Conhecimento Adquirido e Não Confesso escrita por Tai Bluerose


Capítulo 6
Na Casa da Falésia


Notas iniciais do capítulo

Olá
Gostaria de me desculpar com todos que acompanham. Prometi atualizações aos sábados, mas ocorreu um imprevisto. Por causa de acidente envolvendo um transformador ou algo assim no meu bairro, fiquei sem energia e sem internet desde sexta. Três dias sem internet e luz...sofrido. Internet acabou de voltar e cá estou.

Aproveitem a leitura ♥



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Na Casa da Falésia

 

Já estávamos há horas na estrada guiando uma viatura roubada. A essa altura, a polícia já devia ter nos alcançado, mas continuamos sozinhos na estrada por quilômetros e quilômetros. Julguei que Jack só poderia estar segurando as pontas como podia, esperançoso de que eu estivesse sobre o controle de tudo. Perguntava-me se eu tinha realmente controle sobre alguma coisa; eu estava simplesmente deixando a corrente me levar, esperando para ver onde tudo iria terminar.

Não havia casas por perto, apenas um campo vazio, de um lado e outro da longa estrada. A única iluminação provinha da lua cheia e dos faróis do carro. Hannibal e eu não trocamos uma única palavra durante horas, ele pareceu não se incomodar.

Fiquei um bom tempo olhando pela janela. Olhando para dentro de mim, para todos os caminhos que eu poderia seguir. Esperava ter forças para me manter na direção correta.

 ― Deve estar cansado, Will. Durma um pouco ― a voz de Hannibal finalmente quebrou o silêncio. Seu tom era gentil, sua preocupação era real. Mesmo parecendo contraditório, e apesar de tudo o que ele fez a mim, Hannibal sempre se importou com minha saúde física, mental e emocional, mesmo que por vezes tenha brincado com elas. Ele sempre quis que eu estivesse bem. ― Não se preocupe comigo, tive muito tempo para dormir na minha cela. Posso ficar acordado por dias. Descanse, eu o acordarei quando chegarmos.

Acatei a sugestão e me recostei no banco. Os olhos castanhos de Hannibal pareciam pretos no escuro, abissais. Olhei para o rosto sereno dele por mais alguns minutos antes de fechar os olhos e dormir.

Eu confiava nele o suficiente para saber que ele não me mataria durante o sono. Hannibal tivera centenas de chances de me matar, ele até tentou, mas nunca o fez de fato. Eu seria capaz de retribuir o favor?

.

.

Quando acordei, o dia já estava claro. Por volta das 7h20 da manhã. Ajeitei-me com dificuldade; meu corpo, principalmente o pescoço, estava rígido devido à má posição em que dormi. Hannibal disse que já estávamos chegando, o que seria bem conveniente, porque a gasolina já estava no fim, e não tinha e nem seria prudente pararmos em um posto de gasolina para abastecer.

 ― Nenhum sinal de Dolarhyde? ― perguntei e olhei ao redor, esperando ver algum carro nos seguindo, da polícia ou do Dragão, mas não havia nada. ― Espero que ele nos encontre antes da polícia, essas viaturas têm rastreador por GPS, os federais poderão nos rastrear facilmente.

 ― Eu sei. Por isso joguei o rastreador fora a um quilometro e meio atrás, enquanto você dormia. Isso deverá atrasá-los um pouco.

Meneei a cabeça concordando. Era típico do Hannibal, estar sempre um passo a frente. Foi tolice minha achar que Hannibal não saberia disso. E suspeito da minha parte alertá-lo sobre isso.

Sentia como se houvesse dois dentro de mim. Um dizia, “Siga o plano, você precisa matá-lo. Ele é um assassino”. E o outro dizia, “Ajude-o a ficar livre e fuja com ele. Ele é seu amigo”. Eu tinha total e plena certeza de qual lado era o certo, mas estava completamente inclinado para o lado errado.

O esconderijo secreto de Hannibal era uma elegante casa a beira de um penhasco. Caminhamos até a borda, onde era possível sentir o cheiro do mar e ver as fortes ondas rebentando contra as paredes rochosas da falésia. Hannibal me contou que aquele foi o cativeiro de Mirian Lass depois que a seqüestrou, o lugar no qual manteve Abigail Hobbs escondida depois que forjou sua morte. E agora ele estava ali comigo.

― A encosta está erodindo ― Hannibal informou quando me viu observando o despenhadeiro. Ele parou ao meu lado e olhou de mim para o grande precipício. ― Havia mais terra quando estive aqui da ultima vez. Nós dois estamos suspensos sobre o inquietante Atlântico. Em breve, tudo isso se perderá no mar.

Hannibal pegou uma chave escondida sob um banco de pedra do jardim e abriu a porta para que entrássemos.

O lugar era tão elegantemente decorado quanto a casa de Hannibal em Maryland. Até havia um piano ao lado de uma grande mesa de jantar. Mas uma coisa me deixou intrigado, a casa estava limpa demais para um lugar que ficara três anos sem visitantes. Ainda mais se tratando de uma casa cujas paredes da sala eram de vidro. Tudo estava muito bem cuidado.

 ― Quem está morando aqui?

Hannibal sorriu satisfeito com o meu raciocínio. ― Chiyoh, imagino. Antes da minha prisão, Chiyoh disse-me que não poderia voltar para casa, na Lituânia. Dei a ela o endereço dessa casa e disse que poderia ficar aqui o tempo que quisesse. Pelo visto ela ainda está por aqui.

 ― E para onde terá ido?

 ― Sabe como é Chiyoh, não gosta de incomodar nem de ser incomodada. Provavelmente partiu quando nos viu chegar ou pode ser que ela volte. Mas é bom que ela fique fora por um tempo, caso o Grande Dragão Vermelho resolva aparecer.

Hannibal mostrou-me um quarto de hospedes e disse-me para ficar a vontade para descansar. O guarda roupas tinha algumas roupas e sapatos. Todos com a minha numeração exata. Havia uma pintura a óleo decorando uma das paredes, o contorno escuro de um homem num barco, pescando em rio com tonalidades incríveis de azul. Cada pincelada feita para reproduzir o movimento da água. Olhando para aquela pintura, eu me senti em casa. Não a minha casa em Marathon, na Flórida, mas a minha antiga casa em Wolf Trap. Quando tudo o que eu tinha era aquele rio, meus cachorros e... Hannibal.

Aquele quarto havia sido preparado para mim. Constatei imediatamente.

 ― Você gostou? ― Hannibal estava parado na porta, observando a minha pequena exploração.

 ― Pretendia me trazer para cá? Se nós tivéssemos fugido três anos atrás? ― ainda me doía tocar naquele assunto, talvez o magoasse também. Afinal, fui eu quem mentiu e enganou. Ele esperava que eu fosse com ele e eu esperava prendê-lo, só depois percebi que eu realmente queria ter fugido com ele.

 ― Sim. Ficaríamos pouco tempo aqui. Duas ou três semanas no máximo, enquanto preparávamos tudo; as passagens e as novas documentações suas e de Abigail. Depois nós iríamos para a Europa... ― Hannibal falava como quem já tivesse visto tudo acontecer. E talvez tivesse acontecido em algum mundo do seu Palácio Mental, assim como um dia eu imaginei um mundo em que Abigail estivesse viva, em que eu teria fugido com Hannibal, onde seríamos uma família feliz na Europa. Mas era tudo perfeito demais para ser real. A realidade é cruel. ― Ainda não é tarde para isso.

Olhei para Hannibal e alguma coisa nele era atrativa, sedutora, acolhedora. Disse a mim mesmo que era apenas um truque da aranha tentando atrair-me para sua teia.

 ― Já é tarde para muitas coisas, Hannibal.

 ― A menos que a morte chegue, nunca é tarde para coisa alguma, Will. Fique a vontade, preciso tomar um banho descente. Sonho com isso há três anos.

Hannibal se retirou para o próprio quarto. Havia mais dois quartos de hóspedes além do meu na casa. Perguntei-me se um deles estava decorado com as coisas de Abigail, mas decidi não entrar em nenhum. Aquela era uma porta que eu deveria manter fechada.

.

.

Hannibal preparava o almoço. Ofereci-me para ajudar, mas ele recusou.

Era bom vê-lo tão feliz fazendo algo que o agradava. A imagem dele cozinhando me trazia boas e saudosas lembranças dos dias e das noites que passei em Maryland, vendo-o preparar seus impecáveis e deliciosos pratos. Era um show a parte.

Percebo que estive com ele mais do que com qualquer outra pessoa até aquele momento da minha existência. Se Hannibal entrou na minha vida, na minha cabeça e bagunçou a minha mente, tenho que admitir, foi porque eu dei abertura para ele. E por que eu fiz isso?

Talvez, no fundo, eu estivesse tão ansioso por companhia quanto ele estava.

Vê-lo cozinhar trazia uma sensação tranquila de familiaridade e conforto, mas não era o momento para ficar despreocupado. Não quando havia um assassino a espreita.

Eu esperava que Dolarhyde aparecesse a qualquer momento, mas as horas transcorriam sem qualquer sinal dele. Perguntava-me se depois de todo aquele trabalho para levar Hannibal até ele, Dolarhyde tinha perdido nosso rastro. Isso seria um problema. Eu tinha consciência de que não podia passar muito tempo sozinho com o Hannibal.

Afastei-me da cozinha e fui para a sala. Liguei a televisão para ver os noticiários. Noticiavam a fuga de Hannibal, como era de se presumir. A fuga e a notícia deveriam ser falsas, mas acabaram se tornando verídicas. Quando orquestrei o plano, eu sabia que isso poderia acontecer, provavelmente, Jack Crawford também.

Para ser sincero, uma parte de mim ainda se questionava se meu plano era realmente usar Hannibal como isca ou simplesmente pô-lo em liberdade. Provavelmente as duas coisas.

Os noticiários falaram dos policiais mortos e que um ainda estava desaparecido. Não mencionaram que o tal policial era do FBI. Não mencionaram que o tal policial era eu.

Eu tinha dito a Jack que poderia me declarar como cúmplice, para dar veracidade a nossa farsa, eu não me importava. Admito que tal declaração foi um tanto suspeita. Mas Jack escolhera preservar a minha identidade. Pensando melhor, eu estava grato por isso, imaginei como seria horrível para Molly se ela descobrisse pelos jornais que seu marido tinha ajudado um serial killer canibal a fugir. Talvez ela jamais voltasse a confiar em mim.

Jack podia ter contornado a mídia, mas eu sabia que uma certa ruiva já estava ligando os pontos e escreveria um enorme artigo sobre como Will Graham ajudara Hannibal, o canibal a escapar. Isso não era exatamente a verdade, mas também não era uma completa mentira.

.

.

Como era de seu costume, Hannibal esperou que eu desse a primeira garfada e demonstrasse minha aprovação à comida antes que ele pudesse começar a comer.

― Dolarhyde está demorando muito, ele já devia ter aparecido ― Comentei após três garfadas. Aquela comida estava maravilhosa.  

― Ele costuma atacar as famílias à noite, quando a Lua está bem visível. Devemos esperar que ele apareça nesse momento.

― Só quero que tudo isso termine logo.

Hannibal parou seus talheres e me observou por alguns segundos.

― Espero que sua pressa e ansiedade não signifiquem que minha presença o desagrada. Isso seria triste, pois sempre apreciei sua companhia.

― Sua presença não me desagrada. É a intimidade imposta por você que me perturba. Não somos amigos, Doutor Lecter.

Tentei ser o mais firme que podia. Talvez tivesse soado um pouco petulante. Hannibal me encarou em silêncio, seus olhos se estreitaram minimamente.

― Vizinhos moram ao lado um do outro por anos, podem saber em que trabalham, a que horas saem ou voltam e outras coisas mais. No entanto, podemos dizer que eles são íntimos? Algumas informações, como qual a cor favorita, algum fato da infância, saber o que o outro faria em determinada situação, esses detalhes específicos só são sabidos por pessoas que mantém certo nível de intimidade. Intimidade não é imposta, ela é concedida, aceita e/ou compartilhada. Uma pessoa só se torna íntima se você permitir. Da mesma forma, a cada pessoa, concedemos diferentes níveis de intimidade. Quanto maior o nível de intimidade, melhor conhecemos uma pessoa, sabemos como ela é por fora e por dentro. Quanto mais íntimos nos sentimos de alguém, mais permitimos que esse alguém nos veja sem máscaras. Eu deixei que você me visse, Will. E para mim, é como se você estivesse nu. Você se mostrou assim.

Hannibal tomou um gole de seu suco e continuou comendo. Eu fiquei em silêncio. Eu sabia que ele tinha razão.

― Eu o considero um amigo, Will. Se você acha o mesmo ou não, não vai mudar minha opinião. Coma sua comida, antes que esfrie.

.

.

― Sabe, Will, você se preocupa demais. Você ficaria mais confortável se relaxasse.

Hannibal se aproximou e perguntou se poderia sentar ao meu lado. Era por volta de 14 horas da tarde, eu estava sentado no banco de pedra, olhando para onde o penhasco acabava e começava o oceano. Nenhum sinal de Dolarhyde. A demora estava me deixando ansioso. Hannibal tinha percebido.

― Eu sempre apreciei o sabor das coisas, mas depois de ficar preso, apreciar os sabores e os momentos se tornou algo ainda mais importante. ― Hannibal tinha em mãos duas metades de uma pera; deu uma delas a mim.

Dei uma mordida na pera olhando para ele. Hannibal fez o mesmo olhando para mim.

―Refrescante, não é? O sabor da liberdade.

Limitei a sorrir para ele.

Hannibal terminou de comer sua metade da fruta e apoiou as mãos no banco; inclinou a cabeça para trás, fechou os olhos e ficou apreciando o sol e o vento.

― Estou curioso... ― eu disse. ― O que você espera que eu faça quando o Dragão chegar?

― Espero vê-lo fazer aquilo que tem vontade de fazer.

― Com todas as suas consequências? ― Eu queria que Dolarhyde morresse, mas também queria que Hannibal morresse... parte de mim queria. Hannibal sabia muito bem disso, assim como tinha plena consciência de que eu o tinha soltado para guia-lo a uma possível morte, pelas mãos de Dolarhyde ou pelas minhas. Incomodava-me o fato disso não o deixar perturbado.

― Com todas as suas consequências ― Hannibal ficou olhando para mim. Eu mantive minha atenção no espaço a minha frente, não queria cruzar com os olhos dele. ― Você já tentou se conter, se anular, se manter longe, esconder e negar seus instintos, mas nada deu certo por muito tempo. Porque não tentar o contrário ao menos uma vez? Lembre-se de como se sentiu quando matou Hobbs, como se sentiu quando matou Randall Tier. Você apreciou a experiência, não foi?

Cravei os dedos no banco ―Eu me senti poderoso.

―Porque lhe dá prazer fazer coisas ruins para pessoas ruins. Não há nada de errado nisso.

―Claro que há. 

―O lobo nasceu com o instinto de matar a ovelha. Podemos dizer que o lobo é errado, que ele é um assassino, se Deus deu a ele esse instinto? Você é livre para imaginar qualquer coisa, Will.

―E agora que eu imaginei o pior... O lobo pode ser treinado para não atacar as ovelhas; resistir a seus instintos. Ele pode até se imaginar matando as ovelhas, mas pode escolher não atacar.

― É verdade. Mas ele sempre vai desejar atacar.

―E se houver alguém para atiçá-lo é bem provável que ele ataque ― falei irritado. ― Isso não é justo, Hannibal. Você fez de tudo para interferir na minha vida, para não me deixar ir. Você não me deu escolha.

Levantei-me do banco e me afastei três passos apenas. Hannibal permaneceu sentado, apenas girou no assento para me encarar.

― Primeiro, tenho certeza que não há nada de errado em lutar por algo que se queira, e eu nunca fui de desistir. Segundo, você sempre teve escolha, Will. Sempre dois caminhos a seguir. Você estava livre de mim e do Jack, tinha sua família e uma vida comportada. Quando recebeu a minha carta, você teve a escolha de não lê-la, mas você a leu. Quando Jack bateu a sua porta, você teve a escolha de não voltar, mas você voltou. Quando as investigações pareciam levar a um beco sem saída, você teve a chance de encontrar a saída sozinho. E lá no fundo, você sabe que encontraria. Você encontraria... Mas você veio atrás de mim. Ninguém te obrigou a isso. ― Hannibal se levantou e caminhou até a mim. ― Assim como não te obriguei a entrar na viatura comigo, mas você entrou. Não estou prendendo você aqui, pode ir embora a hora que quiser; pode até avisar a polícia se desejar. Então, por que ainda está aqui, Will?

Hannibal estava tão próximo que podia ver os pontos vermelhos granulados em seus olhos castanhos. Tão próximo, que temi que ele ouvisse as marteladas do meu coração. Meu corpo inteiro estava enrijecido. Meus olhos estavam tão marejados que tive a impressão de que uma lágrima escorreria se eu piscasse.

―Você sempre teve a escolha, Will. Mas você sempre fez a escolha que o deixava mais perto de mim.

Abaixei a cabeça e me desviei dele. Tomei a direção da casa.

―Você age como se fosse o único a ser influenciado e a sofrer por isso ― a voz de Hannibal me seguiu. ― Matar Abigail não foi só uma punição para você, mas para mim também.

Parei ao ouvir o nome de Abigail. Olhei para ele, esperando que ele continuasse.

― Abigail era minha única oportunidade de ter Misha de volta, de cuidar da irmã que perdi; seria a filha que você sempre quis ter. Matá-la foi uma lembrança para mim do que acontece quando baixo a guarda. Do que acontece quando eu me permito ser fraco, ser enganado. E eu não podia deixar que isso acontecesse novamente.

―Por isso tentou me matar na Itália?

―Eu sabia que você tinha se tornado uma fraqueza. O único jeito de me libertar de você, seria se eu te matasse. E a única maneira de eu me saciar de você depois disso, seria se eu te comesse.

―Mas você não conseguiu fazer nenhum dos dois.

―Devia ter feito isso há muito tempo, quando tive a primeira oportunidade. Sei que não sou mais capaz de matá-lo, Will.

―Por que não? Você só precisaria cortar minha garganta ― falei sorrindo com a maior naturalidade, como se conversássemos sobre algo banal. Bom, pelo menos para nós dois, aquela era uma conversa considerada comum.

― Porque a sua réplica no meu Palácio da Memória não chega aos pés do original, por mais que eu tenha me esforçado para recriar todos os seus detalhes e características.

―Fantasiou comigo? ― indaguei surpreso. Hannibal sorriu.

― Sim. Mas sem qualquer conotação sexual, eu asseguro.

―Não foi o que eu quis dizer ― retruquei constrangido. Nunca imaginei que Hannibal se imaginava conversando comigo, assim como eu tantas vezes me imaginei conversando com ele.

―Eu sei que não. Sim, você está no meu Palácio da Memória. Como acha que suportei os três anos preso? Você sempre esteve comigo. Conversamos sobre os mais diferentes assuntos. Espero um dia ter essas conversas com o verdadeiro Will Graham. Venha comigo, quero mostrar-lhe algo.

Hannibal tinha esse incrível dom de irritar-me e de me levar à tranquilidade absoluta em espaços de segundos. Segui-o, curioso, como se não tivéssemos acabado de ter uma discussão.

Ele me guiou até o banheiro de seu quarto. Havia um espelho que permitia ver o corpo inteiro. Hannibal me posicionou diante dele.

―O que você vê?

― Você. Eu... ― Dei de ombros. Hannibal estava parado atrás de mim, podia ver seu reflexo sobre meu ombro. Imaginei nós dois nos tornando uma só pessoa. ― Estamos começando a convergir.

― Quando o conheci, você era um menino, um cordeiro. Mas eu vi em você algo que jamais vi em outra pessoa. Eu vi um igual. Você precisava de alguém que lhe mostrasse que você poderia ser um caçador, que poderia se transformar num leão. Minha intenção nunca foi fazer de você uma cópia de mim, Will. Minha intenção é ajudá-lo a aceitar quem você é. A ver que você é um lobo em um mundo de cordeiros, mas que você não está só.

― Mas... e se... minha transformação não for como você espera? E se eu for um lobo que não é capaz de matar? ― perguntei olhando para meu próprio reflexo e vi o reflexo de Hannibal me analisando.

― Está perguntando isso porque acha que eu te rejeitaria se assim o fosse?

Hannibal inclinou um pouco a cabeça, como se quisesse que eu compartilhasse de sua curiosidade. Não respondi, saí do banheiro e parei diante da cama de casal. Hannibal me seguiu e parou diante de mim. Senti-me obrigado a olhar para ele. Hannibal falou:

― Se você decidisse matar alguém, Will, eu vibraria. Se decidisse não matar, eu compreenderia sua decisão. Assim como compreendi diversas vezes. Porque eu sei que você tem todos os elementos necessários para a compaixão, assim como tem para a violência. Essa dualidade está no seu cerne ― ele colocou a mão sobre o meu peito, pressionando, como se pudesse tocar na parte mais íntima do meu ser. ― É o que te faz ser como é, quem você é. A sua dualidade e imprevisibilidade faz parte da sua natureza, e como eu poderia odiar a sua natureza, Will? É o que te faz maravilhosamente único. Eu quero que você seja inteiro, ilimitado, sem medo. Um dia você decidirá sair de sua crisálida e revelar sua transformação. Espero estar presente, seria maravilhoso.

Eu ainda nem tinha passado 24 horas sozinho com Hannibal e ele já tinha me arrebatado completamente. Minha mão tocou a dele, que ainda estava sobre meu peito. Hannibal olhou-me com curiosidade. Eu me afastei trêmulo.

― Por que você não descansa um pouco? Passou a noite acordado. Eu vigio a casa enquanto isso. ― sugeri.

Hannibal sorriu, ainda me encarando com aquela estranha curiosidade.

― Obrigado. Você é muito gentil, Will.

O deixei sozinho e fui para a sala.

Seria tão fácil matá-lo se eu o odiasse.

Se eu o odiasse...

Se...

Eu me livrar dele, ele se livrar de mim. Dá no mesmo. Estamos ligados. Por mais que eu diga que não, estamos conectados. Se continuar assim, me tornarei alguém como ele. Eu não quero isso. O mundo não precisa de mais um assassino.

Não posso continuar vivendo no mesmo mundo que Hannibal Lecter. Não posso continuar vivendo num mundo sem ele.

É tão difícil matá-lo quando eu...

O que fazer agora?


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Notas finais do capítulo

Hannigram é muito amor ♥
Esse capítulo foi baseado na música Become the Beast. Muito linda. para quem ainda não conhece, segue o link:
https://www.youtube.com/watch?v=xmVzeriU5m0

Fiquem a vontade para me avisarem de possíveis erros. Deixem comentários se desejarem.
Obrigada a todos que leram.
Até o próximo.
Tai ^-^/



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