O Teatro no Fim do Mundo escrita por Arquivo


Capítulo 3
A Força.




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Difícil não é controlar a situação.

E sim sua fera interior

Sem ferir e nem ser ferido.

 

Foram meses difíceis para o hospital, uma guerra civil por conta da fome estava destruindo o país de dentro para fora. Comerciantes e lojas de fora começaram a sumir, as pessoas começaram a adoecer. Muitos estavam perdendo suas casas, então inúmeras pessoas se amontoavam pela frente, corredores e quartos do hospital... Pneumonia, tuberculose, pessoas cuja pele parecia estar apodrecendo... E o pior para mim, foi não ter ficado de fora disso tudo.

—Eu limpo o banheiro por você hoje. – Mirian estava ao meu lado na cama, eu havia tirado uns minutos para descansar depois de uma crise de tosse.

—Não precisa, eu só estou tirando um tempinho de toda a poeira, daqui a pouco eu me levanto.

Seu rosto enrugou um pouco, ela parecia querer chorar. Não era a minha primeira crise de tosse, também não seria a última, mas não queria que Mirian se preocupasse tanto, nem resolvesse tudo por mim. Ela acabaria fiando doente também, nós duas estaríamos acabadas.

—Senhora Jully é uma ingrata! O marido dela é médio aqui, depois de tudo o que você fez por esse lugar, sua vida toda foi nesse lugar! Uma consulta, um xarope, seria pedir demais?

—Sou uma serva daqui, Mirian, não uma associada. O que eu faço, faço por que não tenho mais para onde ir... ela sabe disso. Não existe gratidão para isso.  

Ela se deitou sobre mim, me abraçando com força, como se tentasse juntar meus pedaços. Eu suspirei percebendo o quão as batidas do coração dela eram mais rápidas que as do meu, uma sintonia errada, fora de ritmo. Eu sentia que estava na hora de criar um pouco de coragem.

—Mirian... você quer fugir?

—Como?! – Levantou rapidamente sua cabeça para me encarar.

—Se eu melhorar... vamos embora... para qualquer lugar.

Ela parecia hipnotizada pelas minhas palavras, talvez ela estivesse esperando por mim. Eu estava cansada, mesmo que não melhorasse das tosses, eu não queria apodrecer junto daquele lugar, não queria ser enterrada numa vala comunitária igual aos outros pacientes indigentes...

—Sim... vamos. – Ela se levantou e deu dois passos para trás. – Mas antes você precisa melhorar.

Ela saiu correndo do dormitório, naquele momento eu sabia que havia dito algo errado, ou não explicado direito.

—Mirian! Espere! – Ao levantar a voz, mais uma crise de tosse me atingiu.

Eu tossia tanto que perdia o fôlego, mesmo assim sai da cama e tentei correr atrás de Mirian, na velocidade que me era permitido, pois além de fraca haviam milhares de pessoas no corredor.

—Com licença! Com licença!

A tosse só piorava, até que o folego me abandonou por completo e senti minha visão escurecer e meu corpo pesar até o chão.

Talvez houvesse passado uns 3 minutos no chão, mas a tontura não me deixava levantar, nem abrir os olhos. Até que escutei uma respiração, grossa e bufante... apenas um dos meus olhos abriu, mas eu queria não ter feito isso, pois aquele que respirava fortemente perto de mim era um enorme leão que parecia estar dormindo bem ao meu lado.

—... Ah meu Deus... – Eu não contive meu medo, as palavras saíram em um sussurro.

—Nada tema, Lira! – Aquela voz.... Aquele... Velho!

A energia voltou ao meu corpo, como se eu já não estivesse mais doente, então me levantei devagar e me afastei da fera, que não moveu um só músculo em seu sono profundo. Parecia um animal anestesiado, ou morto.

—Ele não sabe que você está aqui, pode falar e agir normalmente que ele não te atacará... é uma promessa.  – Disse colocando sua mão direita sobre o peito enquanto a outra estava levantada.

Olhei ao meu redor, o maldito palco novamente e suas cortinas haviam mudado outra vez, eram douradas e prateadas, passei meses sem vê-lo. Olhei para a frente e vi o mesmo homem bem vestido em sua mesma cadeira, ele se levantou e foi até o palco.

—Como trouxe um leão para um teatro?! – Minha voz falhava.

—Ah... ele não é um leão de verdade, ele é uma interpretação do perigo!

—Isso não está ajudando.

Ele se aproximou de mim e se sentou ao meu lado.

—Então deixe eu te explicar, essa peça terá um fim, um grande ato! O qual nem eu me lembro.

—Não se lembra do fim da sua peça?

—MINHA peça? Não, não, querida. Eu posso ser o diretor, mas a peça não é minha... uma hora você entenderá. -  Ele gargalhou alto e eu rezei para que sua afirmação sobre o leão não acordar com barulho fosse verdade mesmo.

—Você é o diretor, eu sou a atriz... então quem é o leão?

—O perigo, algo de que você tenha medo.

—Algo de que eu tenha medo...

—Ou alguém.

Isso me lembrou que eu raramente me perguntava do que eu tinha medo. Na verdade, quase ninguém tira momentos da vida para pensar no que tem medo, eu tentei pensar em todas as coisas no mundo ou em todos os nomes possíveis, mas apenas um nome ecoava em minha cabeça.

—Senhora Jully.

—Boa menina.

—Mas por que Senhora Jully seria um perigo tão grande que teria de ser representado por um leão?

—Eu não me lembro, como eu disse, estou esperando o grande ato.

Eu olhei bem para o leão, até que ele se moveu, na verdade se espreguiçou e bocejou bem alto em um projétil de rugido seguido de um ronronar grosso.  

—Eu me pergunto o que vou fazer quando esse leão acordar, você me dará uma espada e um escudo?

Ele riu baixo, mas então sua face se tornou um pouco preocupada, mantendo seu sutil sorriso. Ele escondia algo, ou de fato ele não sabia de algo.  

—Quando ele acordar, a única coisa que você precisará ter é força e coragem...

—Como vou me defender de um leão usando só força e coragem. Vou dar uma lição de moral nele?

Ele manteve um longo período de silêncio.

—As verdadeiras força e coragem não estão no ato de se defender, mas no ato de defender o próximo.

Ele se levantou e se afastou de mim. Onde ele estava sentado antes havia uma carta de tarô nova, o número 13: A Morte.


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