A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 23
Vinte e dois




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Leonor estava sentada à janela de seu quarto. Por entre as frestas da treliça negra ela olhava para as pessoas que se ajuntavam para acompanhar o cortejo fúnebre.

Eugenia havia arrumado para ela um vestido e véus pretos. O vestido que usara no enterro de sua mãe estava pequeno para ela.

O calor a incomodava debaixo de todo aquele pano. Afinal o vestido que ela usava era mais para o clima de Portugal do que para o calor tropical do Brasil.

As lágrimas escorriam pelo seu rosto ao se lembrar da preparação do corpo de João. Ela não teve forças para arrancar a flechado corpo do irmão, cabendo a Agoirá a difícil tarefa.

Depois com a ajuda de Mãe Maria, ela banhou o corpinho e o vestiu com as melhores roupas, enquanto D. Constâncio providenciava o esquife em madeira.

Então, elas o levaram para a sala, que teve os moveis afastados para a colocação do estribo que suportaria o esquife. Dois castiçais foram colocados um à cada lado do corpo e, em seguida, Leonor subiu para se trocar para receber as pessoas. Mas, depois de colocar o vestido e ao se olhar no espelho, ela sentiu-se subitamente perdida. Desejou estar entre os braços protetores de Thomas. Mas até isso ela não tinha mais.

Ela sentou-se numa cadeira, olhando o seu reflexo. Espelhos eram um artigo fabulosamente caro naqueles tempos, mais uma prova do poder econômico de D. Constâncio.

Uma batida na porta a despertou de seus devaneios.

— Querida, está na hora. – era a voz de D. Eugenia.

Leonor saiu do quarto e se preparou para os olhares, murmúrios e pêsames. D. Constâncio deu a mão para ela e a ajudou nos últimos degraus. Naquele momento, Leonor sentia-se tão vazia de sentimentos que era como se ela visse a cena de fora do seu corpo.

Os dois encaminharam-se para fora da casa. Na frente iam Padre Afonso e seus auxiliares. O badalar dos sinos ecoava nos ouvidos dela. O odor pungente do incenso invadiu suas narinas e a moça sentiu-se subitamente sem forças.

Constâncio, solícito a amparou pela cintura, ajudando-a se erguer. Consciente do que o pai esperaria dela se estivesse ali, Leonor endireitou-se e começou a caminhar atrás do esquife do irmão que era carregado por quatro índios, um deles Agoirá.

O índio vestia roupas do homem branco, assim como Mãe Maria. Mas eles envergavam as pinturas fúnebres de suas tribos. D. Constâncio revoltara-se contra isso, mas D. Eugenia o fizera ver que Leonor haveria de aceitar a homenagem.

Ao passarem defronte à casa dos Cubas, foi a vez de D. Constâncio sentir que as forças lhe faltavam. Ficou pálido com se visse fantasmas.

Parado numa posição marcial como a ocasião pedia, estava D. Brás rodeado de um lado pelo genro e pelo filho. D. Constâncio esperava que estivessem há muitas horas no mundo dos mortos.

Enfrentando o olhar de D. Brás, D. Constâncio pegou o braço de Leonor continuando em frente.

Oculto da multidão, Thomas observava o cortejo passar. Viu Leonor de braço dado com seu odiado inimigo. Por que Thomas odiava aquele homem com todas as suas forças. Um homem capaz de chantagear uma jovem indefesa merecia todas as mortes possíveis. Foi preciso um imenso esforço para que não corresse até D. Constâncio e tirasse suas patas imundas de Leonor.

Isabel correu para o lado da amiga e segurou-lhe a mão. Ninguém estranhou o ato fora das convenções. Todo mundo sabia o quanto as duas eram próximas.

Os Cubas juntaram-se ao cortejo em direção à igreja da Misericórdia.

Como filho de fidalgo de sangue, João Guilherme seria enterrado dentro da área da igreja.

Após os ritos, as pessoas começaram a se dispersar depois de cumprimentar Leonor. Quando todos saírem da igreja, D. Constâncio a levou para fora.

Leonor olhou para o sol. Como ele poderia brilhar tanto se dentro dela tudo era sombras? Será que algum dia, poderia voltar a ser risonha e brilhante como ele?

— Vamos, D. Leonor? – D. Constâncio a olhou em expectativa.

— Sim, é claro. – a jovem se deixou levar sem esboçar reação ao toque de seu noivo. Parecia ter perdido qualquer capacidade de sentir.

***

E a noite daquele triste dia caiu. E com ela veio a apreensão dos homens da colônia.

            Mulheres e crianças haviam sido levadas pelo filho de mestre Bartolomeu pela mesma trilha em que ele já havia guiado parte da população durante o ataque dos piratas.

            Mas Isabel fora irredutível. Ficaria ao lado do pai e do marido. E de nada adiantou as ameaças de D. Brás. Se tivesse que morrer, ela morreria ao lado da família. Nunca se separaria deles novamente.

            E Leonor, ao saber do iminente ataque, recuperou-se da apatia pela morte do irmão. Apesar da inicial recusa de D. Constâncio, ela provou ser de grande ajuda.

            O ataque foi maciço e ruidoso. Os índios estavam sedentos de sangue, e alguns colonos haviam sucumbido.

            As lembranças do ataque indígena que vitimara a mãe vinham na mente de Leonor e ela deu graças aos céus por João Guilherme não mais presenciar a carnificina.

            Dividindo-se em atirar e recarregar as armas, Leonor nem tinha mais noção de quanto tempo durara o ataque. Em um momento, um grupo de índios conseguiu invadir a casa dos Siqueira, sem que eles percebessem.

            Logo a tão cuidada sala de D. Eugenia havia se transformado numa praça de guerra. Dois dos empregados de D. Constâncio estavam mortos por flechas. Mas nenhum dos índios que invadiram a casa saíram dela vivos.

Eugenia, por causa da idade, estava escondida na adega. A pobre mulher rezava agoniada, tendo por companhia a índia Genoveva e Mãe Maria, tão velhas quanto ela.

            Enquanto isso, as índias mais novas, entre elas Carmo, cuidavam dos feridos. Mas sem que ninguém percebesse, Carmo pegou uma das facas dos homens e sorrateiramente avançou para D. Constâncio para mata-lo pelas costas.

            Agoirá viu a movimentação da índia e, antes que ela pudesse apunhalar o português, ele a deteve.

            Irritada, índia ainda tentou puxar a mão; mas o aperto de Agoirá era férreo. Vencida a índia deixou a faca cair.

            O barulho chamou a atenção de Leonor que olhou estupefata para os dois índios. A expressão de Carmo era, ao mesmo tempo, culpada e belicosa. A de Agoirá estava impassível como sempre. Ao olhar a faca aos pés da índia, Leonor entendeu o que se passara.

            Mas haveria tempo para admoesta-la. A jovem fez um sinal para o índio leva-la para outro cômodo da casa e voltou-se para recarregar a arma em suas mãos.

            - D. Constâncio, estamos ficando sem munição! – disse um dos empregados.

            - Alguém mais tem pólvora? – perguntou outro empregado.

            - Esperem! Esperem! – pediu D. Constâncio. – Estão escutando?

            - Nada. – respondeu Leonor.

            - Isso mesmo. Os gritos, as corridas. Tudo cessou.

            - Acha que eles foram embora? – perguntou Leonor.

            - Não. Estão se reagrupando. – avisou Agoirá. – O primeiro assalto é sempre o maior. Eles agora estão recolhendo os mortos e feridos. Sabem que usamos grande parte da munição.

            - O que vosmecê quer dizer com isso bugre?

            - Que o segundo assalto é sempre o mais mortal.

            Leonor arrepiou-se ao ouvir as palavras do índio.

***

            Enquanto isso, na casa dos Cubas, o pensamento era o mesmo.

            - Eles estão recolhendo seus mortos e se preparando para o segundo assalto. – avisou D. Brás.

            - Eu nunca vi algo semelhante! – exclamou Thomas. – Nenhuma batalha contra os espanhóis é tão acirrada assim, D. Brás.

            - E vai ficar pior, D. Thomas. – avisou D. Paulo

            - Peguem. – Isabel trazia uma bandeja com copos de água. – Vosmecês precisam molhar um pouco a garganta. A fumaça resseca tudo.

            Thomas pegou o seu copo e foi para um canto. Isabel olhou para D. Brás e foi até ele.

            - Algum problema, D. Thomas?

            - Estou preocupado com Leonor. Será que ela conseguiu fugir com as mulheres e crianças?

            - Com certeza não. Leonor nunca fugiria à defesa de seu lar. E tão filha de D. Bernardo quanto eu sou de meu pai. Mas eu cuido dos feridos e ela deve estar com uma pistola em cada mão. – ela sorriu. – Se vosmecê pensa em ter Leonor, acostume-se em tê-la ao seu lado nas pelejas. Leonor é donzela, mas tem mais coragem do que muito homem por essas bandas. E o pai é ainda pior. – assim dizendo, Isabel o deixou e foi cuidar dos outros homens.

            “Pior do que Leonor?”, Thomas pensou. Ele já podia ver que enfrentar espanhóis ou índios seria brincadeira de criança quando ele se visse frente a frente com o pai de sua amada.

            - Eles estão voltando! – avisou Pedro recarregando sua arma.

            Thomas correu para a sua posição já com a arma em punho.

            - Preparar! Fogo! – comandou D. Brás.

            A primeira leva de índios caiu ferida ou morta.

            - Recarregue! – Thomas deu sua arma para o homem ao seu lado e pegou outra.

            - Fogo! – D. Brás comandou mais uma vez. Ao olhar para o homem ao seu lado para pedir que recarregasse sua arma, ele viu Thomas batalhando. O inglês tinha o olha fixo na horda de selvagens e um sorriso brincava em seus lábios.

            “O desgraçado sabe guerrear.”, pensou o português. “Uma pena que ele não tivesse outras filhas para casar. Um genro desses seria uma ótima aquisição.”

            Na casa dos Olinto da Siqueira, a situação era a pior possível. A munição estava no fim e nada da aurora chegar.

            Alguns homens já se persignavam e murmuravam preces. O silêncio ao redor da casa estava deixando todos na casa apreensivos e nervosos. Todos sabiam que os índios estavam ali à espreita e temiam o desfecho que seria inevitável.

            Os índios invadiriam a casa a qualquer momento.

Leonor pegou o punhal que ganhou do pai e o apertou contra o peito. Se os índios invadissem a casa, será que teria coragem de tirar a própria vida?

            Era um ato extremo de desespero e também um pecado mortal. Sua alma seria mandada ao inferno.

            Não! Ela não daria cabo da própria vida, decidiu-se olhando para os homens ao seu redor. Enfiou a mão dentro do decote e pegou o crucifixo de prata. Mas uma vez o apertou nas mãos até que carne ficasse marcada. Em suas mãos estavam dois objetos dados pelos homens que ela mais amara na vida. Estava sem nenhum dos dois agora. Mas não iria decepcioná-los.

            Se tivesse que cair, cairia lutando.

— Ataque! – gritou D. Constâncio despertando Leonor de seus pensamentos.

— Valha-me Deus! São muitos D. Constâncio! – disse um dos homens.

— Atirem! – comandou Leonor antes que D. Constâncio desse a ordem.

Ele olhou para a jovem e sentiu uma emoção desconhecida para ele. Era algo parecido com afeição mesclado com uma irritação fora dos limites em relação à jovem impetuosa.

Os homens fizeram mira e os índios caíram. Mas muitos atrás deles vieram. Eram os últimos tiros que os combatentes tinham.

Mas, para espanto dos que estavam na casa, os índios começaram a correr de volta para a mata debaixo de gritos e tiros que vinham do lado direito da cidade.

Homens à cavalo e a pé perseguiram os índios, os expulsando para a floresta.

— Olhem, são soldados! A ajuda finalmente chegou! – Leonor pôs-se de pé brandido a arma nas mãos.

— E não só eles, moça Leonor. Veja. – apontou Agoirá com um sorriso a iluminar o rosto.

Leonor olhou para onde ele apontava e seu coração deu um salto.

— Meu pai! – ela correu para fora da casa. Os homens correram também saudando àqueles que os haviam salvado da morte certa.

Bernardo saltou do cavalo e correu para abraçar a filha. Lágrimas de alegria queimaram os olhos curtidos de batalhas vividas e ele deu graças à Deus por ter chegado à tempo de salvar seus filhos.

— Leonor, minha filha ! Vosmecê está bem? – ele perguntou reparando no rosto sujo de pólvora. Pegou nas mãos que estavam enegrecidas e queimadas pela fumaça e calor das armas.

— Sim, meu pai. Estou bem. Eu senti tanta falta sua. E Martim? Onde está ele?

— Seu irmão já deve estar voltando de São Paulo de Piratininga. Eu e Igaracê voltamos de Cananeia e fomos para São Vicente pedir reforços a Martim Afonso. Chegando lá ficamos sabendo em detalhes do que estava acontecendo aqui. Vim preparado para piratas e me encontro com Carijós. E João Guilherme? Onde está o meu menino.

Leonor abraçou o pai, chorando de soluçar.

— Ele está morto, meu pai. A primeira vítima do ataque.

D Bernardo sentiu as pernas fraquejarem diante da notícia. O seu caçula, seu menino já não existia mais?! Ele apartou-se de Leonor olhando o rosto da jovem banhado em lágrimas que faziam sulcos no rosto sujo.

— Que Deus o tenha em sua misericórdia. – murmurou o bandeirante. – Mas vosmecê está aqui. E logo Martim chegará. – virou-se para a casa. – Agora voltes para a casa que eu cuidarei de tudo.

— Vou preparar seu banho, meu pai. E roupas limpas. – ela voltou para a casa para levar as boas novas para D. Eugenia e Mãe Maria que ainda estavam ocultas.

Ele assentiu. Um sorriso triste em seu rosto.

Nesse momento, D. Constâncio aproximou-se com a mão estendida.

— É um prazer revê-lo, D. Bernardo. E em tão boa hora.

— Sim é verdade. Vejo que vosmecê teve muito trabalho por aqui.

Constâncio olhou para os seus empregados que agora recolhiam os corpos dos índios mortos.

— O pior foi ficar praticamente sem munição. E vossa filha? Nem nenhum momento ela recolheu-se com as outras mulheres. Pelejou ao nosso lado. – comentou D. Constâncio.

— Minha filha teve à quem puxar. – respondeu D. Bernardo com orgulho.

— É uma mulher extraordinária. E, tão logo for possível, quero me casar com ela.

— D. Bernardo! – uma voz grave o saudou. Bernardo e D. Constâncio olharam na direção da voz. Era D. Brás que vinha acompanhado de seus homens.

Constâncio por pouco não soltou uma imprecação. Junto com Pedro, filho de D. Brás, estava o maldito pirata que rodeava Leonor. Por que aquele miserável não havia partido com os outros? D. Constâncio sentiu uma raiva corroer suas entranhas só de imaginar a resposta.

 


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