A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 26
Vinte e Cinco


Notas iniciais do capítulo

Flores do Verde Pinho é um poema (ou canção de amigo) português feito por D. Dinis (Portugal 9 Out 1261 // 7 Jan 1325) que também foi rei de Portugal. (fonte Wikipédia)



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Durante aquela longa madrugada, Leonor levantou-se sobressaltada. Tinha a certeza de que ouvira alguém lhe chamar. O calor era opressivo e ela resolveu tomar um copo de água.

Ao chegar na cozinha, viu que D. Eugenia não abdicara de sua posição de enfermeira.

Penalizada, a jovem tocou o ombro da idosa senhora.

— D. Eugenia, já estás na hora de vosmecê descansar. Deixas que eu olho pelo doente.

— Ah minha filha... Queria muito poder esticar esse meu corpo cansado. Ficas com ele algum tempo para que eu possa descansar? Pobre de mim que tenho um irmão sem coração... – em seu cansaço, a senhora deixou escapar a reclama.

— O que a senhora diz? Estás até agora aqui por causa de D. Constâncio.

— Ele me encarregou de velar pelo doente. Forte cisma de homem... Não querias nem que vosmecê chegasse perto... Também, um moço tão bonito, não é de admirar que Constâncio sinta ciúme de ti. – a senhora afastou-se rindo do gracejo.

Leonor suspirou indo pegar o seu copo de água. Como D. Eugenia estava perto da verdade. O sentimento que a unia à Thomas estava ali calado, amordaçado pelas ameaças de D. Constâncio, mas uma centelha brilhava constante, só esperando uma brecha para fulgurar indômita novamente.

Ela foi até o catre onde estava Thomas. Ela pousou a delicada mão sobre a testa do rapaz verificando se ele estava com febre. Soltou a respiração aliviada ao ver que não. Inclinou-se acima dele para verificar o ferimento. Não havia vermelhidão ou rigidez em torno do ferimento.

Sentou-se ao lado dele. Doía-lhe vê-lo tão indefeso. Algumas palavras indistintas começaram a escapar pelos lábios dele.

— Alice...

Leonor engoliu em seco. Ele chamava pela esposa morta

— Não, meu querido. Sou eu Leonor. – ela lhe tocou o rosto.

— Leonor... Brava...

— Não. Não estou brava. – ela murmurou. – Só triste.

— Ela é brava... Valente... Mas não quero deixa-la, Alice. Você entende?

Ele parecia conversar com a morta. Leonor fez o sinal da cruz. Thomas franziu a testa como se estivesse se concentrando ou irritado.

— Se eu pudesse... Eu a levaria para Glastonbury ver o lago de Avalon. Você se lembra, Alice? Nós costumávamos nadar nele no verão...

Leonor sentiu-se estranha ao ouvir as palavras dele. Raiva daquele fantasma que tanto havia significado para o seu amor.

Era ridículo sentir ciúme de uma morta, mas Leonor queria que ele soubesse que ela estava ali ao seu lado. Ajoelhou-se ao lado dele, acariciando seu rosto.

— Vê meu querido? Estou aqui contigo. Por favor, fique bom logo. Temo tanto por ti... Preciso te proteger daquele criminoso com quem devo me casar, mas sozinha não conseguirei. Preciso da tua coragem e da tua força, Thomas. É Leonor que vos fala. Volta para mim, meu amor. Volta para mim... – a moça murmurava próxima ao ouvido dele.

Ele virou a cabeça da direção dela como se, finalmente, tivesse escutado sua voz. Os olhos entreabriram-se devagar.

— Leonor... Eu a amo...

Lágrimas de felicidade escorreram pelo rosto da jovem. Ele estava ali com ela. Pôs-se a cantar, baixinho, uma canção que sua mãe sempre cantava.

“-Ai flores, ai flores do verde pino,

se sabedes novas do meu amigo!

Ai Deus, e u é?

Ai, flores, ai flores do verde ramo,

se sabedes novas do meu amado!

Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,

aquel que mentiu do que pos comigo!

Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado

aquel que mentiu do que mi ha jurado!

Ai Deus, e u é?

—Vós me preguntades polo voss'amigo,

e eu ben vos digo que é san'e vivo.

Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss'amado,

e eu ben vos digo que é viv'e sano.

Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san'e vivo

e seerá vosc'ant'o prazo saído.

Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv'e sano

e seerá vosc'ant'o prazo passado.

Ai Deus, e u é?”

Oculto nas sombras, com lágrimas nos olhos, D. Bernardo ouvia a filha cantar. Apesar de ser um homem pouco dado a sentimentalismos, a cantiga lhe trouxe recordações de sua boa esposa, Judite. Leonor possuía a timbre de voz tão puro quanto o da mãe, uma das mais belas vozes de Portugal. E a dor com que ela cantava não lhe deixou duvidar do sentimento que ligava sua filha ao inglês. Não. Nenhum acordo no mundo pagaria a dor que ele estava infligindo a Leonor. Conversaria com D. Constâncio de manhã. Estava disposto a pagar qualquer quantia que ele lhe pedisse para que Leonor fosse feliz ao lado do homem que ela escolhera.

***

O sol que penetrava nas frestas da janela bateu no rosto de Leonor, a despertando. A moça levantou a cabeça da mesa, movendo a cabeça de um lado para outro por causa dos músculos doloridos do pescoço. Ela olhou para Thomas, afastando uma mecha de cabelo do rosto bonito. Sim. D. Eugenia tinha razão: Thomas era um belo espécime de homem.

Começou a preparar o café. Para não perturbar o ferido, ela havia dito para as índias utilizarem a cozinha de fora. Estava coando o café quando ouviu Thomas falar.

— Eu morri e fui para o céu. Você é um anjo?

Leonor sorriu e abaixou perto do catre.

— Sinto lhe decepcionar, mas vosmecê não morreu, aqui não é o céu e, com certeza, eu não sou anjo,

— E sim. - respondeu Thomas. - Um anjo de bela voz. Eu a ouvi cantar. - ele levantou-se do catre. Leonor lhe deu uma caneca com café.

— Como vosmecê está se sentindo?

— Estou ótimo. - Thomas tocou o ombro. - Estou pronto para outras.

— Não digas isso nem de brincadeira, inglês. - Leonor colocou as mãos na cintura em pose de censura. - Te consertar custou-me o fio de um bom punhal.

Ele puxou um punhal da cinta.

— Então fique com esse. - estendeu o punhal para ela.

Leonor olhou a arma. Era de prata com o cabo de madrepérola. Possivelmente havia pertencido a alguém de posses.

— Fruto de algum saque pirata?

Ele não se aborreceu com a pergunta dela.

— Não. Me foi dado por Sir Francis Drake por mérito. Eu salvei a vida dele uma vez.

— É uma arma muito rica. Não posso aceitar.

— É uma forma de agradecer por você ter salvado a minha vida. De muitas maneiras. – Thomas estendeu a arma para ela.

Leonor levou a mão até o punhal e as mãos deles se tocaram. Thomas a segurou, enquanto a jovem olhava nervosa para ele.

— Leonor, eu...

— Não Thomas. Eu não posso. Por favor, não me torture. Não me faça lembrar de tudo que vivemos.

O som de passos fez a jovem puxar a mão. O gesto fez com que o punhal caísse no chão retinindo. O inglês abaixou-se para pegá-lo ao mesmo tempo em que D. Constâncio entrava na cozinha. D. Eugenia o acompanhava com ar contrito, aborrecido.

— Ah, vejo que nosso convidado já se encontra de pé. Espero que esteja bem, senhor Horton. – ele se colocou ao lado de Leonor.

— Meu senhor. – Thomas o cumprimentou com um aceno de cabeça. – Sim, me sinto ótimo. Eu queria oferecer um agradecimento à senhorita pelos seus cuidados. – estendeu o punhal para Leonor.

— Eu desconheço os costumes de sua terra, senhor Horton, mas aqui é totalmente impróprio uma donzela receber presentes de um homem estranho. – D. Constâncio segurou o braço de Leonor ao ver que ela se adiantava para pegar o presente.

Thomas sentiu vontade de dizer nas fuças daquele homem o quanto Leonor e ele eram próximos. Mas apenas limitou-se a responder da forma mais irônica possível.

— Mas ela já o havia aceitado, meu senhor. – informou Thomas.

D. Constâncio olhou para Leonor com fingida surpresa.

— Verdade? – perguntou com voz suave.

A jovem o olhou, percebendo a ameaça naquela simples pergunta.

— Sim. Mas acho que o senhor deve dirigir seus agradecimentos à D. Eugenia. Ela sim é a sua verdadeira salvadora. – respondeu olhando de Thomas para D. Eugenia.

Thomas, percebendo o desconforto da jovem, dirigiu-se a D. Eugenia.

— Minha senhora, então devo lhe apresentar meus agradecimentos. Espero que a senhora possa receber esse presente em agradecimento.

— Oh, meu rapaz... – D. Eugenia pegou a arma, mas decididamente, estava toda desajeitada. – Eu tenho certeza que, hum, é um belo presente.

— Agora, se as senhoras me derem licença, acho que já abusei demais da hospitalidade.

— Mas vosmecê não comeu nada. Tem que se alimentar. – Leonor soltou-se do aperto de D. Constâncio e foi até a mesa pegando pão e um pedaço de carne. E colocou vinho em outra caneca pegando a que estava com ele.

D. Constâncio a observava entre divertido e irritado. Sabia que ela estava fazendo isso para desafiá-lo e isso somente aumentava o desejo nascido durante o ataque dos índios ao ver o quanto ela era guerreira.

D. Eugenia olhou o trio com curiosidade. Reparou que Leonor enrubesceu ao dar o prato e a caneca para o moço ferido. E que ele a fitava intensamente. Era o olhar de um homem apaixonado, ela reconheceu. Será que sua futura cunhada estava atraída pelo jovem inglês? Mas em tão pouco tempo? Ou será que os dois já se conheciam antes daquela noite? Mas se amedrontou com o olhar que o irmão dirigia aos dois. Era um olhar de um louco homicida.

A senhora olhou para o punhal em suas mãos. Aquele presente não era para ela que nada entendia de usar arma. Deveria ser dado para outra pessoa.

E, por saber que isso irritaria o irmão ao máximo, ela decidiu dar o presente a quem de direito.


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