A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 24
Vinte e Três




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            A noite daquele triste dia caiu. E com ela veio a apreensão dos homens da colônia.

            Mulheres e crianças haviam sido levadas pelo filho de mestre Bartolomeu pela mesma trilha em que ele já havia guiado parte da população durante o ataque dos piratas.

            Mas Isabel fora irredutível. Ficaria ao lado do pai e do marido. E de nada adiantou as ameaças de D. Brás. Se tivesse que morrer, ela morreria ao lado da família. Nunca se separaria deles novamente.

            E Leonor, ao saber do iminente ataque, recuperou-se da apatia pela morte do irmão. Apesar da inicial recusa de D. Constâncio, ela provou ser de grande ajuda.

            O ataque foi maciço e ruidoso. Os índios estavam sedentos de sangue, e alguns colonos haviam sucumbido.

            As lembranças do ataque indígena que vitimara a mãe vinham na mente de Leonor e ela deu graças aos céus por João Guilherme não mais presenciar a carnificina.

            Dividindo-se em atirar e recarregar as armas, Leonor nem tinha mais noção de quanto tempo durara o ataque. Em um momento, um grupo de índios conseguiu invadir a casa dos Siqueira, sem que eles percebessem.

            Logo a tão cuidada sala de D. Eugenia havia se transformado numa praça de guerra. Dois dos empregados de D. Constâncio estavam mortos por flechas. Mas nenhum dos índios que invadiram a casa saíram dela vivos.

Eugenia, por causa da idade, estava escondida na adega. A pobre mulher rezava agoniada, tendo por companhia a índia Genoveva e Mãe Maria, tão velhas quanto ela.

            Enquanto isso, as índias mais novas, entre elas Carmo, cuidavam dos feridos. Mas sem que ninguém percebesse, Carmo pegou uma das facas dos homens e sorrateiramente avançou para D. Constâncio para mata-lo pelas costas.

            Agoirá viu a movimentação da índia e, antes que ela pudesse apunhalar o português, ele a deteve.

            Irritada, índia ainda tentou puxar a mão; mas o aperto de Agoirá era férreo. Vencida a índia deixou a faca cair.

            O barulho chamou a atenção de Leonor que olhou estupefata para os dois índios. A expressão de Carmo era, ao mesmo tempo, culpada e belicosa. A de Agoirá estava impassível como sempre. Ao olhar a faca aos pés da índia, Leonor entendeu o que se passara.

            Mas haveria tempo para admoesta-la. A jovem fez um sinal para o índio leva-la para outro cômodo da casa e voltou-se para recarregar a arma em suas mãos.

            - D. Constâncio, estamos ficando sem munição! – disse um dos empregados.

            - Alguém mais tem pólvora? – perguntou outro empregado.

            - Esperem! Esperem! – pediu D. Constâncio. – Estão escutando?

            - Nada. – respondeu Leonor.

            - Isso mesmo. Os gritos, as corridas. Tudo cessou.

            - Acha que eles foram embora? – perguntou Leonor.

            - Não. Estão se reagrupando. – avisou Agoirá. – O primeiro assalto é sempre o maior. Eles agora estão recolhendo os mortos e feridos. Sabem que usamos grande parte da munição.

            - O que vosmecê quer dizer com isso bugre?

            - Que o segundo assalto é sempre o mais mortal.

            Leonor arrepiou-se ao ouvir as palavras do índio.

***

            Enquanto isso, na casa dos Cubas, o pensamento era o mesmo.

            - Eles estão recolhendo seus mortos e se preparando para o segundo assalto. – avisou D. Brás.

            - Eu nunca vi algo semelhante! – exclamou Thomas. – Nenhuma batalha contra os espanhóis é tão acirrada assim, D. Brás.

            - E vai ficar pior, D. Thomas. – avisou D. Paulo

            - Peguem. – Isabel trazia uma bandeja com copos de água. – Vosmecês precisam molhar um pouco a garganta. A fumaça resseca tudo.

            Thomas pegou o seu copo e foi para um canto. Isabel olhou para D. Brás e foi até ele.

            - Algum problema, D. Thomas?

            - Estou preocupado com Leonor. Será que ela conseguiu fugir com as mulheres e crianças?

            - Com certeza não. Leonor nunca fugiria à defesa de seu lar. E tão filha de D. Bernardo quanto eu sou de meu pai. Mas eu cuido dos feridos e ela deve estar com uma pistola em cada mão. – ela sorriu. – Se vosmecê pensa em ter Leonor, acostume-se em tê-la ao seu lado nas pelejas. Leonor é donzela, mas tem mais coragem do que muito homem por essas bandas. E o pai é ainda pior. – assim dizendo, Isabel o deixou e foi cuidar dos outros homens.

            “Pior do que Leonor?”, Thomas pensou. Ele já podia ver que enfrentar espanhóis ou índios seria brincadeira de criança quando ele se visse frente a frente com o pai de sua amada.

            - Eles estão voltando! – avisou Pedro recarregando sua arma.

            Thomas correu para a sua posição já com a arma em punho.

            - Preparar! Fogo! – comandou D. Brás.

            A primeira leva de índios caiu ferida ou morta.

            - Recarregue! – Thomas deu sua arma para o homem ao seu lado e pegou outra.

            - Fogo! – D. Brás comandou mais uma vez. Ao olhar para o homem ao seu lado para pedir que recarregasse sua arma, ele viu Thomas batalhando. O inglês tinha o olha fixo na horda de selvagens e um sorriso brincava em seus lábios.

            “O desgraçado sabe guerrear.”, pensou o português. “Uma pena que ele não tivesse outras filhas para casar. Um genro desses seria uma ótima aquisição.”

            Na casa dos Olinto da Siqueira, a situação era a pior possível. A munição estava no fim e nada da aurora chegar.

            Alguns homens já se persignavam e murmuravam preces. O silêncio ao redor da casa estava deixando todos na casa apreensivos e nervosos. Todos sabiam que os índios estavam ali à espreita e temiam o desfecho que seria inevitável.

            Os índios invadiriam a casa a qualquer momento.

Leonor pegou o punhal que ganhou do pai e o apertou contra o peito. Se os índios invadissem a casa, será que teria coragem de tirar a própria vida?

            Era um ato extremo de desespero e também um pecado mortal. Sua alma seria mandada ao inferno.

            Não! Ela não daria cabo da própria vida, decidiu-se olhando para os homens ao seu redor. Enfiou a mão dentro do decote e pegou o crucifixo de prata. Mas uma vez o apertou nas mãos até que carne ficasse marcada. Em suas mãos estavam dois objetos dados pelos homens que ela mais amara na vida. Estava sem nenhum dos dois agora. Mas não iria decepcioná-los.

            Se tivesse que cair, cairia lutando.

— Ataque! – gritou D. Constâncio despertando Leonor de seus pensamentos.

— Valha-me Deus! São muitos D. Constâncio! – disse um dos homens.

— Atirem! – comandou Leonor antes que D. Constâncio desse a ordem.

Ele olhou para a jovem e sentiu uma emoção desconhecida para ele. Era algo parecido com afeição mesclado com uma irritação fora dos limites em relação à jovem impetuosa.

Os homens fizeram mira e os índios caíram. Mas muitos atrás deles vieram. Eram os últimos tiros que os combatentes tinham.

Mas, para espanto dos que estavam na casa, os índios começaram a correr de volta para a mata debaixo de gritos e tiros que vinham do lado direito da cidade.

Homens à cavalo e a pé perseguiram os índios, os expulsando para a floresta.

— Olhem, são soldados! A ajuda finalmente chegou! – Leonor pôs-se de pé brandido a arma nas mãos.

— E não só eles, moça Leonor. Veja. – apontou Agoirá com um sorriso a iluminar o rosto.

Leonor olhou para onde ele apontava e seu coração deu um salto.

— Meu pai! – ela correu para fora da casa. Os homens correram também saudando àqueles que os haviam salvado da morte certa.

Bernardo saltou do cavalo e correu para abraçar a filha. Lágrimas de alegria queimaram os olhos curtidos de batalhas vividas e ele deu graças à Deus por ter chegado à tempo de salvar seus filhos.

— Leonor, minha filha ! Vosmecê está bem? – ele perguntou reparando no rosto sujo de pólvora. Pegou nas mãos que estavam enegrecidas e queimadas pela fumaça e calor das armas.

— Sim, meu pai. Estou bem. Eu senti tanta falta sua. E Martim? Onde está ele?

— Seu irmão já deve estar voltando de São Paulo de Piratininga. Eu e Igaracê voltamos de Cananeia e fomos para São Vicente pedir reforços a Martim Afonso. Chegando lá ficamos sabendo em detalhes do que estava acontecendo aqui. Vim preparado para piratas e me encontro com Carijós. E João Guilherme? Onde está o meu menino.

Leonor abraçou o pai, chorando de soluçar.

— Ele está morto, meu pai. A primeira vítima do ataque.

D Bernardo sentiu as pernas fraquejarem diante da notícia. O seu caçula, seu menino já não existia mais?! Ele apartou-se de Leonor olhando o rosto da jovem banhado em lágrimas que faziam sulcos no rosto sujo.

— Que Deus o tenha em sua misericórdia. – murmurou o bandeirante. – Mas vosmecê está aqui. E logo Martim chegará. – virou-se para a casa. – Agora voltes para a casa que eu cuidarei de tudo.

— Vou preparar seu banho, meu pai. E roupas limpas. – ela voltou para a casa para levar as boas novas para D. Eugenia e Mãe Maria que ainda estavam ocultas.

Ele assentiu. Um sorriso triste em seu rosto.

Nesse momento, D. Constâncio aproximou-se com a mão estendida.

— É um prazer revê-lo, D. Bernardo. E em tão boa hora.

— Sim é verdade. Vejo que vosmecê teve muito trabalho por aqui.

Constâncio olhou para os seus empregados que agora recolhiam os corpos dos índios mortos.

— O pior foi ficar praticamente sem munição. E vossa filha? Nem nenhum momento ela recolheu-se com as outras mulheres. Pelejou ao nosso lado. – comentou D. Constâncio.

— Minha filha teve à quem puxar. – respondeu D. Bernardo com orgulho.

— É uma mulher extraordinária. E, tão logo for possível, quero me casar com ela.

— D. Bernardo! – uma voz grave o saudou.Bernardo e D. Constâncio olharam na direção da voz. Era D. Brás que vinha acompanhado de seus homens.

Constâncio por pouco não soltou uma imprecação. Junto com Pedro, filho de D. Brás, estava o maldito pirata que rodeava Leonor. Por que aquele miserável não havia partido com os outros? D. Constâncio sentiu uma raiva corroer suas entranhas só de imaginar a resposta.


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