A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 6
Cinco




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— Leonor! Ah minha Virgem Santa! Menina Leonor! – a mulher arrebatou as saias e correu para abraçar Leonor.

— Dona Isabel! – Leonor deixou-se abraçar e depositou um beijo nas faces de Isabel Cubas de Proença, a filha de Dom Brás Cubas.

— Vês, Paulo. – ela mostrou Leonor ao marido Paulo de Proença Varella. – Essa bela rapariga? Foi-me entregue ainda miúda para cuidar. Com três anos, uma princesa dessas terras.

— A filha de Dom Bernardo e Dona Judite realmente se torna uma beldade, minha Isabel. Com certeza há de ter vários pretendentes aos pés.

— Quase tantos quantos eu tinha, não é? – ela brincou com o marido.

— Verdade? Nem os percebi. Também só tinha olhos para vosmecê.

Isabel sorriu feliz com o elogio. Paulo as deixou e foi em direção aos homens.

— Onde vosmecê estava sua ingrata? Morri-me de falta de ti.

— Não saio da fazenda, Dona Isabel. Meu pai estando sempre fora; eu tenho que cuidar de tudo.

— Tão jovem e com tanta responsabilidade. É só isso que essa terra nos dá. Tão linda, deverias estar entre almofadas e cetins de um salão de baile.

Leonor achou graça das palavras da outra.

— E perder a oportunidade de ser igual à vosmecê? Cuidaste de teu pai e teu irmão nessa mesma terra. És meu exemplo, D. Isabel.

A outra a abraçou para mostrar sua comoção com as palavras da moça.

— Estou feliz por ti. – ela fez um sinal de aprovação. – Vais fazer um bom casamento. Dom Constâncio é um bom homem, tem fortuna, boas relações no Reino.

— Dom Constancio pode ser tudo isso, Dona Isabel. Mas não vou ser feliz com ele.

— Vosmecê fala da diferença de idade? Oras, é sempre bom um homem de experiência. – Isabel sorriu maliciosamente.

— Por quê?

— Nada. Saberás quanto te casares.

— Pelo andar da carruagem, quando eu me casar, só descobrirei o que é tristeza. Olhas para ele... Achas mesmo que ele me fará feliz?

As duas olharam para o homem que agora ria afetadamente de uma piada contada por um dos presentes.

— Vosmecê deveria ter nascido homem, com esse espírito. Teu pai te deixou muito tempo sozinha, sendo cuidada por uma índia. Vosmecê não tem jeito para donzela, Leonor.

— Mãe Maria cuidou muito bem de mim. Mas acho que nem mesmo sou uma donzela.

— Não digas isso, louquinha! – Isabel bateu o dedo indicador suavemente nos lábios de Leonor. – Queres desgraçar-te?

— Não. Só quero casar-me por amor... – Leonor começou a chorar.

— Ah criança. Vens aqui. – Isabel a levou para uma sala longe de todos. – Vosmecê já falou com vosso pai?

— Já. Não diretamente. Mas vosmecê conhece meu pai. Achas mesmo que ele voltaria em um acordo?

— Não. – Isabel balançou a cabeça desanimada. – Uma vez dada sua palavra, Dom Bernardo não voltará atrás.

— Vosmecê conhece bem o meu pai... – Leonor constatou desanimada.

— Porque ele é como o meu. Mas eu posso falar com meu pai e ele conversa com Dom Bernardo.

— Não! Nunca poderia envolver tua família nisso, Dona Isabel. Meu pai nunca me perdoaria. E se alguém souber disso, o terei desonrado. Resignar-me-ei ao meu destino.

— Vais morrer aos poucos sem amor. – Isabel pegou nas mãos de Leonor.

— Quem sabe Deus seja misericordioso comigo e me dê logo um filho. Assim terei alguém a que amar. – Leonor disse com voz sussurrante.

Isabel não tinha mais palavras para consolar aquela alma tão jovem e de quem a vida já cobrava tão alto tributo.

***

Já recomposta, Leonor deixou Isabel com os outros convidados e começou a circular pelos aposentos da casa.

Em um dos cômodos ela ouviu alguns homens conversando. Reconheceu a voz grave do pai, o tom severo de Dom Brás e suave de Dom Constâncio, entre outras. Inclusive uma de sotaque interessante.

— Já fiz vários pedidos de reforços para Lisboa, porém sem sucesso. – explicava Dom Brás. – eles simplesmente ignoram o que acontece nas colônias.

— Isso é um absurdo! – exclamou Dom Constâncio. – Como querem comercializar produtos nossos se não nos dão condições seguras para viajar pelos mares?

— Se eles não nos mandam soldados, deveremos nós mesmos montar uma milícia, Dom Brás. – comentou Dom Bernardo.

— Já conversei com Martim Afonso sobre isso. O máximo que ele pode fazer é continuar construindo fortes ao longo da costa.

— Sem homens para mantê-los? Não podemos ficar nos fortes. E nossos trabalhos? E nossas famílias? – perguntou um homem que ela não conhecia.

— Dom João, vosmecê acha que devemos temer alguma outra ameaça vinda da Inglaterra? – perguntou dom Brás.

John Whitehall, também conhecido como João Leitão, era um dos poucos ingleses que vivia na colônia. Ele pensou muito antes de responder.

— Sinceramente, a ameaça sempre existe. Mas, em minha opinião a Inglaterra está mais preocupada com as ameaças em suas próprias terras do que com as colônias espanholas além mar.

As palavras do inglês satisfizeram alguns, mas Dom Bernardo e Dom Brás ainda mantinham as expressões cautelosas.

— Visando ou não nossas costas, eu vou continuar reforçando meus pedidos à Coroa para reforçamos nossas defesas.

— Eu subirei para São Paulo de Piratininga amanhã cedo. Passarei nas vilas para precaver todos os homens que quiserem reforçar nossas tropas. Não faz muito tempo, ajudamos a capitania do Rio de Janeiro contra os franceses. Está na hora de outros ajudarem também.

— Ideia esplêndida, meu amigo. – Dom Brás bateu nos ombros de Dom Bernardo. Os outros concordaram com a cabeça. Dom Bernardo agradeceu.

Depois colocou o cálice de vinho que segurava sobre a mesa e se despediu dos presentes.

— Bem, a noite é curta para quem precisa levantar cedo. – ele apertou a mão de cada um dos presentes. – Foi um prazer revê-los.

— Que Deus o abençoe em sua jornada, Dom Bernardo. – desejou Dom Constâncio. – E não se preocupe com Dona Leonor e o menino João Guilherme. Eu e minha irmã cuidaremos bem deles.

— Tenho confiança nisso. – Dom Bernardo respondeu apertando a mão de Dom Constâncio mais uma vez.

Ao caminhar para a porta, Dom Bernardo viu sua filha parada.

— Já podemos ir, Leonor?

— Sim meu pai. Estou cansada por ver todos nossos amigos assim de uma vez. É muita agitação.

— Logo se acostumas. Pensas que muito em breve, estará indo para Lisboa. Uma cidade diversas vezes maior que Santos. Pensas na emoção que sentirás.

Leonor se esforçou para mostrar animação.

— Sim meu pai. Será uma grande emoção.

***

Mais tarde, Leonor estava à janela de seu quarto olhando para a lua que brilhava no céu.

Ela viu que seu pai deixava os estábulos e vinha na direção da casa. Mesmo depois do jantar na casa de Dom Brás, ele ainda tinha energia para tratar dos últimos preparativos para a viagem. Ela iria cuidar dos preparativos do descanso dele. Correu para fora do quarto.

Como esperava, seu pai estava sentado diante do fogo.

— Meu pai?

— Oras... Vosmecê ainda acordada?

— Esperava a vinda do senhor para conversarmos.

Ele apontou para a cadeira ao lado da sua.

— Sentas aqui e me contas o que preocupa vosmecê.

Leonor sentou-se e pegou as mãos do pai.

— É verdade que todos temem um novo ataque de piratas?

— Sabes que feio ouvir a conversa dos outros? –ralhou ele com uma sombra de sorriso.

— Ora meu pai. – Leonor se levantou e andou pela sala, - Vosmecês não estavam em um quarto fechado. Todos ouviram o que conversavam e a tua voz não é sussurrante como a de Dom Constancio.

— Por que sempre que ouço vosmecê falar de seu noivo, eu sinto um tom de desgosto?

— Não posso gostar de um homem que tem uma voz de quem tem medo... Ou esconde alguma coisa.

— Leonor... Dom Constancio vem de uma família distinta do Reino. Serás respeitada aqui ou lá.

— Já sou respeitada por minha família. Não preciso do nome de Dom Constancio para isso.

— Não me peças para livrar-te do compromisso. – Dom Bernardo bateu a mão na coxa.

Leonor não se abalou.

— Não o farei, por que sei que o senhor não volta atrás em sua palavra. Caso-me com Dom Constancio para obedecer-te como uma boa filha. Mas também não me peças para gostar dele.

Ela tornou a se sentar.

— Mas me desviaste da pergunta. Devemos temer um ataque de além-mar?

— A possibilidade existe. Mas Deus nos protegerá. Estamos protegidos pelo forte de Santo Amaro. Temos soldados e armamentos. Não te preocupes. Estarás protegida.

— Então, em relação a isso, quero pedir algo ao senhor.

— O que queres? Sei que não é dinheiro, pois te dotei com dinheiro suficiente para não dependeres de ninguém.

— Sim. E sou agradecida por isso, meu pai. Mas queria pedir-te para que deixes Agoirá e Igaracê comigo.

— Agoirá? Leonor... Agoirá é o melhor guerreiro que tenho.

— E o que melhor para proteger tua filha e teu filho caçula do que o melhor guerreiro do senhor? Ainorã também é bom guerreiro e conhece bem a região para onde vosmecês vão.

— Falas com desgosto dos modos de negociante de Dom Constancio, mas vosmecê também sabe lidar com as palavras. – Dom Bernardo riu com gosto. – E quanto a Igaracê? O que usas de argumento para me convencer?

— Ele é jovem e rápido. Se nós precisarmos podemos mandá-lo como mensageiro para o senhor.

Dom Bernardo levantou da cadeira e andou pela sala com as mãos para trás. Leonor sabia que ele estava pensando em seu pedido. O que já era uma vitória.

— Vou pensar em teu pedido. Pela manhã te darei uma resposta. – Leonor assentiu concordando... – Agora vais dormir. Não será bom para ti se teu noivo te ver com a cara amassada de sono. – o pai a provocou.

Leonor riu com o gracejo, mas respondia em sua mente:

"Preferia que ele me visse pelo avesso, se isso o deixasse longe de mim."

***

Ainda havia estrelas no céu quando Leonor preparava as bolsas com os alimentos dos homens da tropa de Dom Bernardo. Como a principal mulher da família era seu dever supervisionar as criadas no preparo das refeições.

As índias circulavam pela cozinha separando os grãos, farinhas e outras coisas que Dom Bernardo sempre levava. Apesar de que eles sempre pegavam caça ou peixes e frutas ao longo do caminho, Leonor sempre preparava algum quitute seu para o pai levar e assim matar um pouco a saudade de casa.

Dessa vez ela separava um doce à base de leite e coco que o pai adorava quando ela fazia. Era essas pequenas coisas que Leonor amava fazer para o pai e de que ela sentiria grande falta quando se casasse.

Com as índias carregando os fardos de farinha e grãos e ela levando os pacotes com alguns mimos para Dom Bernardo e Martim, ela se encontrou com o pai no terreiro em frente da casa.

— Pegue meu pai. Para vosmecê e Martim.

— Vosmecê sempre nos mimando... – Dom Bernardo aceitou o pacote com um sorriso. – o que tem aqui?

— O doce de leite e coco que vosmecê gosta.

— Hum... Mal vejo a hora da primeira parada. – ele guardou o pacote na bolsa presa à sela do cavalo. - Pensei em teu pedido. Deixo Agoirá e Igaracê para ti. Agoirá! Igaracê! – Dom Bernardo chamou os dois índios.

— Sim Dom Bernardo? – o mais velho perguntou.

— Vosmecês ficarão aqui protegendo D. Leonor e meu filho caçula João Guilherme.

— Sim, senhor! – os dois assentiram.

— Mas não se iludam... Se algo acontecer com eles, eu esfolo os dois.

— Oh meu pai! Pare com isso! - Leonor interviu. - Não há de me acontecer nada. Mas estou muito agradecida. Ficarei mais tranquila com eles aqui.

Dom Bernardo virou-se para a filha.

— Se algo acontecer, vosmecê não perca tempo. Procure voltar para Rio Santo assim que possível. Mande Igaracê me avisar. – ele estendeu a mão para ela.

— Sim meu pai. – Leonor pegou a mão do pai e a beijou com respeito filial.

— Mana, - Martim aproximou-se dela e a levantou do solo.

— Martim, seu louco. – ela examinou a roupa do irmão. Se o sorriso matreiro não lhe brincasse nos lábios, Leonor acharia que estava diante de um dos homens do pai. Vestido roupas grosseiras, botas na altura do joelho, o gibão acolchoado idêntico ao do pai e um grande chapéu, Martim em nada se parecia com o irmão jovial.

— Vou ficar contando os dias para rever-te novamente, maninha.

— E eu também. Volte logo, sim. E cuide-se. Obedeça nosso pai e tudo ficará bem.

— É claro. Não vejo a hora de participar de minha primeira peleja.

— Queres me matar antes de dobrar a curva do rio, não é? Agora ficarei aqui preocupada com vosmecê.

— Não te preocupes. Trarei para ti a coisa mais bela que eu encontrar. Adeus Leonor! – ele a abraçou.

— Adeus Martim. Que nosso Senhor Jesus Cristo vos acompanhe.

— Adeus meu pai! Rezarei todos os dias para a volta a salvo de vosmecês. – Leonor e seu pai já haviam se despedido muitas vezes; mas naquele momento, Leonor sentiu como se a despedida fosse definitiva. Seus olhos encheram-se de lágrimas.

— Adeus filha minha. – Dom Bernardo deu o comando com a mão e os homens o seguiram.

Eram por volta de uns dez homens contando os índios. Os companheiros de seu pai a cumprimentavam tocando de leve o chapéu. Alguns a conheciam desde criança. Outros a viam pela primeira vez e guardavam na memória a sua figura delicada acenando com a mão enquanto eles desapareciam na curva do rio.


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