A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa
— Sempre na hora certa não é meu amigo. – D. Brás comentou abraçando D. Bernardo.
— Como sempre vosmecê fez também. – D. Bernardo retribuiu o cumprimento.
D. Brás olhou para D. Constâncio e o cumprimentou. Entretanto seu semblante era sério, quase contrariado.
— D. Constâncio... Vosmecê e os seus estão bem?
— Sofremos poucas baixas. Mas as mulheres ficaram protegidas. Com exceção de D. Leonor, minha noiva.— ele completou olhando para Thomas que estava parado atrás de D. Brás. – Mas eu teria preferido que ela tivesse ficado na adega com minha irmã.
— Com certeza minha filha não ficaria escondida rezando. – D. Bernardo disse com uma ponta de orgulho. Ele olhou para além de D. Brás e viu Thomas. Não o reconheceu.
— E esse quem é? - perguntou a D. Brás.
O português acenou para Thomas se aproximar.
— Esse é um amigo. O responsável por eu estar falando com vosmecê agora. Ele descobriu um plano para Cavendish matar a mim e minha família e o desmantelou.
— Por Jesus! E como te chamas, corajoso rapaz?
— Thomas, meu senhor.
— Tua voz... tens um timbre diferente. De onde és, meu rapaz?
— Sou inglês, meu senhor.
— Ele veio com os corsários do inglês Cavendish. - informou Constâncio.
— Mas se voltou contra eles. - respondeu D. Brás na mesma hora. - Tanto que pelejou ao meu lado hoje. Lhe confiaria a minha vida.
— Vosmecê sempre foi confiante em relação aos outros, D. Brás. E não foi de uma vez que isso lhe trouxe prejuízos. Espero que essa não seja mais uma, porque...
— Índios! - gritou Thomas sacando sua arma,
Enquanto D. Bernardo falava com D. Brás, ele viu as folhas a frente deles se mexerem e a ponta de uma flecha aparecer. Gritou, tomando a frente dos demais. Ouviu um silvo parecido com o vento soprando e sentiu um impacto contra seu ombro. Por reflexo atirou, ao mesmo tempo em que tirava a flecha que se enterrara em seu ombro; e caia pesadamente ao chão.
— Peguem esse bugre maldito! – berrou D. Brás. – Levem D. Thomas para dentro e façam essa sangreira parar.
De fato, ao retirar a flecha, o sangue começou a jorrar pelo braço de Thomas.
— Tragam ele por aqui. – comandou D. Constâncio.
Dois homens da comitiva de D. Bernardo carregaram o rapaz para dentro da casa.
Leonor, que estava na cozinha junto com D. Eugenia e Mãe Maria, ouviu o alarido e correu para ver o que era. Ela segurava alguns pratos para colocar a mesa e quando chegou à sala o choque de ver Thomas entrando pela porta a fez largar os pratos.
— Meu Deus! – ela colocou a mão sobre a boca para refrear um grito e voltou para a cozinha para tentar acalmar as batidas de seu coração.
“Era ele! Era ele!” “Por que ele não fora embora?” - a frase ecoava em sus mente refletindo as batidas de seu coração. A respiração lhe era difícil. Mal ela ouvia os gritos dentro da casa.
— Eugenia! Ajude aqui! – gritou D. Constâncio,
D. Eugenia correu para a sala.
— Valha-me Virgem Maria! O que aconteceu?
— Um ataque repentino de índios!
— Vou precisar de ajuda. Onde está Leonor? Ela conhece como curar.
D. Constâncio segurou o braço da irmã com força.
— Faça vosmecê. Não quero Leonor aqui.
A irmã olhou para ele com surpresa. Até poucos minutos Leonor estava ao lado dele lutando contra os índios. E agora que era necessário a presença dela, o irmão não a queria.
— O que tens Constâncio? - a irmã perguntou.
— Nada. Faça o que vosmecê puder. – ele se aproximou da irmã e completou com voz sombria. – Mas, se vosmecê o deixar morrer, para mim está ótimo.
Eugenia olhou horrorizada para o irmão. Como Constâncio havia mudado nesses anos. Na juventude o irmão era gentil e bondoso. Muitas vezes, ele havia ajudado pessoas feridas ou doentes. E agora a vida ou a morte não importava mais para ele.
— Eu o salvarei, Constâncio. E que Deus tenha piedade de ti. – falando isso, Eugenia voltou para a cozinha para pegar tudo o que viesse precisar para ajudar o rapaz ferido.
Viu Leonor parada perto do fogão, a olhar para nada, a respiração ofegante...
— Venha, Leonor. – ela pegou panos limpos e uma bacia de água. – Há um ferido e vou precisar de ti.
— D. Constâncio está com ele?
— Não. Meu irmão está nervoso demais para poder ajudar. Vou precisar de teus conhecimentos, menina. Venha, rápido.
Cabisbaixa, Leonor a seguiu. Seu coração parecia querer arrebentar seu peito, tanta era a força que batia. Confrangeu-se ao ver a palidez de Thomas e pediu a Deus com todas as forças para que Ele saltasse o rapaz.
— Andas Leonor. Vou ter que cortar a camisa dele, para limpar o ferimento. Use essas ataduras e as coloque na água quente.
Nesse momento o restante dos homens entrava na casa.
— E ele, como esta? - perguntou D.Brás
— Vosmecê terá que ser paciente. Estamos começando a conserta-lo agora.
— Faça o possível para salvá-lo, D. Eugenia. Esse rapaz e deveras valoroso. Leonor, vosmecê queres que eu peça algo a Isabel?
— Não, D Brás. Temos tudo aqui. Se for preciso, mando Agoirá ou Igaracê ir buscar.
— Assim seja. Eu vou para casa e ver como estão. Com esse ataque, fico preocupado. Paulo ficou sem guarnição.
— Assim que ele estiver bom, eu o mando de volta. - prometeu D. Eugenia.
D. Brás não respondeu. Observava Leonor olhar para Thomas. Havia tanto amor e dor naquele olhar que ele deu graças aos céus para D. Constâncio não estar presente.
A moça pareceu perceber que alguém a observava e levantou a cabeça. Enrubesceu, mas não desviou o olhar de D. Brás. Contrariando a sua séria característica, o português deu um breve sorriso para a moça. Acenou com a cabeça, num cumprimento e saiu da casa.
Dom Bernardo entrou encontrando o outro no caminho. Trocaram um rápido bater de mãos nos ombros e cada um seguiu seu caminho.
— Preciso de uma faca. – disse Leonor. D. Eugenia cortava a camisa do ferido para ver a profundidade do ferimento. Quem arrancou a flecha? – Leonor olhou para os homens.
— Foi ele mesmo. – respondeu D. Bernardo. – Arrancou a flecha de uma vez só enquanto atirava no bugre. – a admiração permeava as palavras dele.
- A hemorragia não está cessando, Leonor. – avisou D. Eugenia trocando as ataduras.
- Devemos queimar a ferida. – ela tirou o punhal do cinto. – Carmo, leve até o fogão e deixe na chama. Quando a lamina estiver vermelha traga para mim.
- Sim senhora. – Carmo correu para a cozinha.
Leonor pegou um pote e o abriu. – o ferimento está limpo?
- Sim. – confirmou D. Eugenia.
Carmo voltou da cozinha. Trazia o punhal com a lâmina avermelhada.
A moça pegou a arma das mãos da índia e se aproximou de Thomas. Ele parecia tão indefeso, desmaiado pela perda de sangue. Ela tinha que salvá-lo. Ela precisava salvá-lo por tudo que era mais sagrado.
D. Bernardo observava a filha aproximar do ferido a lâmina incandescente. Lágrimas corriam dos olhos dela, o que deixou o bandeirante incrédulo. Leonor já havia queimado vários ferimentos ao longo dos anos, inclusive nele. E desde a primeira vez, ela nunca havia chorado por isso.
Respirando fundo, ela encostou a lâmina incandescente. Embora desmaiado, Thomas urrou quando a carne queimou.
Rapidamente, ela tirou a lâmina, informando:
- Rápido, coloque o barbatimão no ferimento e cubra com as ataduras limpas.
Eugenia cobriu o ferimento enquanto Leonor ia para a cozinha. D. Bernardo seguiu a filha e ela o abraçou.
- Meu pai! Senti tanta a sua falta...
- E eu a sua, minha pequena. – ele se apartou dela e olhou para o rosto cansado. – E vosmecê, como está? Estou vendo a tristeza em seus olhos que antes não estava. Como eu queria ter estado aqui com vosmecê. Enfrentaste tudo sozinha.
- E terias ficado orgulhoso de mim, meu pai. – Leonor deu um suspiro e continuou. – Apesar de tudo, D. Constâncio foi de grande ajuda.
- Apesar de tudo? O que tem acontecido entre vosmecê e teu noivo, Leonor?
Leonor pensou muito antes de responder ao pai.
- Eu e D. Constâncio não temos nos entendido... Algumas coisas aconteceram.
- Em relação àquele ferido na sala.
Leonor olhou surpreendida para o pai.
- Oras, guria. Achas que sou o que sou se não tivesse olhos de águia? Vi o quanto sofrias ao queimar o ferimento daquele rapaz. Já queimaste muito ferimento meu ou de meus homens e nunca tremeste a mão ou lágrima nenhuma escorreste de teus olhos.
- Hoje eu não estaria aqui se ele não tivesse me salvado. E não só a minha vida. Minha virtude, meu coração. Ele sangrou por mim.
- Estou começando a achar que ele é tipo assim, um anjo da guarda dessa colônia. Pois vosmecê agora me diz que ele te salvou e as mesmas palavras eu já ouvi de D. Brás.
- Thomas é um homem valoroso.
- Assim como D. Constâncio; que pode te proteger e cuidar de ti quando eu não mais estiver aqui.
- Meu pai, vosmecê ainda tens muitos anos pela frente. Mas Thomas pode me proteger. Ele me protegerá por todo sempre. – o amor estava impresso no rosto de Leonor.
- Leonor! O que estás querendo me dizer? Que amas esse rapaz? Digas-me a verdade!– D. Bernardo exigiu.
- Queres a verdade e eu a vou dizer. Sim, meu pai. Eu amo Thomas e por ele daria a minha vida e tudo que eu pudesse dar! – a voz de Leonor ia num crescendo que beirava a histeria. - Por ele eu...
D. Bernardo interrompeu a filha com um murro na mesa.
- Estás louca? Eu te dei em noivado para D. Constâncio Olinto da Siqueira e não para qualquer um. Não interessa o quanto ele é corajoso. É um estrangeiro e pirata ainda por cima.
A voz tonitruante de D. Bernardo ecoava na casa. Mas, pela primeira vez, Leonor não abaixou a cabeça apesar do medo de que seu pai a agredisse.
- Ex pirata. Ele não seguiu viagem com os ingleses.
- Não importa! Hás de honrar o compromisso que fiz com D. Constâncio, um nobre e honrado fidalgo português. Eu não voltarei em minha palavra.
Leonor compreendeu que, pelo menos, naquele momento, o pai não a ouviria.
- Eu sei disso, meu pai e aceito vossa decisão. Mas te digo que nenhuma mulher será tão infeliz quanto eu. Estás tão enganado em relação à D. Constâncio quanto eu estava em relação ao amor que o senhor tinha por mim. Sua licença, meu pai. – Leonor se afastou de cabeça baixa.
Talvez fosse o cansaço da viagem ou do confronto com os índios, mas a verdade é que, em nenhum momento de sua vida, D. Bernardo sentiu-se tão derrotado quanto naquele momento.
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