A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 8
Sete




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Leonor desceu do cavalo, ajudada por Agoirá, que agia como se fosse uma sombra da moça. Sempre que Leonor precisava sair de casa, antes mesmo que ela o chamasse, ele já estava a postos atrás dela.

Agoirá não estava fazendo isso por pura servidão. Não. O embate entre os dois havia criado um afeto do índio por Leonor. Era como se ele a considerasse uma irmã. E como tal tinha o dever de protegê-la.

Mãe Maria vinha logo atrás, em um carro de boi com os baús de Leonor e João Guilherme. O menino estava montado em um dos bois, se divertindo a valer.

Uma das escravas de Dom Constancio, vendo o grupo chegar, bateu a sineta alertando a casa.

Dona Eugenia apareceu no alpendre e, levantando as volumosas saias que usava, desceu as escadas recebendo Leonor.

— D. Leonor! – ela abraçou a jovem. – Que alegria recebê-la em nossa casa.

— Obrigada, D. Eugenia. – Leonor agradeceu beijando o rosto da senhora.

— Essas são as coisas de vosmecê e de vosso irmão? Boa tarde, rapazinho!

— Boa tarde, senhora. – João Guilherme respondeu meio acanhado. Ele era bastante tímido com estranhos.

— Venham! Entrem. – Eugenia os convidou. Depois olhou para uma índia e ordenou. – Genoveva, ajude os criados de D. Leonor com os baús.

— Sim senhora. – a índia fez um sinal para outros dois índios mais jovens e eles ajudaram Igaracê e Agoirá. Mãe Maria seguiu com eles.

As duas mulheres e o menino entraram na casa. Com certeza, depois da casa de Dom Brás, a casa dos Olinto de Siqueira era a mais espaçosa. E a mais rica também, como convinha a um rico comerciante.

Leonor admirou os quadros na parede e as velas dispostas em castiçais de ouro e prata.

— Muitas coisas vieram com Constâncio quando ele veio para cá. – explicou D. Eugenia. – Nossa casa foi fechada e eu fui para o convento. Quando eu vim, trouxe o resto dos pertences de nossa família.

— E a casa de vosmecês no Reino?

— Está alugada. Como só restamos eu e Constâncio, ele decidiu alugá-la para um fidalgo conhecido. Mas ainda há o palácio construído por nosso avô na região do Baixo Alentejo.

— Ah sim. – a moça tocou uma tapeçaria na parede. – Isso é muito bonito. A senhora que fez?

Eugenia tocou a tapeçaria com carinho.

— Eu a terminei. Minha mãe e eu a começamos. Ela tecia um pouco, eu outro pouco. Era um trabalho de mãe e filha. – seu rosto sombreou-se de tristeza. – Quando ela morreu, eu continuei. Em casa, no convento e aqui.

— Eu sei tecer também. Temos uma roda de fiar em Rio Santo e aqui na vila. Sei bordar também.

— Sabes bordar?! Ah minha Virgem! Eu adorava bordar com as freiras.

— Minha mãe também aprendeu com as freiras. Mas no convento do Carmo, em Lisboa.

— Eu também estudei num convento carmelita. Quem sabe, eu até conheci vossa mãe.

Leonor ia responder quando D. Constancio apareceu.

— Finalmente! Como esperei por esse dia, D. Leonor.

— Dom Constancio. É um... Prazer revê-lo.

— O prazer é todo meu, D. Leonor.

Uma índia jovem e bem feita de corpo apareceu na sala.

— D. Eugenia, avisar que baús D. Leonor já guardados e jantar pronto.

— Obrigada, Carmo. Já vamos. – respondeu D. Eugenia.

— Dom Constancio, eu preciso saber onde meus criados irão ficar. – pediu Leonor.

Ela precisou chamar a atenção de D. Constancio, pois este não tirava os olhos da índia. D. Eugenia, reparando na distração do irmão, fez um sinal para que a índia saísse.

O homem pareceu despertar.

— Mas vosmecê não precisa de criados. Mande-os de volta. Temos muitos bugres para servir-nos.

Leonor sentiu irritação ao vê-lo se referir aos índios daquela maneira, mas sabia que era o modo usual dos colonizadores se referirem aos nativos.

— Eu sei que vosmecê tem muitos criados, mas Mãe Maria nunca se separa de mim e meu pai designou Agoirá e Igaracê para proteger a mim e meu irmão.

— Proteger vosmecês? Não confio minha segurança a nenhum bugre. Tenho os melhores homens para isso. Vosmecê pode ficar tranquila D. Leonor.

— Eu sei e agradeço D. Constancio. – Leonor deu um sorriso que tanto tinha de cândido quanto de falso. – Mas a prioridade de meu pai era nos deixar o mais protegido possível. Ele ficaria deveras aborrecido se eu mandasse meus protetores de volta para ele, vosmecê não acha?

Dom Constancio sentiu grande irritação, ao ver-se vencido pelas palavras da moça.

— É claro, D. Leonor. Eu não aborreceria meu futuro sogro por algo assim. – ele deu um sorriso melífluo.

À menção do futuro compromisso entre eles, Leonor amassou o lencinho que carregava nas mãos desejando que fosse o pescoço de D. Constancio.

— Assim ficamos acertados então. – D. Eugenia pareceu sentir a tensão no ambiente e procurou suavizar a relação entre seu irmão e sua futura cunhada. – Venha D. Leonor. Venha Constancio. Vamos comer. Venha menino João Guilherme. – ela estendeu a mão para o menino. – Tenho certeza que você vai adorar os docinhos de coco que nossa cozinheira faz.

Após trocar um olhar com a irmã, João Guilherme pegou a mão de D. Eugenia e Leonor não teve alternativa a não ser entrelaçar seu braço ao de D. Constancio que já estava estendido para ela.

***

Deitada em sua rede, Leonor olhava para o teto procurando um sono que não vinha. Dezembro era um mês quente naquela terra, mas o calor não tinha nada a ver com a inquietação da moça. Aquela casa a oprimia.

Desassossegada, ela levantou-se. O irmão dormia na outra rede placidamente. Um sorriso angelical brincava-lhe nos lábios. Leonor seria capaz de jurar que o menino sonhava com os docinhos que comera após o jantar.

Ela provara um ou dois para satisfazer D. Eugenia. Assim como a comida, que ela provara bem pouco. O que havia lhe tirado o apetite eram os olhares lúdicos que D. Constancio lhe lançava entre uma e outra taça de vinho.

Leonor estremeceu, apesar do calor. Só de pensar que em alguns meses ela se deitaria com aquele homem, seu estomago embrulhava-se. Mas ela seria esposa dele, pois assim queria seu pai.

A moça foi até a janela, sentindo uma leve brisa que passava pelas frestas. Ela abriu uma das folhas e suspirou com o aumento da brisa refrescante.

Após alguns minutos refrescando-se, Leonor já ia fechar a janela quando viu dois vultos que se encaminhavam para as arvores atrás da casa. Ela poderia jurar que uma delas era D. Constancio. Mas quem era a mulher que ele levava rudemente pelo braço?

Tomada pela curiosidade e pela imprudência, Leonor saiu silenciosamente do quarto e saiu da casa seguindo o casal. Alguns metros dentro da mata iluminada pela lua cheia, ela viu horrorizada que, realmente era D. Constancio. E a mulher era a jovem índia chamada Carmo.

A índia estava amarrada com as mãos acima da cabeça e despida do pescoço para baixo. Suas pernas estavam levantadas e circundavam a cintura de D. Constancio que movimentava o corpo para frente e para trás, às vezes devagar, às vezes rapidamente.

De onde estava Leonor não conseguia saber o que ele falava, mas pela expressão no rosto de Carmo, a moça pôde perceber que a índia sofria. E assim eles permaneceram por alguns minutos, até que, com um último movimento e emitindo um som que parecia o de um animal ferido, D. Constancio separou-se da índia, arrumando suas roupas. Ele desatou o nó que atava Carmo à arvore e ela desmoronou no chão. D. Constâncio não se dignou a ajudar a jovem, apenas virou as costas e saiu na direção da casa.

Quando Leonor começou a se mover na direção da jovem, sentiu que sua boca era tampada. Tentou emitir algum som, mas a mão que a segurava era de aço. Ela foi virada e deparou-se com o rosto impassível de Agoirá.

— O que D. Leonor pensa fazer?

— Não podemos deixá-la desse jeito. – ela indicou Carmo ainda caída. – Ajude-me a levá-la para dentro.

Ela e Agoirá foram à direção da índia cujo corpo sacudia com o choro. Leonor abaixou-se e tocou no ombro da jovem que reagiu violentamente levantando-se em um salto.

Com o susto Leonor caiu sentada e Agoirá segurou a jovem índia.

— Não! D. Leonor só ajudar.

A índia olhou para Agoirá e para Leonor parecendo assustada.

Leonor levantou-se e estendeu a mão para a jovem.

— Venha Carmo. Não é bom que fiquemos ainda aqui fora. Quero ajudar à vosmecê.

A jovem ainda a olhou como se duvidasse de suas palavras, mas depois de olhar para Agoirá e ele lhe acenar com a cabeça, Carmo segurou a mão de Leonor e as duas voltaram para a casa sendo acompanhadas de perto por Agoirá.

O índio as deixou na choupana das escravas e as outras índias levantaram do chão à chegada das duas. Uma das índias, que Leonor reconheceu como Genoveva aproximou-se delas.

— O que acontecer a Carmo?

Leonor olhou para a moça e respondeu.

— Eu estava caminhando e a vi, caída no chão. Acho que ela está machucada. Caminha com dificuldade.

A velha índia olhou para Leonor como se quisesse saber de mais alguma coisa. E a moça sustentou-lhe o olhar. Ela nunca revelaria a elas o que descobrira a respeito da jovem. Genoveva sentou Carmo em um tronco que servia de banco e colocou a mão entre as pernas da moça. Quando a retirou, seus dedos estavam sujos de sangue.

Leonor deu um pequeno grito assustado enquanto as outras índias gemiam com se estivessem feridas. Algumas se ajoelharam junto a Carmo e choravam com ela.

— O que aconteceu? – perguntou Leonor. – São as primeiras regras dela?

Genoveva a olhou como se quisesse falar algo, mas desistiu. Ela limitou-se a passar os dedos sujos no rosto de Carmo. A moça baixou os olhos como se estivesse envergonhada e deixou-se levar pelas outras.

Ao passar por Leonor, ela olhou e disse:

— Senhora boa. Mas nada mais a fazer aqui.

— Se precisar de algo, por favor, me avise.

As índias rodearam Carmo protetoramente e Leonor sentiu-se excluída do grupo. Triste, ela reconheceu que elas não confiavam em uma branca. Por melhor intenção que ela tivesse.

Subitamente cansada, Leonor saiu da choupana caminhando de volta a casa.

Encostado à parede, estava Agoirá.

— D. Leonor toma decisões sem pensar.

Leonor voltou-se.

— O que vosmecê queria que eu fizesse? Que abandonasse a pobre?

— D. Leonor precisa tomar cuidado. – o índio a avisou. – Aqui não é Rio Santo. D. Leonor pode estar em perigo. Olhos demais ao redor.

— E vosmecê está aqui para proteger-me, não estou certa, Agoirá? – ela constatou voltando a caminhar para a casa.

— Sim. – murmurou o índio – Para proteger D. Leonor até dela mesma.

***

Leonor voltou para o quarto e sentou-se na rede para digerir o que havia visto. É claro que ela sabia o que seu futuro noivo fazia com Carmo. Não se pode viver no meio de índios sem ver essas coisas. Mas o que a deixava mais chocada era ver D. Constancio, um gentil homem, se prestar a essas barbaridades.

Ela não sabia o que acontecia entre um homem e uma mulher após o casamento. Mas, com certeza, não haveria de ser como os bugres.

— Mas o que eu estou dizendo? – ela murmurou. – Será que esse ambiente já me contamina com preconceitos? Vendo os nativos como criaturas inferiores, como animais?

Leonor nunca os via da mesma forma que os outros. Com receio, com superioridade. Não. Para ela os nativos eram tão inocentes quanto às crianças.

Mas, alguns homens como D. Constancio e seu pai, embora ela não quisesse admitir, tiravam essa inocência dos nativos. Irmãos, pais e filhos e casais eram separados pelos caçadores de mão de obra escrava. Depois vendidos a senhores sem nenhum escrúpulo que os submetiam a trabalhos forçados ou a degradações ainda maiores como as que ela presenciara naquela noite.

Leonor sentia seus olhos arderem pelas lágrimas contidas. Ela fazia parte daquele círculo entre senhores e escravos. Era parte de sua cultura, de sua vida. Mas o que ela pudesse fazer para amenizar o sofrimento daquela gente, ela o faria. Seria uma luta solitária e injustiçada. Não seria forçada a casar com tal criatura. Seu pai teria que compreendê-la, ela pensou com sua alma inocente. E o primeiro que saberia de seus planos seria D. Constancio.


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