A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 7
Seis




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Assim que a tropa desapareceu de vista, Agoirá e Igaracê voltaram para onde os escravos ficavam.

Leonor ordenou para as outras índias voltarem para a cozinha e foi atrás deles. Mas Mãe Maria a seguiu.

— Agoirá?

— Sim moça Leonor.

— Eu acho que deveria contar o real motivo que me fez pedir ao meu pai que vosmecês ficassem. Eu não queria que participassem do ataque a uma aldeia tupinambá. Como vosmecês iriam se sentir se fossem obrigados a escravizar um irmão?

Agoirá e Igaracê olhavam para ela como se não compreendessem o que ela dizia.

— É mentira! – disse Agoirá dando-lhe as costas.

Igaracê segurou o braço do outro.

— Agoirá endoidou? Desrespeitar assim a moça Leonor?

— Eu não sei por que você pensa assim, Agoirá. Eu só pensei no sofrimento de vosmecês. – Leonor explicou.

— No nosso sofrimento? – índio voltou-se para ela.

— Sim! De pensar que vosmecês iriam ver seus irmãos escravizados.

— Agoirá vê seus irmãos escravizados cada vez que olha para ele mesmo. – o índio batia no próprio peito enquanto avançava na direção dela.

Leonor recuou assustada com a violência das palavras dele.

— Agoirá! – chamou Mãe Maria.

O índio parou a centímetros do rosto de Leonor e virou-se para a velha índia.

Mãe Maria começou a esbravejar com ele em tupi e Agoirá respondia na mesma língua e mesmo tom.

Embora compreendesse muitas palavras em tupi, Leonor ficou confusa com o diálogo rápido. Mas Agoirá disse uma palavra que deixou Mãe Maria pálida como se tivesse levado uma bofetada.

Ele olhou para a moça enquanto falava. A expressão em seu rosto era como se o índio tivesse falado a palavra em claro português.

Leonor sentiu que toda a compaixão que sentira por Agoirá desaparecera por completo. Enraivecida ela avançou contra o índio.

— Seu selvagem miserável! – ela tentou acertá-lo no rosto. – Eu lhe mostro quem é a rameira.

Agoirá segurou o pulso dela e o torceu trazendo o corpo dela contra o seu. Ele a segurou firme sob os olhares estupefatos de Igaracê e Mãe Maria. Leonor debateu-se, contudo sem conseguir se libertar.

Mas ela era filha de Dom Bernardo Duarte da Meira. E uma das primeiras coisas que Dom Bernardo deu para a filha foi um punhal do qual ela nunca se separava. E a ensinou bem como usá-lo.

Leonor retirou o punhal da cintura e passou pelo braço de Agoirá.

— Ai! – o índio a soltou olhando surpreso do talho em seu braço para a lâmina na mão da moça. - Então moça Leonor não precisa de Agoirá para defendê-la.

O índio movia-se de um lado para outro e Leonor só o acompanhava com os olhos.

— Sim, meu pai me ensinou muito bem como lidar com qualquer desgraçado que me ameace. Seja ele um gentil homem ou um selvagem como você. – ela brandiu o punhal para ele.

— Moça Leonor, por favor, acalma! – pediu Igaracê. Mãe Maria acompanhava tudo impassivelmente. Parecia até que a velha índia sabia porque aquele embate acontecia.

— Deixe Igaracê! Agoirá quer ver do que moça Leonor é feita. Mostre para nós que vosmecê é realmente filha de vosso pai. A senhora branca dos escravos. Igaracê diz que vosmecê é bondosa. Pois eu digo que moça Leonor não é bondosa. É filha de Dom Bernardo.

Agoirá havia desrespeitado Leonor duas vezes. Ao tratá-la como vosmecê, o que era imperdoável para um escravo tratar seus senhores tanta familiaridade. E o tom que usara ao se referir a ela como filha de Dom Bernardo. Como se fosse algo insultante.

— Eu vou te matar, seu bugre desgraçado. – ela avançou contra ele com a arma em punho. Mãe Maria gritou e Agoirá segurou a mão da moça no ar.

Os dois se encararam. Os olhos de Leonor brilhavam com raiva e os de Agoirá estavam calmos. Por um momento, Leonor ficou confusa. Se ele não estava bravo com ela por que a provocava daquela forma?

— Moça Leonor quer matar Agoirá? Pois mate. – ele puxou a mão da moça até encostar a lamina em seu peito. – Tem compaixão de Agoirá e acabe com a vida dele.

Leonor sabia que Agoirá não estava fazendo aquilo por desespero, por querer escapar da escravidão. Ele amava a vida, mesmo sendo escravo.

Um filete de sangue escorria do peito do indígena. Ao ver o ferimento Leonor sentiu a visão se turvar.

— Ah! – ela gritou largando o punhal e fugiu correndo.

Mãe Maria correu atrás dela e Igaracê pegou um pano para pôr no ferimento do braço de Agoirá.

— Agoirá louco! Quer ser esfolado vivo? Se o olho de senhor vê Agoirá lutando com D. Leonor, Agoirá morre. - Igaracê pegou outro pano para o ferimento do peito do amigo -  Por que Agoirá não gosta moça Leonor?

Agora que o corpo estava esfriando, Agoirá sentia dor no braço. Ele cambaleou e sentou-se em um banco.

— Agoirá precisava saber se moça Leonor era digna de respeito.

— E ela é? – perguntou Igaracê.

— É sim. – o índio mais velho deu um grande sorriso. – Moça Leonor não é só moça branca. Moça Leonor tem espírito forte. Ela sobrevive ao que virá.

— E o que virá?

— Muita sombra, Igaracê. Muita morte. – Agoirá revelou com voz sombria.

***

Leonor andava de um lado para outro, como um animal numa jaula.

— A minina enlouqueceu?! – Mãe Maria entrou no quarto como um furacão. O fato de ter praticamente ajudado a criá-la dava uma autoridade de mãe à índia.

— Como ele pôde Mãe Maria? Duvidar de mim? Da minha compaixão por ele e por Igaracê?

— Eu avisei a vosmecê. Agoirá é bicho bravo. Selvagem. Ele não tem respeito por ninguém.

— Eu só queria ajudá-los, Mãe Maria. E ele me chama... – a moça começou a soluçar. – Me chama de...

— Não pense nisso, minina... Vosmecê não é nada disso. Vosmecê é anjo de bondade.

— Eu acho que não Mãe Maria. Eu ia matá-lo. – Leonor olhou para as próprias mãos. – Sou mais filha de meu pai do que achava.

— Isso é bom, moça Leonor. – as duas ouviram uma voz dizer.

Leonor e Mãe Maria olharam para a porta e Agoirá estava lá parado. Uma bandagem lhe circundava o braço no local onde Leonor o atingira. A expressão do índio era a mais serena possível.

— O que vosmecê quer aqui, Agoirá? – perguntou Leonor levantando-se.

— Contar para moça Leonor a razão do teste que Agoirá fez.

— Teste? Quer dizer que eu estava sendo testada. – a moça riu, contudo sem achar graça. – Vosmecê, um índio? Testar a mim?

Agoirá não se sentiu ofendido pelo tom da moça. Afinal, ele mesmo havia invocado o ar senhoril de D. Leonor.

Mas Mãe Maria, conhecedora das artes indígenas, viu no rosto do índio que ele tinha algo de importante a dizer.

— Diga Agoirá. – Leonor voltou-se para a velha índia surpresa. – Diga o que vosmecê tem a dizer.

— Agoirá era filho de chefe tupinambá Narimbé. Treinado para ser pajé, mas Agoirá tinha espírito guerreiro. Não ouviu pai. Saiu para guerrear e foi preso. Levado de sua tribo, ele viu irmãos mortos. Mas Agoirá guardou conhecimento de pajé.

Leonor sentiu a garganta apertar ao ouvir o relato do índio. Ela sabia que aprisionar indígenas era necessário para a colônia, mas ninguém parecia pensar no sofrimento dos escravos retirados de suas tribos, de suas famílias.

— Agoirá entra no mundo dos espíritos. E vê sombras para a vila dos brancos.

— Sombras? – ela virou para Mãe Maria. – O que ele quer dizer?

— Morte, minina. O que mais Agoirá?

— Moça Leonor sofre. Mas levanta. Moça Leonor branca, mas não é como moça branca. Ela luta e sobrevive. Espírito do pai forte em moça Leonor. Chama índia em moça Leonor.

— Como assim, chama índia? Não entendo o que vosmecê fala.

— Os tupinambás, assim como os guaianases, têm uma superstição. Que, quando o bebê mama na mãe, há uma troca de espíritos. O espírito da mãe torna o bebê forte. Na última mamada de sua vida, o espírito do bebê retorna – explicou Mãe Maria. – Como eu fui sua ama de leite, é como se o meu espírito estivesse em vosmecê.

— Ah, Mãe Maria... Por favor. Não acredito nessas crendices de vosmecês.

— Mas vosmecê nunca sentiu o vento no rosto e quis ser como a águia? Nunca quis ser livre como a mata que cresce em todas as direções? – perguntou Mãe Maria.

— Sim. Mas eu achei...

— Que buscar liberdade era coisa dos brancos? Não, minina. Só quem já foi livre, não aceita escravidão. Com ou sem corrente.

Agoirá pôs um joelho no chão na frente de Leonor.

— Moça Leonor agora tem respeito de Agoirá.

Leonor se sentiu como uma das donzelas das histórias que sua mãe lhe contava quando criança. Os cavaleiros medievais que davam a vida por suas donzelas, enfrentando mil perigos por elas.

— Obrigada Agoirá. Vosso respeito é muito importante para mim.

O índio levantou-se e saiu da sala, tão silencioso quanto entrara.

— Vosmecê é mesmo filha de seu pai. Agoirá só tinha respeito por vosso pai. Mas era baseado no medo do escravo por seu senhor. Mas por vosmecê... É o respeito de um guerreiro por outro semelhante.

Mãe Maria deixou Leonor entregue aos seus pensamentos e foi cuidar de seus afazeres. A moça foi até a roda de fiar e sentando-se começou a movimentá-la. Puxava o fio com destreza enquanto movia o pedal com o pé.

A roda girava e girava tal quais os seus pensamentos. O que será que Agoirá queria dizer com que ela sofreria, mas que se levantaria? E a morte rondando a vila? Seria um novo ataque?

As perguntas rodavam em sua mente tal qual a roda de fiar.

Ela sentiu que era observada e virou-se para a porta. Parado uma figura grotesca rodava o chapéu nas mãos. Baixo, calvo e barbudo era o capataz responsável pelo engenho de seu pai.

— Dom Gusmão... O que deseja? – ela parou a roda.

— Dona Leonor, com todo respeito, chegou ao meu conhecimento que a senhora teve um aborrecimento com um dos escravos agorinha.

— Aborrecimento? – ela desviou os olhos dele. – Não tive aborrecimento nenhum, Dom Gusmão.

— É que um dos escravos disse que aquele selvagem Agoirá foi desrespeitoso com a senhora.

— Agoirá? Desrespeitoso comigo? Agoirá foi nomeado por meu pai como meu protetor. Ele nunca faltaria com o respeito comigo. Ele sabe que meu pai é extremamente severo com os escravos.

— Verdade? Mas eu soube...

— Dom Gusmão! – Leonor o interrompeu. – Meu pai está fora e assim sendo eu sou a senhora daqui. Estás duvidando da minha palavra? Queres mandar um mensageiro para perguntar ao senhor meu pai se eu estou a falar a verdade?

— Não, D. Leonor.

— Ótimo. Então terminamos por aqui. – Leonor tremia por dentro, mas nunca demonstraria medo a esse homem abjeto. – nunca mais me questione. Senão eu falarei do senhor a meu pai e ao meu noivo Dom Constancio Olinto de Siqueira. E o senhor sabe que meu pai e meu noivo são bem estabelecidos na colônia. Um problema para quem possa a precisar de emprego futuramente.

Dom Gusmão sentiu a ameaça nas palavras da moça. "Quem diria... o anjo esconde os chifres muito bem.", pensou ele engolindo a raiva. Aquela afronta teria volta. Um dia ela teria volta.

— Sim senhora, D. Leonor. Eu sei.

— Ótimo. Dom Gusmão, eu irei nesta tarde para a casa de Dom Constancio. Leve as índias para Rio Santo assim que nós formos embora. Isso é tudo. – ela voltou a movimentar a roda de fiar.

— Sim, senhora. Com vossa licença, D. Leonor. – ele se retirou.

Leonor parou de rodar assim que Dom Gusmão saiu. Estaria algum escravo a espionando? A mando do pai? Ou de Dom Constâncio? Foi até uma mesa, pegou uma pena e escreveu em um pedaço de papel. Depois a moça se levantou e foi até a cozinha.

— Iná?

Uma índia bem jovem, de uns doze anos, foi ao encontro da moça.

— Vá até Igaracê e peça para vir até mim. Preciso mandar uma mensagem à Dom Constancio Olinto.

— Sim senhora. – a indiazinha correu para executar a tarefa. Poucos minutos depois, Igaracê chegava acompanhado da indiazinha.

— Igaracê aqui, D. Leonor.

— Vá até a casa de Dom Constancio Olinto de Siqueira e entregue para ele. Diga a ele que iremos para a casa dele antes da hora da Ave Maria.

— Sim, D. Leonor. – o índio curvou a cabeça e saiu em disparada.

— Mãe Maria, prepare tudo para a nossa partida e das índias para Rio Santo.

— Sim, minina Leonor. Mas por que a pressa?

Leonor olhou para os lados antes de responder.

— Acho que estou sendo espiada, Mãe Maria. E se for a mando de Dom Constancio, quero ver se ele tem o brio de fazer isso comigo na casa dele. E se ele tiver coragem disso, ele vai conhecer a verdadeira Leonor Duarte da Meira.  


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