O Teatro no Fim do Mundo escrita por Arquivo


Capítulo 2
O Enforcado




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Só um pouco de cansaço

e talvez por isso

tudo fique mais lento.

Não um cansaço nos ossos

nem esses de alma

nem de visão do mundo 

que já falei tanto e tantas vezes.

Mas algo que me prende ao solo

e tenho de tirar dos ombros

para conseguir respirar.

Mas, que adianta?

A sensação ainda persiste.

Melhor fechar os olhos...

Dormir.

 

 

O som, me dava arrepios e eu podia sentir a eletricidade em cada pelo dos meus braços.

—Por quanto tempo pretende ficar ai?

Uma voz feminina e rouca, bem elegante, me fez abrir os olhos bem arregalados, eu estava de cabeça para baixo. Pensei que fosse vomitar.

—Ajude-me!

Eu me contorci, mas minhas pernas estavam amarradas por uma corda, eu estava no mesmo palco de antes, mas as cortinas estavam diferentes, eram do mais puro azul royal. Bem ao meu lado havia uma mulher alta de vestido vermelho carmesim, ela era pálida e seu cabelo era da mesma cor que o meu.

—Eu não posso, isso não está no script.

Ela virou de costas, eu senti um calor em minhas bochechas, isso era um absurdo!

—E o que está no script então?! – Berrei.

—No script diz que você tira a faca do seu bolso e corta a corda. – Disse enquanto acendia um cigarro que apareceu misteriosamente em sua mão.

Faca?! Eu toquei meus bolsos e senti algo no esquerdo. Era uma faca de cozinha, bem comum, um pouco velha para falar a verdade. Poderia estar cega. Mas isso não me impediu de tentar libertar minhas pernas, me curvei até agarrar a corda com minha mão livre.

—Vamos...!

A faca estava conseguindo cortar a corda, mas ela era muito grossa e toda a dor em meus ombros, por ter de esfregar o chão da zona C estava pesando sobre eles. Era uma situação infernal, eu estava quase desistindo quando o peso do meu próprio corpo fez o resto da corda romper. Ao atingir o chão, senti como se todos os meus ossos tremessem, mas não havia dor. O som do assoalho atingido ainda ecoava pela plateia vazia.

—Como uma pluma.

—.... Obrigada.

Meus pés ainda estavam juntos, eu me sentei devagar e comecei a desenrola-los, a faca foi lançada para longe na queda. Eu me levantei e fui até ela, estava próxima da mulher de vermelho. Olhando bem para ela, eu tinha a impressão de conhece-la.

—Qual o seu nome, madame? – Eu disse quanto me curvava para pegar a faca.

—Melhor ficar com o madame.

Eu dei de ombros, eu já estava acostumada a sempre chamar as pessoas de “senhor”, “senhora”, “madame”. Eu sabia o meu lugar.

—Certo... Madame, o que o script diz agora?

—Nada. – Disse em um tom mais baixo.

—Quer dizer que acabou?

—Não, era uma brincadeira, não há script.

Por um segundo eu me senti insultada, mas ela merece um ponto por conseguir me enganar, se bem que não era uma coisa muito difícil de se fazer, pois eu estava sempre a mercê dos outros.

Tirei um tempo antes de responde-la para examinar o ambiente ao meu redor novamente. “Como vim para aqui? ”, “Eu não gosto de sonhos muitos cientes...”, eu repetia m minha cabeça, pois algo de anormal se mesclava com o normal ali, como um delírio febril.

—Esse lugar é tão bonito, mas ao mesmo tempo eu sinto que há algo errado.

—Não há nada de errado no bonito, não há nada de errado no feio!

Uma voz falou em distância. O mesmo senhor de antes, na mesma fileira.

—Eu não entendo.

—A arte não precisa de uma aparência quando fala a verdade.

Ele falava passionalmente, eu entendia sua citação, mas não onde ela se aplicava, não havia peça nenhuma falando sobre verdade nenhuma.

—Que verdade? Não estamos encenando nada, ela disse que não há script.

Ao olhar novamente para a mulher de vermelho percebi que ela estava imóvel, um manequim de carne, como se sua imagem houvesse congelado no momento.

—Deus... o que há de errado com ela.

—Tive que parar o ensaio para conversar com você, Lira. Mas acho que o nosso tempo está quase no fim.

Ele se levantou e caminhou pelo corredor de fileiras até o palco, eu estava com medo, creio que dei um ou dois passos para trás antes de tropeçar na corda.

—Q-Quem é você?! – Disse enquanto olhava para a pobre mulher ainda imóvel, fumando seu cigarro.

—Sou o diretor dessa peça, - Ele subiu no palco em um pulo, como se a gravidade não tivesse poder sobre ele. – Você é minha nova atriz principal.

Seu rosto idoso tinha expressões leves e um sorriso dócil. Aquilo apertava meu coração, mais do que quando eu corria no escuro. Eu queria acordar.

—Vamos voltar ao trabalho, Lira.

—---

Eu convulsionei em minha cama, jogando meu corpo para frente como se acordasse de uma parada cardíaca. Suava como uma porca, precisava de ar, de água, precisava sair...

Levantei-me e corri até a porta do banheiro, por sorte sem fazer barulho algum. Minha camisola se arrastava pelo chão escuro, eu torcia para que ninguém me visse daquele jeito, mesmo que visse eu engoliria minha vergonha e continuaria a beber a água da pia como um animal.

—Que horror... – Sussurrei ao ver meu rosto no espelho, meus olhos estavam inchados e vermelhos.

Abaixei minha cabeça até a pia e deixei a água escorrer em minha boca.

—Lira...

Uma voz meiga surgiu atrás de mim, olhei rapidamente para trás e me deparei com Mirian se aproximando.

—Você me assustou.

—Me perdoe, está tudo bem? – Ela colocou suas mãos em um rosto, mas eu tentei me afastar.

—Estou suja.

—Não tem problema.

Ela colocou seu rosto próximo ao meu e me beijou duas vezes. Eu a abracei e descansei meu rosto em seu pescoço.

—Estou com medo, Mirian...

—Do que?

—Dos meus sonhos, estão piorando.

Olhei para ela diretamente, ela parecia confusa, mas prestava atenção como se esperasse por mim para lhe explicar. Quem me dera saber explicar.

—São pesadelos tão ruins assim...?

—Não são pesadelos, são sonhos estranhos, eu tenho medo do que eu não sei.

—Todos têm medo do que não sabem, mas é melhor do que saber de tudo.

Ela sorriu e contraiu sua bochecha contra a minha, movimentando-se como um gato. Então ela se afastou e segurou minha mão, me guiando de volta para o dormitório. Nos separamos, ela voltou para sua cama e eu voltei para a minha, jogando-me sobre o colchão duro e velho como se este fosse a superfície mais confortável do mundo, até sentir algo que cutucava minhas costas. Eu coloquei minha mão por debaixo e puxei o envelope de antes.

—Eu guardei você...

Mas não era o mesmo de antes, mas sim um novo, pois estava lacrado. Ao abrir vi que era outra carta de tarô, A Força.

“Querida Lira, sentimos muito pelo pequeno susto mais cedo. Não foi intencional, não totalmente. Suas apresentações vão muito bem, você não deixa de nos surpreender, mas deve se preparar para o ato final. ”


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