O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 2
Novos Tempos




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Londres, Inglaterra. 13 de Abril de 1909.

(Três anos depois...)


            Um silêncio fúnebre cortava Baker Street.

            Fúnebre, em sua completude. Havia se passado apenas alguns dias do enterro de Mrs. Hudson, proprietária do imóvel mais famoso de Baker Street. Já de avançada idade, a perspicaz senhoria não resistiu a uma forte pneumonia adquirida no último inverno londrino. Por maiores que fossem os esforços de John Watson, que chegou a ficar o último mês sem ir um dia sequer ao seu consultório apenas a se dedicar a ela, infelizmente a doença acabou por vencer. Os últimos dias tinham sido atribulados, com todo o sangue encontrado em seu escarro, a febre forte e os delírios.

            Nos últimos anos, Watson já tinha se preparado para a morte dela. Afinal, era natural pensar assim. Era a lei natural das coisas, que os idosos fossem partir antes dos mais jovens. Mas embora a morte de Mrs. Hudson fosse algo factível de acontecer, Watson sempre temia que seu amigo acabasse sucumbindo antes dela, graças ao seu estilo de vida perigoso, permeados por drogas e crimes. No entanto, quis Deus que tudo seguisse sua ordem natural.

            E lá estava Holmes, olhar vidrado na lareira, sem dizer qualquer palavra. Watson sempre se perguntara como Holmes agiria diante da morte de Mrs. Hudson, e lá estava sua resposta. Era óbvio que o detetive estava sofrendo, embora não fizesse qualquer comentário a respeito disso. O definhamento progressivo de Mrs. Hudson parecia ter acometido Holmes também, notou Watson. Ele envelheceu visivelmente nos últimos tempos. Os cabelos brancos, que antes tomavam apenas a região de suas têmporas, agora já consumiam metade de sua cabeça. Olheiras e rugas completavam o semblante cansado e envelhecido do detetive, que sofria em silêncio a morte de sua mais fiel senhoria.

            Silêncio no velório. Silêncio no enterro. Agora, silêncio na sala.

            -Holmes, - pediu Watson – Meu caro, por favor, diga alguma coisa.

            Mais silêncio. Após um forte suspiro, Watson tornou a falar.

            -Holmes, você não pode deixar seu luto te consumir. Pode parecer tolo a ti o que irei te dizer, mas falar nestes momentos é muito importante e...

            -O que quer que eu diga, Watson? – disse Holmes, de voz embargada. – Que ela se foi? Que estou triste por isso? É isso o que quer ouvir?

            -Bom, já é um começo. O fato é que você tem se mantido em silêncio nos últimos dias. Eu fico preocupado contigo, meu caro. Primeiro, a partida de Esther, e agora o falecimento de Mrs. Hudson...

            -Não ouse falar de Esther, Watson. Mais uma menção dela e darei esta conversa por encerrada.

            Watson suspirou. Sabia que precisaria de paciência.

            -Está bem. O fato é que os últimos acontecimentos têm me deixado preocupado.

            -Você deveria estar mais preocupado com sua família. Pelo que me consta, está há semanas sem voltar para casa. O único moribundo que havia nesta casa já se foi. Não há mais necessidade de seus serviços médicos.

            -Será mesmo? Por que posso não ver qualquer sinal de doença em você, mas vejo que sua alma está...

            Holmes se levantou bruscamente.

            -Oh, não. Outra vez esta conversa de alma. Acho que sua companhia com Conan Doyle está afetando o juízo. Daqui a pouco irá pegar a mesa da sala, colocar uma toalha branca e um copo d’água e fazer algum ritual para evocar fantasmas, ou quem sabe até saber dos problemas de minhas vidas passadas...

            -Holmes, o Espiritismo é uma religião séria. Não deveria fazer chacota disso, meu caro. E mais uma vez, eu não sou espírita como Conan Doyle. Ele simplesmente me emprestou um livro de Alan Kardec, e isso não me torna um espírita.

            -Que bom, não é? Já pensou se você começa a falar de fadas, por exemplo?

            Observar Holmes rir, mesmo que de um assunto tão sério, fez Watson ficar mais relaxado. Ao menos, o detetive não estava completamente submerso em tristeza.

            -Acho que há alguém batendo na porta no andar de baixo, Watson. Agora, teremos de estar mais atentos a isso. – disse Holmes, com tristeza recolhida, por lembrar que era Mrs. Hudson que costumava cuidar de tais assuntos.

            -Será algum cliente?

            Holmes bufou. – Há meses ninguém aparece, meu caro. Duvido muito.

            Enquanto abastecia seu cachimbo, Holmes foi surpreendido por ver que seu amigo voltara acompanhado por um homem de meia idade. Bastou apenas alguns segundos para o detetive saber quem ele era.

            -Holmes, este é...

            -Eu sei quem ele é, Watson. Nathan Hudson, o filho pródigo de Mrs. Hudson. Mas ao contrário da famosa parábola da Bíblia, nosso Filho Pródigo em questão não chegou a tempo de retornar à sua parentela para pronunciar seu arrependimento por sua vida errante. Ouso dizer que sua tardia chegada tenha sido intencional, aliás.

            Parecendo surpreso pela dedução e também ofendido pelo último comentário, Nathan Hudson alisou o bigode, antes de falar.

            -Vejo que o senhor é tão arrogante quanto dizem os livros.

            -Se acaso pensa que me conhece bem pelos escritos de Conan Doyle, devo alertá-lo que está cometendo um erro.

            -E eu devo alertá-lo de que as coisas irão mudar por aqui. E mudar consideravelmente.

            Holmes arqueou uma sobrancelha.

            -Por favor, sente-se. E prossiga.

            -É bom que eu seja rápido. Eu já soube que o senhor é agora o único inquilino desta residência. Pois bem... – Nathan pausou, procurando em sua pasta até retirar uma folha de papel. – Trago aqui um Aviso de Despejo. O senhor tem um prazo de vinte dias para sair desta casa...

            -Mas isto é um ultraje! – esbravejou Watson, indignado.

            Nathan virou-se para o médico.

            -A julgar por seu bigode, creio que o senhor é o famoso Dr. Watson. Não deveria se sentir ofendido, pois sequer é inquilino daqui. Esta conversa é apenas entre eu e seu amigo, mas caso queira saber, sim. Sim, eu estou despejando-o daqui. Não porque ele seja um mau pagador, longe disso. Sei que o aluguel que pagava à minha mãe pelos dois apartamentos era generoso, ouso dizer até que acima do valor de mercado, mas o fato é que minha mãe era obtusa demais para ver o grande potencial deste prédio, que nada tem haver com moradia ou hospedagem.

            Holmes parecia calmo, apesar da última notícia.

            -Mesmo? E poderia me elucidar que “potencial” você vê em um prédio residencial de boa localização em Westminster que não o de moradia e hospedagem?

            -Um museu!

            Watson e Holmes se entreolharam, até que o detetive não resistiu e sucumbiu ao riso, deixando um entusiasmado Nathan irritado.

            -Perdoe-me, mas... Esta tua idéia, ela é... Preciso que me conte mais deste “museu”... – disse Holmes, tentando segurar o riso.

            -Sei da fama que adquiriu, Mr. Holmes. Sei que este endereço se tornou famoso. Aliás, só de passar nesta calçada, eu vi pessoas apontando para cá. Todos se perguntam se o detetive realmente mora aqui. O problema é que são poucos aqueles que tem coragem de subir e ver com seus próprios olhos. Pois bem, meu mais novo empreendimento promete acabar com essa dúvida. Irei construir o Museu Sherlock Holmes!

            -Um museu, de uma pessoa viva? Mas isto é um absurdo! – exclamou Watson, indignado. – Irei contatar Conan Doyle e seus advogados, eles não permitirão que...

            -Eles já permitiram.

            Nathan Hudson sacou de sua pasta outra folha de papel, entregando a Watson.

            -Não é possível... – balbuciou Watson, sentando pesadamente no sofá, com o olhar paralisado.

            -Bom, era elementar, meu caro Watson, que Arthur Conan Doyle iria gostar da idéia. Afinal, ele terá direito a 25% do lucro arrecadado com meu empreendimento. Se este dinheiro será compartilhado com vocês, aí é outra história.

            -Doyle não tinha esse direito! – esbravejou Watson. – Holmes, precisa fazer alguma coisa! É o seu nome que está sendo utilizado!

            -Nome? Nome?! Não, caro Dr. Watson. Sherlock Holmes é uma marca, possui registro inclusive, não um nome. Podemos dizer que seu amigo apenas compartilha do mesmo nome da marca que pedi autorização. Não pode me impedir por isso. Bom, creio que vocês estão avisados o bastante. Espero apenas não encontrar resistência quando o prazo se esgotar. Odiaria ter de pedir reforço policial. Tenham uma boa noite.

            Quando a porta se fechou, Watson caminhou de um lado a outro.

            -Doyle não tinha esse direito... Não tinha...

            -Meu caro Watson, Doyle é antes de tudo um empresário. Suas aventuras o tornaram um dos homens mais influentes da Inglaterra, você sabe disso. Deveria esperar que seu amigo fosse tomado de ambição e desejo por mais.

            -Mas utilizar meus escritos para... Para isso?! Um Museu, por Deus!

            -Sim, a idéia pode parecer absurda, mas o que Nathan disse não é um completo desatino. Olhe da janela, e verá quantas pessoas passam e não ficam hipnotizadas quando veem o “221-B” marcado na porta. São muitos, meu caro. E isso vem acontecendo já faz tempo. Eu realmente esperava pela chegada de Nathan Hudson, mas confesso que um aumento absurdo de aluguel era minha única expectativa.

            -Você... Você sabia dele? Mrs. Hudson jamais me contou que tinha um filho.

            -Ela me contou a respeito dele uma única vez, antes de você morar aqui. Nathan é um pequeno golpista, viciado em jogo e bastante sucinto a ganhar e perder dinheiro com empreendimentos arriscados. Ela evitava comentar sobre o único filho porque tinha vergonha dele e de sua vida fácil.

            -Não é difícil entender. O crápula mal esperou sua mãe esfriar no túmulo. Aliás, percebeu o tom debochado e arrogante dele?

            -Sim, percebi. De qualquer modo, creio que é chegada a minha hora de deixar Baker Street.

            Watson arregalou os olhos.

            -Deixar Baker Street?! Mas meu caro Holmes, você ainda pode reverter essa situação...

—Não posso, Watson. Ele tem o direito de fazer o que bem entender com este edifício. Não posso impedi-lo juridicamente. Nem mesmo de criar um museu com um meu nome.

—Mas... Não pode estar falando sério, Holmes...

            Guardando seu cachimbo, Holmes assentiu.

            -Estou, meu caro Watson e acredite, essa não é uma idéia absurda.

—M-Mas os seus clientes... O que eles farão, quando vierem a Baker Street?

            Holmes suspirou em resignação.

—Meus dias de Detetive já se encerraram há algum tempo. Estou há meses sem receber casos, justamente porque Sherlock Holmes se popularizou largamente. Como um personagem literário.

            -Bom, pensei que o contrário estava acontecendo. Que estivesse gente batendo em sua porta toda hora...

            -Não mais. Conan Doyle tem cumprido com o combinado de manter nosso anonimato. Tanto que espalhou na imprensa que eu não existo. Eu me tornei uma espécie de Lenda, meu caro. Há dezenas de imitadores espalhados por Londres, fixando anúncios de “Detetive Particular” nos jornais, sem contar o dito temor em me procurarem. Pessoas não querem mais vir por temerem o constrangimento de encontrarem outra pessoa vivendo aqui, ou mesmo por acharem que sou um charlatão, um mentiroso usando o nome de um personagem literário para se promover. Não, meu caro. Não há mais espaço em Baker Street para mim.

            -Então você irá para onde? – questionou Watson, preocupado.

            -Lembra-se da casa que comprei ano passado em Sussex? Pois bem, creio que é tempo de me tornar mais presente por lá. Estava prestes a visita-la para saber como anda minhas colmeias de abelhas, mas creio que voltarei para lá com uma bagagem bem maior.

            -Uma aposentadoria, é isso? Você irá se aposentar?!

            -Mas é claro que não! – Holmes pareceu irritado com a possibilidade. – Enquanto não arranjar uma nova morada aqui em Londres, eu levarei os meus pertences pessoas para lá. Será muito difícil substituir Baker Street, mas creio que irei conseguir. O problema é que demandará mais tempo que estes tais vinte dias impostos pelo filho de Mrs. Hudson. Mas não, meu caro Watson. Enquanto houver ar em meus pulmões, enquanto sob minhas veias ainda pulsarem o sopro de vida do Criador, eu permanecerei trabalhando.


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Notas finais do capítulo

Bom, quem leu a sinopse sabe que não é bem isso o que vai acontecer, Holmes. Acho que você vai acabar se surpreendendo...

Aliás, chocados com a primeira morte da fanfic?? Bom, vocês precisam entender: muito tempo se passou, afinal, e nessa época a expectativa de vida era bem menor que a de nossos tempos.



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