A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 5
Quatro




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/682389/chapter/5

Leonor estava olhando para o mar diante dela quando ouviu a voz de Martim.

— Leonor! O pai vos chama!

— Já estou a ir.

Ela arrebatou as saias e correu para a casa. Os animais já estavam selados e prontos para a partida. Dom Bernardo já estava paramentado para a viagem até a Vila de Santos.

Leonor admirou a figura máscula do pai. Nenhum homem se comparava a ele naquelas paragens. Dom Bernardo era tão alto e sólido quanto o tronco da mangueira que dominava o terreiro da fazenda. Era uma pena que o homem que ele escolhera para marido da filha não fosse nem a metade do homem que era.

— Sim, meu pai. Já estou aqui.

— Bom. Por que ficas a ver esse mar? Quero chegar à vila de Santos antes do anoitecer, criança. Vais pelo rio com João Guilherme e Mãe Maria. Igaracê e Agoirá conduzirão o barco.

Leonor ficou contente. Igaracê era um jovem guaianase que fora trazido para Rio Santo ainda adolescente. Fora catequizado pela mãe de Leonor e seu nome cristão era Paulo Afonso. Mas Dom Bernardo achava que chamá-los pelo nome indígena era manter viva a herança de seu povo. Tornava o índio mais forte. Opinião da qual discordava vários amigos de Dom Bernardo.

Leonor gostava da companhia de Igaracê, por que era quando tinha oportunidade de treinar o seu tupi.

Entretanto, do outro ela tinha um pouco de receio. Agoirá era um tupinambá, que fora capturado e escravizado por seu pai. Leonor tinha a impressão que Agoirá só aguardava a oportunidade de fugir. E, se para isso, fosse preciso matar toda a família, ele o faria.

— Menina Leonor não precisa ter medo de Agoirá. Igaracê a protege. – disse Igaracê em tupi.

Leonor ficou feliz por que conseguiu compreender tudo que ouvira do índio.

— Eu sei disso, Igaracê. Mas temo que ele lhe faça mal. E ele não seria louco de fazer-me mal. Meu pai o esfolaria vivo.

— Senhor de Igaracê bem faria isso mesmo.

Eles olharam para a tropa que agora se preparava para partir.

— Igaracê! – chamou Agoirá indicando o pequeno barco. Igaracê correu para ajudar o outro a colocar a canoa nas águas calmas do rio.

— Igaracê dobrava-se para moça branca. Igaracê bichinho de moça Leonor.

O outro balançou a cabeça em negativa.

— Agoirá errado. Menina Leonor boa. Pensa diferente do pai.

A menção de Dom Bernardo, Agoirá estreitou os olhos.

— Há! Nenhum branco pensa diferente. Para eles somos todos animais.

— Menina Leonor diferente! – teimava Igaracê. O jovem deixou o outro e foi ajudar Leonor com os baús.

— Não! Menina deixa. Igaracê leva.

— Eu ajudo Igaracê.

Mas o índio pegou o baú sem nenhum esforço e o colocou sobre os ombros. Leonor então pegou a imagem de Santa Catarina e, tomando João Guilherme pela mão, rumou para o barco. Mãe Maria a seguiu de perto.

Apesar de receosa, ela acenou com a cabeça cumprimentando Agoirá. O índio ignorou a gentileza da moça e, quando Igaracê se acomodou na outra ponta da canoa, ele a empurrou na direção do rio. Com agilidade, pulou para dentro do barco e começou a remar em dupla com o outro índio.

Com o balanço da canoa, Leonor começou a ficar sonolenta e deitou-se sobre seus pertences. Logo imagens coloridas povoaram sua mente a levando para o mundo dos sonhos. Nele, a moça cantava uma canção enquanto caminhava pelas areias brancas da praia perto de sua casa.

Parado perto das pedras onde ela costumava ir estava um homem alto de cabelos escuros presos em um rabo de cavalo. Seu florete pendia preso por um cinto. Ele era um desconhecido, mas por alguma razão, seu coração deu um salto quando ele começou a caminhar em sua direção. Ela correu para ele, cheia de felicidade. Mas quando chegou perto, todo ele se modificara, transformando-se na figura baixa e atarracada de Dom Constâncio. Leonor gritou de medo.

— Leonor. Leonor. – João Guilherme a sacudia, chamando-a. Leonor abriu os olhos e viu que a canoa parara.

— O que? – ela ergueu a cabeça da trouxa que lhe servia de travesseiro. – Onde estamos?

— Nosso pai ordenou para parássemos aqui. Já faz três horas que estamos navegando e eles cavalgando. Os cavalos precisam descansar.

— Ah sim. – ela aceitou a ajuda de Igaracê para descer da canoa. O índio também ajudou Mãe Maria a descer. A tropa do pai já estava reunida cuidando dos cavalos e comendo.

Ela sentou-se em um tronco e aceitou de bom grado o cantil de água que Mãe Maria lhe dava. Sua garganta estava seca do sonho mal acabado. Mas a lembrança dele persistia em sua cabeça. Por que sua mente lhe pregava peças cruéis? Por que fazer seu coração bater mais rápido por um desconhecido se estava destinada a um homem como Dom Constâncio?

O desconhecido era o que esperava de um homem daquelas paragens. Alto, forte. Decerto corajoso como seu pai. Embora com menos barba do que ele, a moça pensou distraída.

— A minina dormia com um sorriso... – comentou Mãe Maria sentando-se ao lado dela. – Sonho bom?

— Ah Mãe Maria... Para uma realidade tão dura, o que nos resta é sonhar, não é?

— Vosmecê não pode sonhar com o que não pode ter minina Leonor. Tem que contentar com o que a vida lhe deu.

— Mas não é justo! – ela levantou-se. Mãe Maria balançou a cabeça. Leonor sofreria muito se esperasse justiça da vida.

Ela caminhou pelo acampamento até encontrar uma arvore de carambola. Ela gostava daquela fruta de gostinho azedo e ao mesmo tempo doce. Pegou algumas e começou a comê-las enquanto retomava a caminhada.

Encostado em uma árvore, Agoirá acompanhava o andar da moça. Os olhos sempre alertas do índio varriam todo o acampamento. Aquele trecho da viagem era tranquilo, mas sempre havia a possibilidade de um pequeno grupo de tupinambás ainda livres estar por ali.

O índio franziu a testa quando a moça branca parou em frente a ele. Leonor lhe estendeu uma fruta.

Agoirá a olhou desconfiado, mas não esboçou nenhuma reação.

— Vamos, pegue. – Leonor insistiu, sentando-se ao lado dele.

— Vosso pai não vai gostar de ver a moça ao lado de Agoirá.

— Meu pai nem está por aqui. – ela estendeu a fruta para ele novamente. – Aceite, por favor.

Após alguns minutos, Agoirá pegou a fruta da mão de Leonor e começou a comê-la. A moça continuou a comer a sua em silêncio.

— Por que moça Leonor quer que Agoirá fale com ela?

— Por que Agoirá não gosta de moça Leonor?

Embora não quisesse, Agoirá achou graça do modo dela falar.

— Agoirá acha moça Leonor estranha.

— Por que eu não tenho medo de vosmecê?

— É.

— Não tenho por que sentir medo de vosmecê.

— Mas deveria.

— Por quê?

— Por que moça Leonor é livre e Agoirá não.

Leonor percebeu na voz do índio que seus receios não eram infundados. Agoirá ainda se ressentia da escravidão. A moça esperava mudar os sentimentos do índio em relação a ela.

— Agoirá se engana se pensa que Leonor é livre. Mesmo sem correntes, existem várias formas de prisão. – ela se levantou ao ver Mãe Maria chamá-la.

O índio a observou indo embora. O olhar da moça ao responder intrigou Agoirá, pois ele era tão triste quanto uma noite sem lua.

Leonor sentou-se ao lado de sua ama.

— O que vosmecê foi fazer perto de Agoirá? Não sabes que num piscar de olhos ele te corta a garganta e foge pela mata?

— Ele não pensa em tal desatino, Mãe Maria. – ela deu uma mordida na última carambola. – Agoirá sabe que se me fizer mal, meu pai o pendura numa árvore e o deixa para morrer.

— Vosso pai é bem capaz disso mesmo. E nem buscaste uma fruta para sua velha não é sua ingrata.

Leonor deu uma gargalhada. Levantou-se e correu para o pé de carambola. Mas todas as frutas ao seu alcance já tinham sido colhidas. Ela pulou e pulou para alcançar uma, porém sem sucesso.

Do seu canto, Agoirá sorria com os esforços da moça branca. Como se os esforços de Leonor o tivessem cansado, Agoirá subiu na arvore pelo outro lado e pegou algumas carambolas. Ele pulou da árvore, assustando Leonor.

Lentamente, ele levantou-se e estendeu as mãos cheias da fruta saborosa para ela. Com um sorriso, Leonor pegou duas e correu para perto de Mãe Maria.

— Estás vendo, Mãe Maria? Agoirá não é de todo mau.

— Hum, confias nele por tão pouco... Será que ele se arrisca para salvar-te num ataque de índios, se necessário? Ou aproveita da peleja para fugir? – Mãe Maria perguntou enquanto mordia a fruta.

Leonor comeu a sua em silêncio.

***

A tropa levantou acampamento para retomar a cavalgada. As mulheres voltaram para o barco e a viagem recomeçou.

Mas uma mudança de corrente fez com que o barco começasse a oscilar. Os dois índios usaram toda a força de seus braços para manter a canoa estável.

— Moça Leonor, - gritou Agoirá – divide o peso da canoa.

— Mãe Maria, joga para mim aquela trouxa azul.

Agilmente, Leonor pegou o pacote jogado pela índia. Ela o colocou atrás de si.

— Agora, essas duas aí do teu lado. – a moça indicou. – e mais aquela...

Em pouco tempo a canoa ficou com o peso relativamente equilibrado.

Duas horas depois, eles avistaram a Vila.

Leonor fez uma prece agradecendo a Deus por terem conseguido chegar. Mas estremeceu ao ver a figura atarracada de Dom Constancio junto com uma mulher pequena vestida de preto. Com eles estavam seu pai e Martim.

Agoirá e Igaracê desceram da canoa e a empurraram na direção da areia. O índio mais velho estendeu a mão para Leonor para ajudá-la a descer. Ela agradeceu com um sorriso e colocou os pés nas areias brancas.

Dom Constâncio adiantou-se para recebê-la.

— D. Leonor, finalmente. – ele segurou a mão dela levando-a na direção da pequena figura de preto. – Essa é minha irmã, Eugenia.

A jovem curvou-se em reverencia para a mulher.

— Minha senhora...

Eugenia pegou o rosto de Leonor e a beijou.

— Meu Deus! Que miúda bonita, Constâncio. Tão jovem...

— Agradecida, senhora. – seu olhar caiu na figura sólida de seu pai. – Senhor meu pai.

— Leonor. Já ficava preocupado com tua demora. - ele a abraçou. Martim era seu filho homem, mas Leonor era luz de sua vida.

— Pegamos uma correnteza na entrada da barra, meu pai. Agoirá e Igaracê seguraram bem os remos enquanto eu e Mãe Maria equilibramos o peso. Graças a Deus ficamos todos bem.

— Martim, vai ajudar no desembarque das coisas de tua irmã. – ordenou Dom Bernardo.

— E ajude a Mãe Maria também. – pediu Leonor.

— Leonor comandou o barco papai. – comentou João Guilherme que se juntara a eles. – Ela parecia um capitão de navio. Existem muitos navios aqui? – perguntou o menino.

— Agora não. – explicou Dom Constâncio. – Mas algumas vezes, vosmecê não consegue ver o céu por causa das velas. Um dos meus navios chegou agora vindo da capitânia de Rio de Janeiro. Tenho certeza que vosmecê vai gostar de vê-lo.

— Sim, eu gostaria muito. – João Guilherme voltou-se para o pai. – Será que eu poderia vê-lo, meu pai?

— Tudo a tempo, meu filho. Primeiro vamos levar as coisas de vossa irmã para casa. Dom Brás aguarda uma visita nossa.

— Dom Brás Cubas? – perguntou Leonor. – E Isabel, está com ele?

— Sim. Ela acabou de perguntar de vosmecê. Está ansiosa para rever-te.

— Sim. Estou com muitas saudades de Isabel.

— Vosmecês ficarão em minha casa, estou certo? – perguntou Dom Constâncio.

— Agradeço do convite do amigo, mas vamos para nossa casa aqui. – Dom Bernardo declarou para alivio de Leonor. – Nossa casa já está fechada há um bom tempo. É hora de ela ser arejada. – O pai deu algumas batidas na mão que a filha apoiava em seu braço. –Vamos Leonor. Quero descansar um pouco antes de ir ver Dom Brás. Até mais ver, Dom Constâncio. Dona Eugênia. – Ele cumprimentou o casal e saiu gesticulando em direção ao pequeno barco. - Agoirá, Igaracê. Andem logo com esses baús.

— Sim senhor, Dom Bernardo. – respondeu Igaracê.

— Espero vê-la mais vezes, Leonor. – Eugenia a segurou pelos ombros beijando-a nas faces.

— Eu também, Dona Eugenia.

— É claro que irão ver-se. – comentou Dom Constâncio. Os olhinhos pequenos do homem brilhavam de contentamento. – Amanhã à noitinha, Dona Leonor e sua ama já estarão em nossa casa. – ele tomou a mão de Leonor e a beijou, deixando a moça arrepiada de asco com seu toque. – E eu estarei esperando ansioso por sua visita prolongada, menina Leonor.

— Er... Claro, Dom Constâncio. Até mais ver, então. Com vossa licença.

Os dois irmãos observaram a moça correr até onde estava seu pai e seus irmãos e abraçar ao mais velho.

— Acho que teus dotes não agradam à menina, Constâncio.

— Ela há de querer-me. Basta que cales tua boca. Não quero que Leonor saiba nada da falecida.

— O que queres que ela não saiba? Que a pobre morreu de tristeza por veres abandonada nessa terra de selvagens. Vosmecê não a consolava, Constâncio. Deixando a pobre entregue a devaneios e temores.

— Ora, sua bruxa! – ele agarrou o braço da irmã. – Cala-te ou eu te lasco uma sova aqui mesmo.

— Nada que me fizeres, Constâncio há de machucar. Já me maltrataste tantas vezes que já nem me importo. Minha alma é seca por causa de vosmecê. Mas hei de defender essa menina que não sabes das coisas atrozes que és capaz. – Dona Eugenia levantou as saias e saiu pisando tão duro quanto a areia da praia o permitia.

Dom Constâncio a observou ir embora. "Antes a tivesse jogado do navio quando fui buscá-la em Portugal", pensou ele pegando o caminho para o Entreposto.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.