Uma História escrita por Amanda Rocha


Capítulo 1
Uma História Sobre Como Eu Desisti de Ser Escritor


Notas iniciais do capítulo

"- Você é tão ambicioso para um jovem - murmura o Zé, baixinho. Não consigo definir se essa é uma conclusão que o deixa feliz ou chateado, porque ele tem sempre aquela expressão misteriosa no olhar. "
— Zé, Uma História



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Eu nunca acreditei em destino. Simplesmente não gostava da ideia de que eu não pudesse controlar minha própria vida. Ainda não sei se acredito agora, mas certamente há uma razão para tudo o que aconteceu.

Dizem que o nosso destino está traçado desde o dia em que nascemos e que não há nada que se possa fazer para mudar isso. Outros dizem que todos temos nosso lugar no mundo e que, se não seguirmos esse nosso destino, somos levados até ele. Chame do que quiser, mas eu não posso negar que, de fato, fui chamado àquele lugar e que de fato estive lá.

Mas antes de tudo isso, o meu maravilhoso "era uma vez" se inicia numa escola pública de uma cidadezinha pequena de um estado pequeno no sul do Brasil...

Quando o sinal bate, reviso o texto uma última vez antes de me levantar da carteira e caminhar rumo à mesa do professor. Minha turma está muito ocupada tentando se espremer pela porta para alcançarem a liberdade de suas casas para tentar entender o que o mané do Davi Belmonte está fazendo depois da hora de aula.

— O que temos agora, hein? - murmura o Sr. Souza ao pegar meu trabalho de literatura. Algo no tom de voz dele sugere que ele já está de saco cheio da minha insistência com isso, mas não é algo que ele vá dizer na minha cara, claro.

— Eu mudei o final - digo, enfiando as mãos no bolso para evitar que elas comecem a dançar com meu nervosismo outra vez. - Segui o conselho do senhor e... Acho que terminei agora.

O Sr. Souza me lança um olhar de desdenho que me irrita um pouco, não vou negar, mas mantenho o que acredito ser um sorriso gentil enquanto ele vai lendo o roteiro da minha história. Realmente me esforço para não aparentar tanta aflição quando ele termina (não querendo reclamar, mas levou pelo menos cinco minutos que eu fiquei ali sorrindo igual um retardado), tira os óculos e suspira, largando o meu trabalho.

— E então...? - começo, porque acho que ele talvez nunca abra a boca.

— Você mudou o final - ele afirma, após um tempo, o que acho um pouco óbvio, porque eu mesmo já tinha avisado sobre isso. - Gostou desse final, Davi?

— É, por isso que eu mudei - respondo, tentando não soar tão grosseiro.

— Eu não gostei.

A sinceridade do Sr. Souza é admirável

— Não solta faísca, você me entende? - prossegue ele, cruzando os braços sobre a mesa. Concordo com a cabeça, mesmo que não faça ideia do que ele quer dizer com isso. - Eu sinto que você está apenas contando uma história qualquer, o que você faz muito bem, Davi, não me entenda mal. Você conhece a gramática e a domina muito bem. Mas está narrando ela.

— Eu optei por um narrador-observador, senhor, eu...

— Não estou falando disso - o professor me interrompe, de uma maneira brusca. - Mesmo o narrador-observador tem que participar da história, ele presenciou tudo aquilo, ele tem afeto pelos personagens, ele sente. Você não está sentindo, Davi, e consequentemente seu narrador também não. Não tem sentimentos nessas linhas, não tem o fogo. É quase como se essa história não fosse sua. Você não me faz acreditar no que escreve. Isso não é ser um escritor.

Fico um pouco surpreso quando ele termina, porque o Sr. Souza sempre me dá correções gramaticais, só isso. Nunca falou nada sobre a minha escrita em si, se é que isso faz sentido. Sinto algo se mexendo no meu estômago e se não é fome, então estou ficando bem irritado. O pior é que não é exatamente com o Sr. Soares, é comigo mesmo.

— Ainda pode ser um escritor, Davi - o professor se levanta, recolhendo suas coisas. Ele nem olha em meus olhos, de maneira que fica um pouco difícil levar fé em suas palavras. - Mas talvez escrita não seja o seu negócio. Encontre o seu negócio.

Antes de sair ele me dá uma piscadinha que ele deve achar ser amigável, mas não após tudo o que ele acaba de me dizer. Pego o trabalho da mesa e faço uma bolinha de papel que acerto em cheio a lixeira antes de deixar a sala à passos firmes.

Já sentiu alguma vez que não pertence ao lugar em que está? Porque sinto isso sempre que entro nessa escola. Não é como se eu só odiasse estudar, é tudo ao meu redor. A violência, a pobreza, o perigo, a corrupção. Tudo isso vive paralelamente com a gente e todos parecem ignorar. Eu só queria poder sair daqui. No entanto, o mais perto que chego disso é deixar os portões da escola com a certeza de que estarei de volta na segunda-feira.

O que mais irrita é que a única coisa que podia me livrar disso tudo é ser um escritor. Quer dizer, é a única coisa que eu sou realmente bom e que me faz feliz fazer. Mas, aparentemente, esse não é o meu negócio...

— Meu jovem Davi!

Antes mesmo de me virar já sei que é o Zé, pois seu hálito de morador de rua é perceptível mesmo daqui onde estou. E também ele é o único que insiste em me chamar de "Deivi", com aquele ar formal, mesmo eu já tendo explicado várias vezes que a pronúncia é "Davi" mesmo.Tudo o que consigo lhe dar é um sorriso, porque realmente não estou em condições de desejar um bom dia pra alguém.

— Não parece muito feliz para uma sexta-feira, garoto! - ele observa, me alcançando (estou apertando o passo numa falha tentativa de não precisar falar com ele hoje). - Venceu mais uma semana, mais perto do seu futuro, hein?

Baita futuro... - não posso deixar de rir disso enquanto viramos a esquina e avisto um grupo de crianças jogando bola na calçada.

Zé para de caminhar, o que me obriga a parar também porque acho meio rude da minha parte dar as costas no meio de uma conversa (desvantagens de ser uma boa pessoa como eu).

— Achei que você estava indo bem com seu futuro de escritor, jovem Davi.

Se eu não conhecesse Zé e sua ingenuidade eu ficaria muito irritado porque esse é um assunto que tem me irritado muito ultimamente. Principalmente depois do discurso animador do Sr. Soares.

— Não sou um escritor - respondo, com toda a calma que consigo reunir. - Provavelmente nunca vou ser. Acho que eu não tenho o dom.

— E o que causou essa repentina mudança de planos? - ele tenta entender. Devo ter soltado uma carranca bem óbvia porque ele logo prossegue: - Bom, talvez esteja tão à frente de si mesmo que esquece do que realmente precisa. Devia focar menos no futuro e tentar viver o agora, jovem Davi.

Sobre o Zé: Ele é um mendigo doido com mania de velho sábio. Se não fossem suas roupas surradas e seu cabelo afro ele poderia facilmente ser confundido com um daqueles monges aconselhadores que servem como guru espiritual.

— O meu agora não é exatamente reconfortante - digo, olhando irritado para toda aquela sujeira espalhada pela calçada. - Tinha que dar um jeito de sair dessa miséria de lugar. Isso não é vida pra mim. Eu devia ser rico. Morar numa casa grande, ter um carro. Segurança. Uma vida de verdade.

— Você é tão ambicioso para um jovem - murmura o Zé, baixinho. Não consigo definir se essa é uma conclusão que o deixa feliz ou chateado porque ele tem sempre aquela expressão misteriosa no olhar.

— De qualquer jeito... - continuo (porque não faço ideia do que dizer nessas horas em que ele larga essas filosofias), voltando a caminhar. - Escrita não é pra mim. Eu vou simplesmente achar alguma coisa que dê dinheiro e viver disso. Não preciso necessariamente amar o meu trabalho, preciso? Quer dizer, desde que me dê uma vida de verdade...

O Zé me observa por um bom tempo, mas não me diz nada a respeito, de modo que logo me despeço e sigo o longo caminho até minha casa ainda com a conversa com o Sr. Soares em minha mente. Razão pela qual não devia estar com a melhor das caras quando fui recepcionado pelo meu irmão mais velho, o Miguel. O que, como é de se esperar, resultou em mais uma briga.

— Qual a merda de hoje, hein moleque?! - ele se aproxima, deixando claro com seu hálito e a voz engrolada que está bêbado. - Não tá satisfeito mais uma vez? Não tá gostando da sua vida?

— Sai daqui, Miguel... - eu o empurro, largando a mochila em cima do sofá.

Miguel obviamente não entendeu o significado do "sai daqui" e provavelmente ficou ofendido com o empurrão, pois me puxa pelo braço ameaçadoramente.

— Tá achando que é homem, guri? - ele cospe as palavras com o rosto perto o suficiente do meu para que que eu olhe diretamente em seus olhos. Em vez de rebater (o que quero muito fazer) eu me concentro em tentar desvencilhar meu braço, o que claramente não tem muito sucesso.

— Ei, vocês... - minha irmã interrompe nossa pequena discussão. - Parem, ok?

Lúcia é uma das minhas pessoas favoritas no mundo. Ela também é mais velha que eu, mas não me trata como um idiota só porque ainda tenho quinze anos. Além do mais ela ainda é a única que consegue ser justa e boa com todos aqui em casa. Até mesmo com o Miguel...

— Se safou dessa, hein... - debocha ele, rindo como se fosse a coisa mais engraçada do mundo e finalmente me solta. Lúcia lança um olhar irritado enquanto ele sai para a cozinha e depois um de "sinto muito" para mim.

Infelizmente, antes que eu possa aproveitar que estamos sozinhos para contar a ela sobre minha decisão sobre o "futuro", meu pai adentra a sala, provavelmente preocupado com o fiasco que Miguel fez (um motivo surpreendemente importante o suficiente para que ele deixe o seu escritório).

— Deixa ele, Davi - diz meu pai, pois esse é o mais perto de "pai atencioso" que ele consegue chegar nesses momentos em que Miguel está bêbado.

Só concordo com a cabeça, porque sei que não vale a pena gastar saliva tentando explicar que "deixar ele" é tudo que tenho tentado fazer nos últimos sete anos.

— Conseguiu pagar as últimas parcelas, pai? - Lúcia pergunta, carinhosamente. Fico grato por ela ter mudado de assunto, até que ouço a resposta de meu pai:

— Ah... Não exatamente... Vamos ter que dar uma apertada esse mês.

De novo? - as palavras escapam de minha boca antes que eu possa filtra-las. Lúcia me olha irritada pela minha falta de tato no atual momento, mas ignoro ela e me concentro na cara de coitadinho que meu pai está fazendo: - Vamos ter que continuar nessa miséria mais um mês?

— É, e estou tão chateado quanto você - ele suspira e se volta para Lúcia, que para de me encarar e se apressa em tranquiliza-lo.

— Tá tudo bem, pai, eu posso pegar mais um turno na empresa, não tem problema...

— Claro que tem! — eu interrompo, novamente irritado. - Isso não é responsabilidade sua, é dele!

Mal tenho tempo de apontar para meu pai quando de repende Miguel aparece do nada e parte pra cima de mim aos berros:

Você não tem que falar dele, seu pirralho de merda! Não se mete na vida dele!

Estou protegendo meu rosto dos socos que ele desfere, mas sei que Lúcia e meu pai estão tentando o tirar de perto de mim, mesmo que Miguel seja um cara enorme que no momento parece um gorila no cio tentando desesperadamente pegar suas bananas.

Os xingamentos continuam e ele ainda está me sacudindo quando alguma coisa acerta o lado direito da minha cabeça com força e eu perco a consciência.

Eu não sabia naquele momento, mas na próxima vez que acordasse já não estaria mais neste mesmo mundo. Estaria em Murkan.

 


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Notas finais do capítulo

Comentários são ótimos, viu, gente :)