararam em direção à cidade. O sorriso alto da anã de jardim translúcida me encheu de alegria.

— Mais um belo dia de trabalho... – disse para mim mesma, enquanto caminhava para casa ao som de gritos histéricos e gargalhadas de fantasmas felizes.


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