A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 27
Vinte e Seis




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/682389/chapter/27

Depois de ver Thomas ir embora, Leonor foi para seu quarto trocar de roupa e começar as suas tarefas.

            Havia muito a ser consertado. E ela queria ir até a casa de D. Isabel para ver se podia ajudar no hospital. Num ataque como aquele sempre havia feridos.

            Mas, ao passar em frente ao escritório de D. Constâncio, a porta se abriu e ele apareceu.

            - Minha noiva... Onde vais com tanta pressa?

            - Vou até a casa de D. Brás ver se D. Isabel precisa de ajuda com os feridos.

            - Não. Vosmecê não vai sair. – ele a pegou pelo braço e a levou para dentro do aposento.

            - Vosmecê ficou louco?! Como ousa?

            - Sou seu noivo, querida. Não posso ter minha futura esposa por alguns minutos comigo.

            - Não me agrada ficar nem um segundo perto de vosmecê.

            - Então é uma pena que vosmecê e minha irmã tenham tido tanto trabalho para salvar a vida daquele pirata.

            - O que quer dizer com isso?

            - Decididamente, vosmecê esqueceu nosso acordo. Deverias ficar longe dele.

            - Não tenho culpa se o selvagem o atingiu na frente de sua casa. D. Eugenia pediu-me sua ajuda e eu a ajudei.

            - É. Com certeza a culpa é de minha irmã. Eu me acerto com ela depois.

O jeito como ele disse isso a deixou arrepiada. Mas Leonor nada disse.

— Mas com vosmecê...  Eu posso me acertar agora.

D. Constâncio aproximou-se dela, a encurralando entre a mesa e o seu corpo.

— Não se aproxime de mim.

— Ora minha noiva...  Um beijo não é errado entre nós.

Ele se inclinou sobre ela. Leonor estava praticamente sentada sobre a mesa e o corpo de Constâncio a pressionava, deixando-a nauseada.

— Tenho certeza que vosmecê pensa nisso desde que me viu com a bugra. Não é?

— Vosmecê é um canalha! Não se atreva a me tocar...

— Ah...  Mas eu me atrevo. Me atrevo sim...

Ele baixou a cabeça tentando beija-la. Leonor virava a cabeça de um lado para outro tentando empurra-lo. Ela se sentia como se estivesse afundando em um buraco escuro tal era o seu desespero.

Batidas na porta se fizeram ouvir. Agastado, D. Constâncio se afastou de Leonor, sem antes alerta-la.

— Nem uma palavra, ou minha irmã pagará.

A moça o olhou estarrecida antes de fugir para longe dele.

— Entre!

— Eu queria conversar com vosmecê, D. Constâncio e... -  D. Bernardo entrou na sala, parando surpreso ao ver a filha. -  Leonor! Não sabia que vosmecê estava aqui também, mas isso é bom. Já converso com os dois juntos.

 Leonor caminhou na direção do pai com uma calma que estava longe de sentir. O pai pegou em suas mãos, afagando-as.

— Pois não, meu caro D. Bernardo. - D. Constâncio o convidou a se sentar em uma das cadeiras. Leonor postou-se ao lado do pai sem soltar de sua mão.

— Penso que, agora que retornei, não mais a necessidade de Leonor e nossos criados continuar a abusar de vossa hospitalidade.

— Mas meu caro amigo, - D Constâncio reagiu com surpresa - a permanência de minha noiva não é nenhum abuso. Eu e minha irmã consideramos um prazer indescritível tê-la conosco - ele a olhou com paixão.

Leonor abaixou o olhar diante dele. Era como se ele a estivesse despindo.

— Eu faço questão que o senhor e Leonor fiquem em minha casa.

D. Bernardo olhou para sua filha. Leonor desviou o olhar e o pai entendeu que ela entregava a decisão em suas mãos.

— Além do mais, quero pedir a permissão do senhor para apressar o meu casamento com Leonor.

A moça olhou alarmada para ele. Parecia que ele brincava de gato e rato com ela.

— É claro que, dada as circunstancias, não pensei em uma festa. Apenas um jantar com nossos amigos após a benção do padre.

D. Bernardo coçou o queixo enquanto pensava. Olhou para Leonor.

— E vosmecê Leonor? O que acha?

Era a chance que esperava. Seu pai lhe dava a oportunidade de escapar das garras de D. Constâncio.

— Eu? Eu só queria... - se calou ao ver o olhar que D. Constâncio lhe lançava. Era como se dissesse "Você se lembra de nosso acordo?"

— Sim, meu pai. Eu também desejo que meu casamento seja dessa forma. - ela disse com voz sumida. Pediu licença e saiu rapidamente da sala.

D. Bernardo olhou para a porta que se fechava e encarou o outro.

            - Agora que estamos à sós quero saber direitinho por que minha filha está tão tensa, D. Constâncio. Fizeste alguma coisa a ela?

            - Eu, D. Bernardo? – D. Constâncio fingiu uma surpresa horrorizada. – Nunca. Todos esses dias eu tratei Leonor com toda a consideração. – ele abaixou a voz como se conspirasse. – Mas cá entre nós, sua filha é uma moça um tanto difícil de se lidar. Se eu não a amasse tanto...

            - O que vosmecê quer dizer com isso?

            - Ora, D. Bernardo... As pessoas comentam. Se eu não amasse vossa filha, o senhor a teria por muitos anos. Por que nessa colônia ela não arrumava casamento.

            - Como assim? Duvidas da honra de minha filha?

            - Não D. Bernardo. Eu não. Mas todos os outros... Sabe como são as pessoas. Elas temem aquele que é diferente. Sabe, Leonor não é como as outras donzelas. – D. Constâncio andava pela sala com calma estudada. – Não que eu esteja reclamando, não é isso. Prefiro mil vezes uma esposa corajosa, do que uma que grita ao menor susto e vive rezando pelos cantos. Não. Mas, por exemplo, o senhor sabia que eu tive que pagar dez mil moedas para o chefe dos piratas por Leonor?

            - Não. Por que?

            - Por que a sua filha matou um dos piratas. Uma confusão por causa de santos, religião e intolerância. Pois bem, para dar o exemplo, Cavendish a levou para o navio e não houve súplica de minha parte que o fizesse devolvê-la. Paguei o resgate, mas ele não a devolveu. Disse que uma noite nos porões do navio amansaria a fera.

            - Mas vosmecê tem homens, por que não foste resgatá-la?

            - D. Bernardo, veja bem... A situação era desfavorável para nós. Infelizmente não sou um guerreiro como o senhor. Se eu tentasse alguma coisa, além de colocar a vida de Leonor em perigo, a situação da vila poderia piorar.

            - Sim, tem razão. Continue.

            - Então, na manhã seguinte cedinho, eu fui busca-la. E eu vi aquele pirata que foi ferido pelos índios, e no qual D. Brás despeja elogios a segurando entre os braços enquanto outro estrebuchava no convés ferido mortalmente. Cavendish ordenou que eu a levasse logo antes que ela custasse a vida de outro homem dele.

            - Eu agradeço por ter pagado o resgate de minha Leonor e, é claro, que irei restituí-lo de todo o valor, D. Constâncio. Mas por que está me contando essa história?

D. Constâncio pegou outra cadeira e sentou-se ao lado de D. Bernardo.

            - D. Bernardo, Leonor passou uma noite entre os piratas. Foi responsável por uma briga entre eles. E aquele Thomas Horton sempre ao redor dela. – fez uma pausa significativa enquanto o outro franzia a testa. - Não estou dizendo que houve algo entre eles, mas o povo pode falar. E se eu não me casar com ela...

            - Desgraçado! – D. Bernardo levantou-se num ímpeto. – Se aquele maldito houver maculado minha filha, eu mato aquele desgraçado! E, D. Constâncio eu lhe agradeço por tudo e por favor, mantenha o compromisso com minha filha.

            - É claro, D. Bernardo. A alegria de ter uma moça como sua filha por esposa é maior do que qualquer dúvida que eu possa ter sobre a honra dela.

            Foi a gota d’agua para D. Bernardo. Ele saiu da sala como um furacão.

D. Constâncio recostou-se na cadeira, satisfeito como um gato que comeu um peixe. D. Bernardo estava furioso e não permitiria que Leonor se aproximasse de Thomas Horton. Além de querer apressar ainda mais o casamento da filha. Agora, a jovem seria sua antes do que ela esperava. Só de lembrar-se dela, a excitação tomou conta dele. O aperto que dera nos braços de Leonor ao segurá-la não foi para deixar marcas, embora ele ansiava pelo dia em que a deixaria marcada com sua paixão.

            Se levantou da cadeira. Decididamente ele precisava de uma mulher. Foi até a janela e observou as índias nas tarefas diárias. Entre elas estava Carmo, a indiazinha que violentara.

            Fora satisfatório, mas ele ansiava por mais. Queria rebeldia, queria resistência. E isso ele só teria se pegasse alguma bugra selvagem na floresta. Ou... A sua rebelde e destemida noiva.

            A ideia foi ganhando forma na cabeça do horrível homem. Violentá-la? Sim. Leonor não se entregaria de boa vontade. Mesmo dentro dos laços do casamento, ela lutaria e resistiria a ele. Não havia lhe dito que o transformaria de noivo em viúvo na noite de núpcias.

            Sim! Naquela jovem poderia saciar-se. Ele tinha que tê-la. Apertá-la contra o seu corpo, enrolar aqueles longos cabelos em sua mão e puxá-los até que ela gritasse.

            Parecia hipnotizado vendo as imagens diante de si.  Estava a ponto de explodir de desejo.

            Olhou pela janela novamente. Uma das índias havia se separado das demais e entrado na mata, possivelmente para pegar água no rio.

D. Constâncio apressou-se em ir atrás dela. Não era Leonor, mas a bugra serviria para satisfazê-lo no momento.

***

            Alegremente, Leonor arrumava seus baús para ir embora. Uma D. Eugenia chorosa acompanhava a arrumação dela e de suas criadas.

            - Ah, D. Eugenia... – a jovem largou o que fazia e ajoelhou-se junto a cadeira onde a senhora estava sentada. – Por favor, não fique triste. Ainda estarei aqui por mais alguns dias. Iremos esperar meu irmão Martim voltar de São Paulo de Piratininga. Venho visita-la todos os dias, eu prometo.

            - Ah, minha criança...  Mas não será mais a mesma coisa. Acostumei-me com vosmecê descendo as escadas na carreira. Cantarolando enquanto me ajudava na lida da casa. Agora reinará a solidão e o silêncio.

            - Sentirei falta dos seus ensinamentos também, D. Eugenia. Quem mais seria paciente para me ensinar a bordar com tanto primor?

            - Vosmecê já sabia. Só aperfeiçoou mais.

            - Vou ficar esperando uma visita sua para mostrar meus progressos.

            - Eu irei, minha criança. E agora, esperas só um pouquinho que eu te trarei uma coisa.

            - D. Eugenia...  Já me destes tantos mimos.

            - Ah, mas este sempre foi para vosmecê. – disse a senhora saindo do quarto.

            Leonor voltou para os seus afazeres e já o terminava quando D. Eugenia voltou. Pediu que as índias saíssem.

            - Pegas, minha criança. Tenho certeza que terá mais serventia para ti do que para mim.

            Leonor pegou o embrulho envolto em um rico pano vermelho e o abriu. Surpresa viu que era o punhal que Thomas lhe havia ofertado mais cedo.

            - Mas, D. Eugenia. É o presente que ganhaste do moço inglês.

            - Ora Leonor, achas que sou bobinha, não é? Sabia desde o começo que esse presente não era para mim. Mas a presença de meu irmão proibiu vosmecê de o pegar. Não estou certa?

            Leonor olhou para D. Eugenia piscando repetidamente mostrando o seu espanto com a sagacidade da mulher.

            - É. Eu... Sim. Eu o queria aceitar, mas...

            - Então. Agora o presente está como sua dona correta. Aquele jovem andas enamorado de ti, não é? Podes me dizer, miúda. E vosmecê? Enamora-te dele?

            Leonor ficou como um peixe fora d’agua. Abrindo e fechando a boca sem parar, procurando as respostas para as perguntas da senhora. O que ela poderia dizer à irmã de seu futuro marido?

            - Isso não importa, D. Eugenia. Tenho um compromisso assumido com D. Constâncio e vou honrá-lo. – respondeu Leonor com firmeza.

            - Menina, ouça o que eu te digo. Eu já passei por situação semelhante de amar um e ser obrigada a me casar com outro. Fui fiel ao meu coração e paguei um preço por isso. Mas, por conhecer o amor, o verdadeiro amor, valeu a pena pagar. E eu faria tudo de novo. Eu vou lhe contar como tudo aconteceu. Eu era jovem e bonita e meus pais...

            Ver como os olhos de D. Eugenia brilhavam ao contar a sua primeira vivencia no amor, descrever a alegria de ser amada e alto preço pago por insistir em viver esse amor trouxe lágrimas aos olhos de Leonor. Teria ela a mesma coragem?

            - Por isso, minha criança, - retornou D. Eugenia depois de contar a sua história, - amar é uma experiência única. Se você estiver disposta a vive-la intensamente. Sem medos, sem pensar no que os outros esperam de você. É só você e ele em um mundo só de vocês. No momento em que se permitir isso, tudo fará sentido. Ou não! – a senhora deu para ela uma piscada maliciosa.         

— D. Eugenia, como a senhora soube que ele era o homem por quem valeria a pena lutar?

            - Quando ele me beijou pela primeira vez, sinos tocaram, as Trombetas dos anjos soaram em minha cabeça. Me senti flutuando entre as estrelas. Você já se sentiu assim?

            A curiosidade da velhinha era insaciável, pensou Leonor com vontade de rir.

            - Já sim, D. Eugenia. Me sinto flutuar cada vez que ele me olha.

            - Então o que vosmecê está esperando, menina? Ele é forte, capaz de defende-la. E tenho certeza que ele já lhe provou isso.

            - Já sim.

            - Então temes o que?

            - Temo por ele.

            - Meu irmão, não é?

            - Sim. – Leonor começou a chorar.

D. Eugenia abraçou a moça e ela entregou-se as lágrimas.

            - Ah minha criança... – D. Eugenia acariciou os cabelos de Leonor enquanto a jovem chorava copiosamente. – Constâncio não era assim. Às vezes até acho que é outra pessoa. – as duas apartaram-se e Leonor enxugou o rosto com as costas da mão. - Na juventude, meu irmão era gentil e amoroso. Eu não sei o que aconteceu com ele. A selvageria dessa terra, a própria travessia desse mar bravio, eu não sei. Ele até está com a pele marcada como se fosse um bugre ou um bucaneiro.

            - Como? – Leonor perguntou subitamente alerta. – Marcada? De que jeito?

            - Marcada como se fosse uma pintura. Mas que não sai. Como alguns selvagens costumam fazer.

            - E como é essa pintura, D. Eugenia?

            - Como um pássaro. Um pássaro negro.

            Pensativa, Leonor levantou-se da cadeira.

            - Como um corvo...

            - Isso! Como um corvo.

            “El cuervo negro. ”, pensou Leonor. Era a prova que ela precisava. A prova que a livraria do casamento com D. Constâncio.

            Ela se inclinou em D. Eugenia e lhe beijou a face.

            - D. Eugenia, a senhora salvou-me. Salvou-me! – disse Leonor saindo correndo do quarto.

            A velha senhora olhou para a porta sem entender nada. Mas ela tinha a impressão que algo importante havia saído de sua boca, embora ela não soubesse exatamente o que.

            Leonor desceu as escadas encontrando-se com Mãe Maria.

            - Mãe Maria, vosmecê viu o senhor meu pai?

            - Minina, D. Bernardo saiu dizendo que ia ver D. Brás.

            Leonor andou de um lado para outro torcendo as mãos. O que seu pai teria para falar com D. Brás? Possivelmente sobre a pega dos selvagens no interior. Ou sobre os acontecimentos da colônia?

            Ela queria muito estar com ele, mas pensando melhor seria bom esperá-lo. Os sentimentos que a ligavam a Thomas eram por demais visíveis e D. Bernardo não era nenhum tolo.

            Sentou-se no sofazinho. Que ideias viriam na cabeça de D. Bernardo quando ele voltasse da casa de D. Brás?

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.