Incertezas escrita por Torcai


Capítulo 2
No shopping


Notas iniciais do capítulo

Taí, segunda parte, bem maior e mais complicada que a primeira, mas espero que gostem :)



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Encarava nervosamente a última mensagem recebida no seu celular. "Blz". Breve demais. Sucinta demais. Será que ele estava bravo? Triste? Decepcionado? Por que ele não mandou mais mensagens?

Estava sentado na praça de alimentação do shopping, com um livro na mão. Seus amigos haviam marcado um encontro entre eles ali, e essa era a chance que ele estava esperando. Chegou cedo demais, dizendo a si mesmo que não tinha nada pra fazer em casa. Quando ele percebeu que não havia absorvido nada do parágrafo que estava lendo pela terceira vez, decidiu fechar o livro. Resolveu ir ao banheiro, e logo descobriu que o banheiro mais próximo estava fechado, teve que ir até o outro que ficava próximo ao cinema. Na volta, passou numa loja que fazia sucos naturais e pegou uma vitamina de abacate.

Quando chegou novamente na praça, dois de seus amigos já haviam chegado. Fazia uns dois ou três meses que não se viam. Cumprimentou-os, feliz em vê-los. Escolheram uma mesa grande e sentaram para esperar o resto do grupo. Com a mão no bolso, segurando o celular, ele esperava. Esperava receber alguma mensagem, esperava que mais alguém chegasse. Olhou nervosa e rapidamente o celular só para garantir que nenhuma mensagem nova havia chegado. Não havia nenhuma notificação, mas foi olhar o histórico só para garantir.

O povo vai se encontrar no shopping,
e eu vou junto. Você vai também?

Não sei ainda. Não to muito afim de ver todo mundo.

Ah, vai ser legal. Bora lá!

Eu vejo, depois te falo.

Eu vou, e seria legal se você fosse

Tipo, eu ficaria feliz se você fosse

Todo mundo junto, como antigamente

Seria legal e talz

Acho que todo mundo gostaria

Manda mensagem se quiser ir e talz

Blz.

A ridícula conversa estava bem-gravada em sua mente, não precisava ler novamente no celular. Doía ler aquilo de novo. Tentou ser sincero com o outro, mas não queria parecer desesperado. Se arrependeu após cada mensagem enviada, e tentou corrigir logo em seguida. O resultado foi esse turbilhão de seis mensagens, uma pior que a outra. Se as mensagens não fossem ruins por si só, certamente a quantidade as fariam ser.

—E só porque não nos vemos mais você não vai mais cortar o cabelo? - Um de seus amigos perguntou.

—Pois é, desisti dessa vida. - A resposta surgia facilmente. Era fácil responder. A parte difícil vinha depois, quando pensava se a resposta havia sido boa. Raramente era. - Decidi deixar o cabelo crescer um pouco, só pra ver como fica.

—Deixar crescer tudo bem, mas podia tentar pentear ele, não? - E riram. Era uma piada, não havia dúvida. Em resposta, passou a mão pelo cabelo, bagunçando-o mais ainda. Os três riram. Mas um peso se formava em seu estômago. Será que seu cabelo realmente parecia ruim? Passou novamente a mão no cabelo, dessa vez tentando arrumá-lo. Deveria ter aproveitado a ida ao banheiro para fazer isso. 

"Acho que você ficaria lindo", foi o que ele disse naquele dia... Mas isso já fazia três semanas. Agora seu cabelo estava esquisito, e não se comportava mais. Não dava mais pra penteá-lo. Por mais que passasse o pente numa direção, alguns fios insistiam em ir pro outro lado. E se ele estivesse meio ridículo? Não totalmente zoado, mas apenas o suficiente pra ser melhor só cortar o cabelo e acabar com isso logo?

Apertou o celular no bolso, ansioso. Os outros dois amigos falavam alegremente, e ele ouvia, quieto, como sempre fazia. Eventualmente comentava algo e ria de alguma coisa, mas seu papel era ficar quieto, principalmente escutando. Cada vez que alguém chegava, sentia seu estômago afundar mais alguns centímetros. Quando já eram um grupo de seis pessoas, começou a convencer-se que ele não viria. Ele não era muito do tipo que gostava de multidões, afinal. 

Logo a cadeira ao seu lado esquerdo fora ocupada, o que o deixou irracionalmente chateado. Mesmo se o garoto viesse, por que ele se sentaria ao lado dele? Ele mesmo estava longe de ser o centro do grupo, estava mais para um coadjuvante ou algo assim. Por que alguém escolheria sentar ao seu lado, com tantos lugares na mesa? 

Já eram um grupo de dez, grande e barulhento. Fazia tempo que não reuniam tanta gente do seu grupo de amigos juntos. Era legal rever tanta gente - incluindo pessoas que ele não via há quase um ano - mas tinha se esquecido de como era cansativo estar entre tanta gente. Sentia-se menor e cada vez mais na periferia do grupo. Com tanta gente ali, tinha a sensação que sua participação era cada vez menos necessária e possivelmente menos bem-vinda. Quis ir embora. Não é como se fosse chato estar entre eles, apenas...

Foi quando viu o moreno surgir no corredor, e não soube muito bem como agir. Olharia pra ele? Continuaria alheio à conversa? Resolveu que era melhor participar mais ativamente da conversa, para não parecer muito ansioso pela chegada do outro. Apoiou os braços na mesa, se inclinando pra frente, se incluindo na roda e no assunto. Percebeu que estavam falando de uma série que ele nem gostava... mas ele precisava comentar algo. Quando o outro chegasse na mesa, ele precisava parecer totalmente incluído na conversa. Formulou o comentário na sua cabeça e, assim que houve a deixa, disse.

—Nem gosto do Batman. Acho ele maior chato, com a capa e tal. Se eu quiser ver alguém de capa, veria um herói de verdade.

A reação das pessoas foi boa. Metade começou a falar ao mesmo tempo, e quase todos olhavam para ele. Alguém do outro lado da mesa o questionou.

—Mas do Super Homem você gosta, certo?

—Nem. Heróis são chatos. Mas quase todos são melhores que o Batman.

—Você é fã da Marvel, então? - veio a pergunta de outro lado. A atenção de quase todos estava nele. Era esquisito. Sentia seu rosto quente. Mas era legal. Um meio sorriso agora ocupava seu rosto. Queria procurar o garoto moreno, mas não podia deixar que ele soubesse o quanto se importava.

—Não, eu só não gosto de heróis.

A mesa explodiu em barulho novamente, enquanto seus amigos se indignavam com sua impopular opinião. Aquilo fora fácil. Estava satisfeito consigo mesmo.

—Ah, você chegou na hora certa. - Disse uma de suas amigas, dirigindo-se a alguém de pé atrás dele. - Você acredita que esse ser aí - e ergueu o braço em sua direção - não gosta de heróis, e menos ainda do Batman?

—Sério? - Veio a voz, simples, detrás dele. Todo o peso que se acumulou no seu estômago desde que chegara lá parecia agora querer sair. Olhou para trás, tentando parecer curioso, como quem se perguntava quem era o recém chegado.

Vestia uma blusa de moletom preta, com o zíper prateado fechado até em cima. Estava com seu cabelo solto novamente. Havia um pequeno sorriso presunçoso no rosto. Encarava a garota que havia falado com ele. A luz branca do shopping fazia ele parecer muito pálido. Lembrou-se como havia tocado aquela pele, e automaticamente abaixou o rosto. Questionou se o garoto perceberia esse gesto, e então lembrou que ele nem ao menos o olhava. Sentiu o peso mais forte no estômago.

Mas de algum lugar dentro de si, veio a sensação que o garoto evitava olhar para ele assim como ele estava evitando olhá-lo há cinco segundos. A dúvida apenas fez seu desconforto aumentar.

—Você não é que nem ele não, né? - Alguma outra pessoa perguntou. Ergueu novamente o rosto para ouvir a resposta. Todos estariam olhando para o moreno, ele podia olhar também. O garoto simplesmente abriu sua blusa. Por baixo, vestia uma camiseta preta com o símbolo do Batman em cinza.

Sentiu o rosto quente ficar ainda mais quente. Quis se esconder ou algo assim. Não estava na companhia dele há nem dez segundos e já o estava decepcionando. As pessoas ao seu redor reagiam ao recém-chegado, novamente rindo e falando alto, enquanto ele só sentiu-se deslocado. Imaginou em uma fração de segundo como o resto da noite seria frustrante, e decidiu que daria um tempo ali na mesa (para que os outros não achassem que tinha algo errado), mas logo mais iria embora. Seria fácil ir cedo, já que foi o primeiro a chegar...

—Tem alguém sentado aqui? - Perguntou o garoto de preto, enquanto fechava novamente a blusa, referindo-se à cadeira à sua direita. A cadeira estava ocupada por mochilas de outras três pessoas, que logo as retiraram, e então o garoto pôde sentar-se. A atenção do grupo dispersou-se novamente.

Precisava falar algo. O silêncio estava insuportável. Precisava pedir desculpas por decepcioná-lo, ou algo assim. Ele não parecia bravo, mas... Não é como se ele conseguisse entender os outros. Sabia, contudo, que havia dado uma enorme bola fora com essa história do Batman. Talvez não tivessem nada em comum, afinal de contas. Realmente, tinham poucas coisas em comum. E não havia nenhum motivo pro garoto de cabelo longo e escuro se interessar pelo fato dele gostar ou não do Batman, ele não era ninguém... 

Por outro lado isso poderia ser uma boa coisa. Não havia nenhum motivo pro garoto menor se interessar pelo fato dele gostar ou não do Batman, então ele podia só voltar a ser ninguém em paz. Passou o olhar rapidamente pela mesa, calculando se aquela seria uma boa hora para ir embora.

—Desculpe pela demora. - Veio a voz, à guisa de um cumprimento.

—Nada, tava conversando com as pessoas e tal. - Será que isso dava a impressão que ele não ligava pro garoto? Era melhor consertar. - Mas foi legal você vir.

—É eu... eu não sabia muito bem se vinha. - Sua voz parecia desinteressada. Olhou para ele, e viu que este retribuía seu olhar. Ficou sem graça. Tentou sustentar o olhar, mas não conseguiu por mais de três segundos. - Você está bem?

A pergunta foi feita num tom gentil. Mas a que ele estava se referindo? Ao fato de ter desviado o olhar? Ao que aconteceu há três semanas? Ao que existia entre eles? Isso é, existia algo entre eles? Podia também ser apenas uma simples pergunta de quem acabou de chegar... Abriu a boca, ainda tentando pensar no que responder. Dessa vez, não havia uma resposta fácil, e nem uma satisfatória. Foi com a primeira ideia que lhe passou pela cabeça.

—Estou com sono. - Disse, estreitando os olhos pra deixar claro quanto sono tinha. Não era mentira. Ele sempre estava com sono. Mas não era a resposta ideal, longe disso.

—Você parecia animado, agora há pouco.

Não saber interpretar direito as pessoas era uma droga. Isso foi uma provocação? Um simples comentário? Ele só estava querendo continuar a conversa? Ou queria acabar logo com ela?

—Ah, você sabe, é legal rever tanta gente.

O outro garoto relaxou na cadeira.

—Sim, às vezes é legal rever quem queremos. - Disse, encarando o teto, parecendo chateado. 

Os próximos minutos foram esquisitos. Ele não conseguia mais participar eventualmente da conversa como estava fazendo antes, mas o moreno ao seu lado praticamente não parava de falar. Ele lidava bem com multidões, apesar de não gostar delas. Parecia popular. E, de certa forma, era. O peso esquisito em seu estômago agora estava deixando ele meio enjoado, meio indisposto. Queria ir embora, mas lembrou que ainda não haviam comido, só seria esquisito.

No meio de um grupo assim, o garoto de blusa preta ele parecia alguém inalcançável. Aquele tipo de pessoa que simplesmente nunca prestaria atenção nele. Ele era legal, falava bem, fazia amigos com facilidade e era lindo. Gente, como ele é lindo. O cabelo longo e negro perdia-se no meio da blusa preta (mas não tão preta quanto o cabelo dele), novamente fazendo parecer que tudo era uma coisa só. O contraste de todo aquele preto com sua pele branquíssima apenas servia para realçar sua beleza. Precisava encostar naquela pele, como já havia feito antes, mas isso parecia agora impossível. 

Percebeu-se encarando o garoto há tempo demais, e abaixou o rosto, torcendo pra que ninguém tivesse reparado.

—Mano, to com fome, bora comer alguma. - Um de seus amigos disse alto, para todo mundo e pra ninguém em específico. Os outros concordaram, e em seguida surgiu a discussão de onde e o que comeriam. 

—Enquanto vocês decidem aí, vou no banheiro. - Falou o moreno, colocando-se de pé.

—Ah, o banheiro dali está fechado, tem que ir no outro perto do cinema. - Comentou, sentindo-se útil. No pior dos casos, poderia lembrar-se depois de como o ajudou a não perder tempo indo ao banheiro errado. Já era alguma coisa, supunha.

—Onde ele fica?

—Perto do cinema, seguindo ali pelo corredor.

—Não sei onde é. Me mostra?

Tinha algo esquisito no pedido, ou no jeito que ele pedia.

—Ãh, claro.

Os dois levantaram-se. Um ou outro da mesa olhou para eles, mas ninguém deu grande atenção. Eles estavam agora decidindo se pedir pizzas seria uma boa. Ele sentiu-se aliviado de ninguém fazer nenhuma piada sobre os dois irem ao banheiro juntos.

Seguiram então pelo corredor. Andavam lado a lado, o que o fazia querer pegara mão do outro.O que era uma ideia absurda. Precisava novamente dizer alguma coisa antes que o silêncio conseguisse esmagá-lo, mas era horrível em puxar assunto. Será que o garoto menor percebia quando ele estava tentando puxar assunto? Devia perceber. Os assuntos eram praticamente os mesmos sempre. Percebeu então que não havia conseguido puxar assunto nenhuma vez hoje, e seu desespero apertou. Tentou pensar em algo novo a dizer, com urgência. 

Olhou ao redor, procurando um assunto. Não havia nada ali que pudesse dar uma boa conversa. Embora, pra ser sincero, eles podiam conversar sobre qualquer coisa. O moreno era daquele tipo de pessoa que dava pra passar o dia inteiro falando sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo.

O difícil era apenas começar.

—Muito trânsito?

Ótimo, falar sobre o trânsito. Pelo menos não era sobre o tempo. O arrependimento veio rápido ao pensar na possibilidade do outro garoto encarar isso como uma indireta ao atraso dele.

—Um pouco, mas nem foi por isso que me atrasei.

—Ah, e foi por quê, então? - Outro arrependimento. Se ele quisesse conversar sobre isso, já teria falado. Por que ele não conseguia pensar antes de falar? - Não precisa falar, se não quiser. - E agora só ficou esquisito. - Digo, se foi alguma coisa séria que você não quer falar, tá tudo bem. Mas se quiser conversar, eu to aqui. Tipo, sobre seu atraso e tudo o mais. Que você queira falar sobre. Ou não. 

Um desastre maior que alguém acharia possível.

Ouviu o garoto dar uma breve risada e o olhou, já envergonhado.

—Que foi?

—Você é bonitinho.

Não sabia se levava aquilo como um elogio ou se ele estava apenas fazendo pouco caso. Abriu a boca para responder, mas não sabia o que dizer. Virou-se para falar algo, e reparou que o garoto estava olhando para ele, sorrindo. Constrangido, fechou a boca e olhou para o outro lado. 

A risada durou um pouco mais dessa vez. Sentiu o rosto ficar vermelho, e uma sensação parecida com raiva surgiu em seu peito. Por que ele estava rindo tanto?

Lembrou-se então do porque estavam ali e ergueu o braço para indicar o corredor lateral onde fica os banheiros, mas o garoto menor já estava andando naquela direção. Ele sabia, afinal, o caminho?

Como se ouvisse seus pensamentos, o garoto parou, olhou para ele e perguntou para onde ficava o banheiro. 

—Tem certeza que você não sabe?

—Se eu soubesse, você não precisava ter vindo. - Ele respondeu, sério. Não entendia direito o que aconteceu. Uma suspeita enchia-lhe o peito, mas... Não, sério, devia ter alguma razão pra tudo isso que ele não estava entendendo. Estreitou os olhos e apontou, erguendo o braço.

—Por ali.

—Ah sim. - E retomou a caminhada. Dois passos depois, olhou para trás e viu que o garoto de cabelo curto estava parado no corredor. - Você não vem?

Suas pernas se mexeram antes que pensasse no assunto. Seguiram, em silêncio, até o bebedouro que ficava ao lado da porta do banheiro masculino.

—Espera aqui? - Sua voz aprecia alegre. Ele sorria. Ele estava lindo.

Tudo o que conseguiu foi fazer que sim com a cabeça.

Ele ficou encarando enquanto o garoto menor sumia pela porta. Ele ficava realmente bem de cabelo solto. Mas, pra ser sincero, ele costumava ficar bem independentemente de como estava. 

E o que foi toda essa história de mostrar o caminho? Parando pra pensar, não fazia sentido nenhum. Será que ele só queria companhia pra ir até ali? Mas ele poderia ter pedido pra qualquer um, por que pediu a ele? E eles nem conversaram direito enquanto andavam, se esse fosse o intuito dele, ele teria falado mais, não é? 

E ele chegou atrasado. Ele sempre era pontual, o atraso era algo esquisito. E, parando pra pensar, ele não disse porque se atrasou. Será que ele só não se importava o suficiente? Mas ele veio, afinal de contas... e sentou-se ao seu lado. Mas não é como se tivesse muito lugar disponível na mesa, de qualquer forma. E eles praticamente não conversaram na mesa, além do fiasco do Batman. Será que ele ficou muito chateado por ele não gostar do Batman?

E esse impulso que ele sentiu quando o moreno entrou no banheiro? Foi particularmente esquisito, como se... Como se algo o atraísse para perto do garoto. Ele não queria se separar. Quis, por uma fração de segundo, poder segurar o garoto e... pegar na sua mão? Estar perto dele, não tinha certeza de como. Isso era confuso. Esquisito. Estranho. Se perguntou o que o outro acharia de tudo isso. Ele era descolado e... provavelmente já havia ficado com mais gente do que ele sonhava em conhecer a vida toda. Se algo acontecesse... Ele seria mais um?

As dúvidas enchiam seu peito, e nebulavam seus pensamentos. Sentiu-se meio sobrecarregado, queria ficar em silêncio um pouco. O peso que sentia no peito já não fazia mais sentido algum; hora parecia querer sair, hora pesava no fundo do estômago, hora parecia querer se expandir para todo o seu peito. E o seu coração... conseguia sentir cada batida, e tinha a certeza que se alguém parasse perto o suficiente dele também ouviria. Precisava se acalmar. precisava limpar essas dúvidas, pelo menos por um instante. Fechou os olhos por um momento, respirou fundo e...

E o que ele deveria fazer? Isto é, ele deveria fazer algo? O que aconteceu no outro dia foi legal... mas ele não achava que conseguiria repetir aquilo por conta própria. Gostaria que aquilo se repetisse, contudo. O que ele deveria fazer pra conseguir isso? E como o outro reagiria a isso? Será que ele também estava afim? Ele pareceu gostar também, mas... bom, certamente ele já havia feito aquilo com outras pessoas e... E na verdade ele já havia feito muito mais do que aquilo com outras pessoas. O que tudo isso significava pra ele, então? Provavelmente nada. Aqueles segundos em que sua língua estiveram em seu pescoço preencheram seus pensamentos nessas três semanas, mas para o moreno isso certamente não era nada demais. Ele pareceu gostar, mas... O outro havia fechado os olhos quando ele colocou a mão no rosto dele. Colocar a mão no rosto! Isso não queria dizer nada, parece coisa que criança faz. Mas ele pareceu gostar. Devia ser fingimento. E se ele podia fingir que só isso foi tão legal, certamente poderia fingir todo o resto. 

Não soube quando abriu novamente os olhos, mas viu o garoto sair do banheiro e, sem que percebesse, deu um passo para trás, afastando-se.

O moreno notou.

—Tá tudo bem? - E a pergunta agora parecia intrusiva, apesar do tom meio preocupado.

—Está, está, sim. - Respondeu, com a voz falhando um pouco. Pigarreou e tentou falar com mais segurança na voz. - É só o sono.

—Ah. - Ele pareceu acreditar. 

—Vamos voltar? Acho que a essa altura eles já conseguiram decidir o que comer. - tentou falar parecendo uma piada, mas alguma coisa deu errado. Estava nervoso, percebeu. Sua voz falhou, seu coração ainda estava acelerado. E os músculos de seu ombro estavam tensos. Tentou relaxar o braço, o que só pareceu esquisto. Duas vezes mais esquisito pelo fato do outro estar olhando.

—A gente pode conversar? - Veio a pergunta, aparentemente alheia à esquisitice dele.

—Claro. -  Sua voz falhou novamente. Tentou imaginar o que ele falaria para antecipar uma resposta, mas uma linha de raciocínio substituía a outra antes que ele pudesse chegar a qualquer conclusão.

O garoto se aproximou, olhando-o. Tentou olhar de volta aqueles olhos castanhos, mas novamente não conseguiu. Pra disfarçar sua virada de rosto súbita, deu um passo em direção ao corredor principal do shopping.

—Você já quer voltar? - Perguntou o garoto, com a voz meio vazia. Olhou para ele e viu algum tipo de tristeza no olhar. Não sabia o que tinha feito, mas já estava decepcionando novamente.

—Não, eu só achei que você já ia... - Sua voz foi sumindo ao longo da frase, cada vez menos segura. Decidiu apenas ficar em silêncio, obviamente não conseguia convencê-lo. O garoto se aproximou, mas dessa vez manteve uma distância confortável. Tudo aquilo estava muito esquisito. Queria que aquilo acabasse logo. Só não sabia como exatamente queria que aquilo terminasse.

—Você está bem? - perguntou novamente. Desta vez, contudo, o tom era diferente. Era sincero. Não que antes fosse mentira mas... Agora havia algo a mais na pergunta. Decidiu ser sincero de volta.

—Eu não sei. Foram uns dias esquisitos.

—É, pra mim também foram. Quero dizer, não sei muito bem como lidar com algo que aconteceu...

Um misto de curiosidade com preocupação fez com que ele perguntasse.

—O que aconteceu?

O outro garoto o encarou, medindo-o. 

—Você sabe. - Foi a resposta, nem fria, nem calorosa. Parecia apenas que ele estava admitindo algo.

Sentiu-se particularmente estúpido por ter perguntado.

—Ah, sim, foi... Eu sei. É. Eu... meio que estava lá e tal. - tentou novamente fazer parecer engraçado, sem sucesso. Sentiu-se constrangido de novo e abaixou o rosto. Ele só não sabia conversar direito, era uma vergonha pra comunicação humana. - Desculpe.

—Por quê?

Ergueu novamente o rosto. O garoto parecia honestamente confuso.

—Por... - Arrependera-se de ter pedido desculpas. Só não fazia sentido. Seria melhor só ficar quieto de vez. Mas agora precisava responder... E precisava de uma boa resposta. Não poderia decepcionar novamente. Procurou dentro de si algo que fosse digno de um pedido de desculpas, e achou o que o manteve pensativo nessas três semanas. - Desculpe por ter ido embora. Eu deveria ter ficado e te explicado melhor...

—Você pode me explicar agora. - Não parecia uma cobrança, parecia mais um convite. Sentiu-se meio confortável. E, cara, como ele queria se explicar.

—Eu... - Ok, não queria mais se explicar. Não fazia sentido. Ninguém entenderia. Ele tinha problema. Pessoas normais não eram assim. Por que ele tinha que ser assim? Seria só melhor se o outro fosse embora e... Não, não queria que o outro fosse embora. E se fosse pra ele ficar, melhor apenas falar logo. Abaixou o rosto. - Eu tava com medo, desculpe. - O "desculpe" veio sozinho. Achou que essa resposta não era suficiente. - Não é medo de você ou coisa assim, é só que... - Não queria ter de se explicar. Sentiu o olho se umedecendo. Odiava isso.

—Ei. -  Veio a voz, baixa. Meio carinhosa, talvez. Preocupada. Decepcionada? - Está tudo bem. Não precisa falar, se não quiser.

—Mas eu quero! - Explodiu, olhando pra cima, com uma pontada súbita de raiva. Percebeu o quão desproporcional foi sua ação e se arrependeu. - Eu quero falar. - Se explicou. - É bom falar, eu acho. - Sua voz já estava morrendo de novo.

O outro garoto chegou mais perto, ainda longe o suficiente.

—Então pode falar, eu to ouvindo. - Sua voz era de alguém preocupado com um amigo. Alguém que queria ajudar. Sentiu-se mal por fazer o outro se preocupar.

—É difícil falar. Eu só queria... - Queria o que, exatamente? Aquilo tudo era tão frustrante.

—Tá tudo bem. - Disse, simplesmente, e o abraçou.

Não estava esperando o abraço. Foi a melhor coisa que podia ter recebido. Sentiu-se calmo. Aliviado. Tudo estava bem, ali. De alguma forma, mesmo sendo menor que ele, o garoto o abraçava por cima. Estava bom ali. Relaxou seus músculos, que estavam tensos desde sabe-se lá quando, e apoiou a cabeça no pescoço do garoto menor. O moreno colocou a mão na sua nuca e em seguida afagou seu cabelo.

—Seu cabelo é macio. Vai ficar legal comprido.

Não conseguiu suprimir uma pequena risada. Separaram o abraço. Agora, sentia-se novamente constrangido. Gostava de proximidade, mas nunca sabia o que fazer com ela.

—Isso vindo de você é um senhor elogio. Seu cabelo é da hora, cara. E fica bem legal solto.

O menor sorriu.

—Valeu. Sei que você gosta dele solto.

Uma ideia louca lhe passou pela cabeça. Será que ele viria de cabelo solto só pra agradá-lo? Não fazia sentido, mas por outro lado...

—Achei que você preferisse manter ele preso e tal.

—É, mas às vezes é bom variar. - Ok, a decisão de soltá-lo não tinha nada a ver com ele. Sentiu um misto de alívio por saber que o outro não estava esperando nada dele... com decepção por saber que o outro não estava esperando nada dele.

—Eu... eu imagino que seja. - Não tinha mais o que comentar sobre o assunto. Esperou para ver se ele falaria algo mais, mas veio apenas silêncio. Hora de pensar num novo assunto, então. Parou pra pensar e percebeu que, afinal de contas, não havia falado nada, novamente. Tentou formar uma linha de raciocínio decente para explicar tudo relativo à essas três semanas mas, como um castelo de cartas, os pensamentos continuavam a ruir antes de ficarem prontos. Percebeu então que estava em silêncio há tempo demais e ou ele falava algo rápido, ou não falaria nada. Abaixando o rosto, disse então a primeira coisa que veio à mente. - Eu não te mandei mensagem porque não queria que você achasse que eu estava desesperado. - Meia verdade. Precisava ser honesto. - E também porque eu não sabia o que dizer.

É, isso aí. Falou o que precisava falar.

Agora queria poder desaparecer em uma nuvem de fumaça ninja e nunca mais ver a luz do sol.

—Eu não acharia que você está desesperado. Eu só acharia que você se importa ou que significou algo pra você.

—Mas eu me importo! - Ergueu o rosto, os olhos bem abertos - E aquilo significou muito pra mim! - Precisava que ele entendesse o quanto aquilo significou para ele. Sem parecer desesperado. - Sério, aquilo foi muito, muito bom. Digo, importante. Significou muito, pra mim. Não ache que não. Foi legal. Eu...

Só voltou a encarar o chão. Deveria ser proibido ser tão ruim em falar coisas assim. Queria poder contar tudo, e resolver tudo, e assim eles poderiam...

O que exatamente eles poderiam? Talvez, se ele realmente queria isso, ele podia tentar fazer algo...

Decidiu que devia tentar.

Deu um passo pra frente, devagar, e ergueu o olhar. O garoto menor o olhava, confuso, com cara de quem não sabia o que fazer. Era legal perceber que não era o único que não sabia o que fazer. Se esforçou duramente para manter o olhar, o que era realmente difícil, parecia que o ar condicionado estava agora muito pior do que há cinco segundos, secando insistentemente seus olhos. 

Estendeu o braço direito em direção ao jovem, e de repente toda sua determinação vacilou. O que faria com aquele braço? Onde iria colocá-lo, na cintura dele? No ombro? Na cabeça? Piscou duas vezes, e viu alguém saindo do banheiro. Percebeu então que havia outras três pessoas naquele corredor, e percebeu que estavam, afinal de contas, em um shopping. Havia muita gente passando pelo corredor principal. No que estava pensando?

Sentiu como se metade de seus músculos tivessem retesados, e a outra metade, travado. De forma automática e pouco consciente, deu um passo para trás. Abaixou aos poucos os braços, em um movimento travado e esquisito. Olhava de modo meio vidrado pra lugar nenhum, com o rosto baixo. Não sabia como chegara ali, e não sabia o que fazer. Na dúvida, permaneceu meio parado, meio em movimento, como estava.

Os segundos se alongavam e, após reunir coragem o suficiente, olhou para o moreno. A cara que ele fazia não podia ser descrita como outra coisa além de decepção. Sentiu-se de alguma forma inferior, não era digno de estar ali. Deveria ir embora. Deu outro passo para trás. Mas não queria deixá-lo ali, sozinho. Ele merecia coisa melhor. Céus, aquele garoto merecia algo tão melhor do que toda essa situação patética.

—Quer voltar lá pra mesa? - Perguntou educadamente o mais baixo. Seu tom dava a entender que nada havia acontecido. Parecia que mal se conheciam. Ouví-lo falar assim o fez sentir um bizarro vazio no peito.

Seus ombros caíram. Só não tinha mais motivo para tentar fazer alguma coisa. Não importava, pois daria errado de qualquer forma. 

—Tanto faz, não to com fome. - O outro ergueu as sobrancelhas, em uma pergunta silenciosa. - Eu tomei uma vitamina de abacate antes de você chegar.

—Você prefere ficar aqui?

Por que ele estava perguntando isso? Que raio de ideia era essa? Por quê... Só... Não... 

—Tanto faz, se você quiser.

—Eu to bem, eu comi antes de vir pra cá.

—Por que você comeu antes de vir comer no shopping? - Veio a pergunta, antes que pudesse pensar. Não que fizesse diferença. Por que tentar pensar no que falar se afinal de contas vai dar errado de qualquer forma?

Mas houve um silêncio antes da resposta, em que o garoto pareceu meio constrangido.

—Porque eu não sabia se vinha.

—Ah, é. - Foi a genial resposta vocálica. - E o que fez você decidir? 

—Você, basicamente.

—Oh. - Agora já foram três vogais. Devia parecer uma criança de cinco anos aprendendo o alfabeto, a julgar por suas respostas. Isto é, depois de ouvir uma coisa dessas, "oh" é o melhor que se pode dizer?

Mas o que dizer após ouvir uma resposta dessas? Sentiu sua mão soar, por algum motivo. Abriu a boca para dar uma resposta melhor, mas não sabia o que dizer. O garoto o observava atentamente, certamente esperava alguma reação. Reagiu como sempre reagia nessas situações.

Abaixou a cabeça.

Como assim, ele só veio por ele? Não tinha sentido. Quem ele era pra valer tanto esforço? Tinha tanta gente mais legal sentada naquela mesa... Mas mesmo assim, era ali que ele estava, com ele, no corredor dos banheiros.

Tinha algo muito errado acontecendo. Ou talvez fosse algo muito certo. Não sabia qual das possibilidades o assustava mais.

Não era possível que ele estivesse afim de alguma coisa. Não com ele. Não algo que ele quisesse também. O outro, afinal, era do tipo de pessoa que estava com alguém diferente em cada semana. Na verdade, ele não "estava" com alguém, porque nada era longo o suficiente para ser chamado assim. Não entendia direito como pessoas conseguiam viver assim, mas havia quem vivesse, e o moreno era um deles. Não fazia sentido. 

Não entendia qual era a dele. Talvez quisesse mais um nome riscado na sua lista. Não que se houvesse alguma lista seu nome estaria nela. Isso não fazia sentido desde o começo. Talvez ele quisesse se divertir? Isso era algum tipo de piada? Pegadinha? Não, ele não seria tão mau. Ele não era mau. Ele era carinhoso. E quente. E macio.

A lembrança daquele beijo vivia clara em sua mente. Pela primeira vez, admitiu a si mesmo que queria repetir a experiência. Sentiu seu rosto ficar vermelho ao pensar nisso. Não podia pensar nisso. Não era uma possibilidade real. Ia dar errado. Não podia seguir com isso. Havia tanta coisa a perder...

De algum lugar dentro de si, arranjou uma voz fraca para dizer o que o segurava tanto.

—Você não me ligou. - Em voz alta, parecia a pior coisa pra se dizer. Só tava tão errado. Tentou arrumar enquanto era tempo. - Você podia ter mandado mensagem. Sei lá. Só falado comigo. Eu não sei se você...

Não terminou de falar. Não tinha mais o que falar. Sentia-se fraco. Queria sentar. Estava muito exposto. Queria sumir. Estar em qualquer lugar que não fosse ali.

Desde que o outro garoto estivesse com ele.

—Eu não ia te ligar. - Ele disse, sério. - Quando você foi embora, achei que você precisava de um tempo. Não ia te forçar. Não ia atrás de você. Quando você estivesse pronto, você me diria.

Fazia sentido. Como ele era estúpido, por que não pensara nisso? Era ele quem tinha medo. Era ele quem não sabia o que fazer. E o outro o respeitava, obviamente não ligaria. Isso era ele próprio quem deveria fazer.

Sentiu um nó na garganta. Odiou a possibilidade de chorar. Custasse o que fosse, não iria chorar na frente dele. Precisava responder qualquer coisa antes que perdesse a luta contra as lágrimas.

—Eu tava com medo. - Sua voz quase não saiu. preferiu que nem tivesse saído. Sua resposta não fazia sentido, não acrescentava nada de novo à conversa. Ele não acrescentava nada à conversa. Não devia estar ali.

—Mas tá tudo bem. - Veio a voz, gentil. O garoto deu um passo em sua direção e fez menção de abraçá-lo, mas pareceu pensar melhor e parou com os braços no ar.

Queria aquele abraço. Mas não podia pedir. Ou podia? Não tinha ideia do que fazer. Para o seu alívio, o outro falou primeiro.

—Do que você tem medo?

Bom, essa é a grande pergunta, não é mesmo? Seria "tudo" uma resposta válida? Provavelmente, mas o garoto merecia algo melhor.

Fechou os olhos, e tentou se concentrar um pouco. Olhou para dentro de si. A primeira resposta que veio foi "medo de dar tudo errado", o que parecia óbvio e vago demais. Todos temem dar errado, não? Mas por que daria errado? Parou e pensou por mais um momento e chegou numa resposta que fez o vazio dentro dele reverberar. Sabia que era isso que o incomodava. Juntou alguma coragem dentro de si, limpou a garganta e disse, o mais claramente que conseguiu.

—Você conhece muita gente.

Assim que falou, quis voltar atrás. Foi uma resposta horrível. Não fazia sentido, levantava mais dúvidas do que respondia. Tentou fazer melhor.

—Não é bem isso. Mas você... você sabe. Um monte de gente. E você... conhece elas. - Não somente estava apenas repetindo a frase horrível, mas agora também a mutilava. Bufou de frustração. Por que era tão difícil conseguir explicar?

—Eu... não conheço tanta gente assim, não entendi o que você quer dizer. - Respondeu o moreno, após angustiantes segundos. 

Óbvio que ele não entendia, a frase não fazia sentido algum! Respirou fundo, tentou reformular a frase. Não era tão difícil assim... mas não queria soar nem infantil, nem acusador. Essa era a parte desafiadora. Chegou à conclusão que precisava ser mais direto, ou não seria compreendido.

—Você conhece pessoas... - Repetiu, tentando chegar ao ponto. - E faz... "coisas" com elas.

Olhou para o outro em silêncio, torcendo para que fosse o suficiente para que ele entendesse. Esperou por alguns segundos por uma reação. Ele o olhava como quem não entendia muito bem qual era a dificuldade dele em compreender algo tão óbvio. Sem alterar sua expressão disse, por fim, como quem explicava a mesma coisa pela quinta vez.

—Mas eu hoje estou aqui com você. É com você que eu quero estar, não com outras pessoas.

Ele não compreendia. Ficou lisonjeado com as palavras, mas essa não era totalmente a questão. Quer dizer, era um pouco, mas era muito mais que isso. 

—Mas eu só... não... sei como... ou o que você... quer... depois...

—Você não está fazendo muito sentido.

Não, claro que não estava. Sentiu raiva. Por que não conseguia falar direito? E por que o outro não tentava entendê-lo? Sabia que não estava fazendo sentido, não precisava que jogassem isso na sua cara. Com uma pontada de raiva, jogou pra fora a primeira frase completa que conseguiu formular.

—Você fica com pessoas só uma vez.

Ficou estranho, mas pelo menos ele disse. Obviamente, disse do pior jeito possível. Parecia acusatório. Logo mais o garoto precisaria de um advogado de defesa pra conversar com ele. Abaixou o rosto, sentindo que a batalha contra as lágrimas estava prestes a ser perdida.

Viu os pés do moreno - que usava um all-star cinza, bem gasto - chegando perto, mas não conseguiu erguer o rosto. Sentiu uma mão no seu ombro.

—É isso que te incomoda? Eu pegar umas pessoinhas por aí?

Ele falava tão casualmente que deu até repugnância. Mas ele estava encostando nele. Queria mais daquilo. Mas não conseguiu fazer mais do que um sim com a cabeça, sem de fato erguê-la.

—Ei, olha aqui. - A voz estava séria. Não conseguiu erguer o rosto. Após alguns segundos, ele decidiu apenas continuar falando. - Quem eu peguei ou deixei de pegar não te interessa. Não é problema seu e você não tem anda a ver com isso. O que importa é que agora eu estou aqui, e não quero ficar contigo apenas um dia. Queria algo sério. Você é incrível, e seria um desperdício ficar só um dia contigo.

Não sabia como se sentir com isso. Foi uma resposta realmente estranha. Sincera, sem dúvida... E meio sem tato. Era um elogio, afinal de contas, mas por algum motivo não soava como um. 

Sentiu uma lágrima morna escorrendo pelo rosto. Odiou aquilo. Não queria chorar na frente dele. De tudo o que poderia fazer isso, só mostraria o quão patético ele mesmo era. Percebeu uma raiva queimando dentro dele.

Não suportava mais aquilo. Queria gritar, em silêncio. Queria explodir, sem machucar ninguém. Queria dar socos em alguma coisa até quebrar, desde que não desse problema.

—Você não entende como é. - Disse, fechando os punhos. Sentiu-se melhor falando alguma coisa, mas... Por que o outro não podia simplesmente entendê-lo? Por que eles não podiam ir embora e acabar com isso?

—Eu te entendo. Você precisa só acreditar quando eu digo que quero estar com você...

—Não é isso! - Explodiu. Olhava agora nos olhos do garoto, que pareceu meio assustado à reação. Queria gritar, queria explicar, queria deixar tudo bem entendido, queria não falar mais nada, queria ficar quieto sozinho em casa, queria ficar bem com o garoto ali. Não sabia o que queria. - É mais complicado que isso. Você... - Por que era tão difícil falar? Não conseguia articular as ideias em palavras, e não conseguia falar as poucas palavras que conseguia juntar.

—Você quer um abraço?

Não soube de onde veio aquilo. Acabara de gritar com ele, e agora ele oferecia um abraço? Definitivamente ele merecia coisa melhor.

Mas aceitou o abraço antes que o menor pudesse mudar de ideia.

Sentiu um choro mais forte nascendo dentro de si, e respirou fundo pra evitar que viesse à tona. Já havia deixado que o outro o visse chorando com raiva, não precisava que ele visse mais nada. Só queria ficar ali, em paz, naquele abraço.

Naquele abraço quente, macio e confortável. Sentindo o leve cheiro tão particular daquele garoto. Nunca descobriu do que era esse cheiro, parecia algum tipo de fragrância, mas nunca achou nada com um cheiro semelhante. De qualquer forma, isso não importava. Ali, com a cabeça deitada no ombro do rapaz, tudo estava certo. Não conseguia entender como ele conseguia abraçá-lo por cima, mas não questionaria isso. Passou seus próprios braços por baixo dos dele e o abraçou de volta. 

Neste instante, conseguia sentir o corpo magro do moreno junto ao seu. Era firme e confortável ao mesmo tempo. Não conseguia se lembrar de nada que gostasse tanto de estar perto. Queria poder ficar mais perto. Passou as mãos pelas costas do garoto. O moletom macio era fino, aquela blusa não deveria esquentar muito, e por baixo do pano podia sentir as duras costas do garoto. Era uma rigidez bem-vinda. Um apoio que precisava pra continuar ali em pé. Quis estar ainda mais perto, passar as mãos por aquela pele e sentí-lo como pessoa.

Escondeu melhor o rosto no ombro do outro, onde certamente ninguém poderia ver sua expressão.

—Desculpe. - Disse, baixinho. Estava ao lado do ouvido dele, sabia que ele ouvira, mas não houve nenhuma resposta.

Teve então a súbita certeza que havia invadido o espaço pessoal do garoto. Ninguém gostava tanto assim de abraços.

Afastou-se, o mais rápido que pode sem parecer estranho, ainda enxugando os olhos.

Quando estavam novamente frente a frente, não sabia como agir. Tentou ver a expressão do garoto, mas descobriu que precisava de uma força que não tinha para erguer os olhos. Continuou encarando o chão até ouvir o garoto perguntar.

—Está melhor?

Fez que sim com a cabeça, ainda sem olhá-lo, sentindo-se infantil. 

—O que você tem que entender - retomou o outro, com toda a gentileza na voz - é que eu escolhi estar com você. É você quem eu quero. E se eu fiquei com fulano ou beltrano, não importa.

Ele estava certo. Não importava. Era óbvio, e ele se envergonhava de pensar de outra forma.

Conseguiu por um segundo olhar o garoto menor. Havia alguma preocupação no rosto dele. Tentou melhorar as coisas dando um breve sorriso, mas não tinha certeza se ele havia percebido, pois não conseguiu manter o rosto erguido por muito tempo.

—Nada nessas três semanas me fez sentir um terço do que eu sinto quando estou com você. Você é importante pra mim.

Sentiu um ânimo preencher seu peito. Uma sensação quente, aliviadora, que alguns segundos depois parecia algum tipo de combustível. Sentia que havia energia de sobra nos seus músculos. Poderia correr uma maratona e não se cansaria. Mas tudo o que queria fazer no momento era poder dar uma resposta decente.

—Você também é importante pra mim. - Disse, com a voz fraca.

Não foi uma boa resposta. Nem sequer foi original. Mas foi uma resposta, já era alguma coisa. Olhou novamente para o garoto, que agora sorria. Desta vez, conseguiu manter o olhar.

Nada naquelas três semanas o fizera se sentir tão bem. Ele entendia isso. Nada que ele fizesse naqueles dias parecia satisfazê-lo. Na verdade tudo o que ele quis foi estar novamente com o garoto.

Um pensamento passou por sua cabeça, causando um gelo que desceu-lhe a espinha, e pareceu que o mundo congelou à sua volta.

Nessas três semanas, tudo o que fizera para ocupar a mente foi jogar, ver séries, e ler livros. Rotina para ele. Mas não era assim que o outro se distraía.

Sentiu sua boca seca. Não queria perguntar. Mas precisava saber.

—Você...

Engoliu em seco. Olhou novamente o rapaz, que estava agora com um olhar... condescendente? 

—Está tudo bem, pode perguntar. - Incentivou. Sabia que podia perguntar, sentiu-se frustrado por isso. Não precisava que o outro lhe dissesse.

—Você... esteve com alguém esses dias?

A expressão dele agora era vazia, aparentando uma leve curiosidade.

—Como assim?

Teve a certeza que ele havia entendido a pergunta. Ele só queria mais tempo para pensar na resposta.

—Você entendeu.

—Não, não entendi. Estive com um monte de gente esses dias, minha família, uns amigos, uns colegas.

—Não - disse, sentindo uma raiva misturada com a familiar frustração por não conseguiu falar - Você ficou com alguém essas semanas?

Um breve silêncio seguiu entre os dois, o que só serviu para dar mais peso à resposta.

—Fiquei, por quê?

Sentiu seu estômago afundar, levando seus ombros junto.

—Por nada. - Mentiu. Se corrigiu logo em seguida. - Alguém que eu conheça?

Não havia por que saber disso. Estava bem como estava. Bom, não estava bem, mas essa resposta só poderia piorar as coisas.

Mas não saber possivelmente seria pior. Por quanto tempo ruminaria essa dúvida, até que não aguentasse mais? Quais cenários improváveis ele imaginaria e tomaria como certos até que soubesse da verdade?

—É, sim, você conhece ele. - Respondeu, meio evasivamente. Percebeu que ele estava escondendo algo e se esforçava para parecer natural, mas havia algo meio desafiador em sua postura, como se estivesse pronto pra dizer "e o que isso te importa?". Em outra situação, seria engraçado ver como ele não conseguia esconder isso muito bem, já que ele era excepcional em esconder tudo.

Fez uma rápida lista mental de quem poderia ser. Tentava evitar um nome, mas ele não conseguia parar de pensar nele assim como a língua não consegue ficar longe de um buraco em um dente.

Havia um garoto... Ele havia visto umas duas ou três vezes, sempre conversando com o moreno que ainda o encarava meio desconversado, meio em desafio. Era, possivelmente, o garoto mais bonito que ele já vira na vida. Havia nele algo que o irritava profundamente. O jeito que parecia andar sem se importar com o que estava à volta dele, ou o jeito despreocupado de falar, ou o cabelo castanho e longo - nunca admitira, mas sonhava que seu próprio cabelo quando longo seria como o dele -, o nariz meio esquisito que fazia seu rosto parecer ainda mais atraente, ou a óbvia popularidade que ele havia... 

Uma das vezes que ele o havia visto, aliás, fora naquele shopping mesmo. Em outra ocasião seu amigo lhe disse que era raro o outro garoto aceitar ir ao shopping, pois ele não era muito de fazer esse tipo de programa. Quando questionado porque ele estava ali, o moreno desconversou, o que o fez ter uma curiosa sensação que havia mais nessa história do que uma simples ida ao shopping era.

Agora parecia óbvio. Imaginou por um momento os dois juntos, como um casal. Odiou imediatamente a imagem mental que fez deles juntos, de braços entrelaçados, se beijando. Odiou três vezes mais perceber que eram um casal perfeito.

Imaginar tal cena o fez imediatamente se sentir indigno de estar ali. O garoto moreno merecia alguém melhor. Não era com ele que deveria estar gastando seu tempo. Todos que passavam algum tempo com ele logo enjoavam e iam embora. Pra alguns levava horas, pra outros levavam meses. Mas invariavelmente eles iam embora. Não havia porque ser diferente agora.

Sentiu então que não havia mais nada a perder. Queria chorar, mas não fazia sentido. Queria dormir, mas estava sem sono. Queria ir embora... mas precisava terminar essa conversa primeiro.

—Com quem foi? - Sua voz soava a ele mesmo desprovida de qualquer emoção. Não é como se ele se importasse.

O garoto menor ergueu as sobrancelhas, como que surpreso pela ousadia da pergunta, e após um instante perguntou.

—Lembra aquele amigo meu que você me viu com ele uma vez, aqui mesmo? De cabelo comprido, castanho? 

Já sabia da resposta, mas sentiu seu estômago afundar.

—Sei, sei. - Não havia o que falar sobre o assunto, e a enorme resignação que sentia não deixava que qualquer outra coisa pudesse ser dita. Exceto, talvez... - É, ele é bem bonito.

—Bastante, sim. - Concordou o outro.

Pegou-se fuzilando o menor com o olhar. Repreendeu-se, pois não tinha o direito de ficar bravo com ele. Ficou bravo por ficar bravo sem motivo, sentindo uma raiva de nada e de tudo... Mas tão logo quanto o sentimento veio, ele se transformou em falta de ânimo. Não adiantava ficar bravo, não iria mudar nada. Não faria nenhuma diferença. Não havia nada mais a ser feito.

O silêncio entre eles alongou-se. 

—Você está bem? - Perguntou o menor, novamente olhando-o com olhar preocupado.

Detestou a preocupação dele.

—Só sono. - Veio a resposta automática. Piscou meio lentamente, pra vender melhor sua mentira. - Bora voltar pra praça?

E, temendo ouvir qualquer resposta, foi andando na frente.


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Notas finais do capítulo

Engraçado como a gente passa a gostar das personagens assim que as colocamos no papel. Foi difícil escrever isso, mas não havia outro caminho a percorrer. Ser inseguro é realmente horrível.

Terceiro capítulo virá em breve, gostei desses dois :P



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