A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 19
Dezoito




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            Cavendish entrou em sua cabine e ficou andando de um lado para o outro enquanto aguardava a chegada de seu imediato.

            Thomas entrou em seguida e aguardou a enxurrada de perguntas e imprecações que viriam.

            Cavendish olhou para ele e viu os ferimentos infringidos pelo punhal do mouro. O sangue que vertia dos cortes no braço e peito manchava a camisa que ele usava. Com um suspiro exasperado, o capitão foi até a porta.

            - Senhor Bolton! Venha até aqui!

            Bolton era o cirurgião que estava a bordo do Leicester fugindo de dívidas que o mandariam para a prisão. Era um bom homem, mas não resistia ao jogo.

            O nobre inglês pegou uma toalha e jogou para o seu imediato.

            - Ali tem água. Lave esses cortes, antes que manche o meu tapete.

            Thomas tirou a camisa, molhou a toalha e começou a lavar os cortes, comprimindo os lábios ao senti-los arder.

            Bolton entrou carregando uma pequena bolsa que colocou em cima da mesa. Dela tirou dois frascos e um carretel de linha. Do bolso do colete, tirou uma agulha e começou a se preparar.

            - Sente-se, Horton. Bolton irá tratar de você e enquanto isso você me responde que diabo foi aquilo.

            - Eu já lhe disse senhor. Rachid tentou violentar a moça e eu a defendi.

            - É engraçado como você parece ter um sexto sentido em relação a essa moça. – Cavendish pegou dois copos e colocou vinho neles. – Já haviam me falado a respeito e hoje eu pude comprovar. – estendeu um deles à Horton. O rapaz bebeu o dele num gole só. Só esperava que o vinho forte que Cavendish bebia aliviasse a dor quando Bolton começasse a costurá-lo.

Cavendish bateu o punho na mesa, fazendo os frascos de Bolton balançar. O cirurgião não se perturbou, continuando a preparar as agulhas para sutura.

— Droga! Espero que isso não faça El cuervo romper o nosso acordo.

— A moça não sofreu nada, senhor. Eu...

— Eu não estou preocupado se Rachid conseguiu estuprar a moça. Estou mais preocupado com a troca de olhares entre você e a moça. Que ele não tenha achado, como eu, que ali havia mais do que gratidão. – Thomas ficou calado. – Droga, Horton! Se tiver alguma coisa que você queira falar, diga agora.

Thomas reforçou a máscara de fria calma que ostentava. Bolton derramou o líquido de um dos frascos em seu braço antes de começar a suturá-lo. Ardia tanto que ele mal sentiu a picada da agulha.

— Não senhor. Não há nada. A moça apenas agradecia.

Cavendish continuou olhando para o seu imediato como se quisesse se certificar de suas palavras. Pareceu convencido, quando voltou a encher seu copo.

— Pronto senhor. – disse Bolton ao terminar de suturar os cortes de Thomas.

— Obrigado senhor Bolton. – agradeceu Thomas vestindo a camisa.

— Foi um prazer, senhor Horton. É uma honra consertar um homem que se feriu ao defender uma mulher. Parabéns, senhor.

— Obrigado, senhor Bolton. Está dispensado. – disse Cavendish.

Os dois observaram o cirurgião sair da cabine. Cavendish entregou um copo a Thomas.

— Embora os homens não devam saber disso, eu também congratulo você por vencer aquela luta. Foi um belo espetáculo. Digno de reis.

Thomas aceitou o copo sem comentar o entusiasmo de seu capitão. Para ele bastava saber que a inocência de Leonor permanecia intocada.

***

Constancio entrou na casa, levando Leonor pelo braço. D. Eugenia e Mãe Maria correram para abraçá-la.

— Leonor! – gritou D. Eugenia.

Minina! – Mãe Maria abraçou sua menina acariciando os cabelos escuros. – Venha que Mãe Maria cuida de vosmecê, minha minina.

— Deem-lhe um banho e queimem essas roupas. Está impregnada do cheiro daquele navio infecto.

—Meu Deus! Está ferida? – D. Eugenia assustou-se ao ver a frente do vestido.

— Não... Esse sangue não é meu.

— Deve ser daquele pirata. – esclareceu D. Constancio. – O que venceu a luta contra aquele negro. Andem.  Levem ela daqui.

As duas mulheres subiram as escadas e levaram Leonor para o seu quarto.

— Vou pedir para trazerem água para o seu banho. Mãe Maria comece a despi-la.

Mãe Maria começou a despi-la e enrolou Leonor em um lençol. Quando a índia ia levar as roupas para fora, Leonor a impediu.

— Não Mãe Maria. Deixe-me o vestido manchado de sangue.

— O quê? – Mãe Maria olhou surpresa para Leonor. – Esse vestido sujo de sangue? Por quê?

— Porque ele é a maior prova de amor que eu posso ter. – ela pegou o vestido e o acariciou.

— Do que fala a minina? Prova de amor de um pirata? – Mãe Maria perguntou.

Leonor deixou o vestido cair de suas mãos e correu para ela pegando nas mãos da índia.

— Sim, Mãe Maria. Uma prova de amor. Thomas me defendeu por amor. Defendeu minha honra.

— Um pirata a defendeu? Por amor? – a velha índia estava totalmente embasbacada.

— Sim. Nós nos amamos, Mãe Maria. – Leonor sorriu feliz.

— Mas vosmecê vai se casar com D. Constâncio...

— Não! Assim que meu pai voltar, vou falar com ele sobre Thomas. Ele há de admirar a coragem dele. Apesar de ele ser um pirata, ele coloca minha segurança acima de tudo. Até de sua própria vida, como está esse vestido a provar. – a moça pegou o vestido do chão e o sacudiu diante da índia.

            - Minina... D. Bernardo não aceitará esse amor de vosmecê por um pirata.

            Leonor colocou o vestido sobre uma cadeira.

            - Se ele não aceitar, eu fujo! – ela passou o rosário por seu pescoço e o crucifixo repousou entre seus seios.

            - O que é isso?

            - Uma lembrança entre muitas... – ela olhou o rosário e foi até a janela. Olhou os mastros acima dos telhados. Em algum lugar daquele cais estava o seu amor.

            Nesse momento D. Eugenia voltou com dois índios a carregarem uma tina. Quatro índias da casa os seguiam com baldes de água quente e fria. Leonor comprimiu os lábios ao ver as índias com marcas vermelhas nos braços por carregarem os baldes de água quente.

            - Coloquem primeiro a água quente e depois a temperem com água fria.

            Era visível o alivio delas ao se livrarem do penoso fardo. As duas índias restantes foram deitando a água fria conforme Mãe Maria ia medindo a temperatura. Quando a considerou confortável para sua minina fez um sinal para que elas parassem.

            As índias se retiraram do aposento e Leonor pode entrar na tina.

            - Fique aí e descanse. Irei cuidar de meus afazeres. Logo, trarei um chazinho de ervas pra vosmecê dormir um pouco.

            - Não é necessário, D. Eugenia. Eu estou bem.

            - Bobagem. Tenho certeza que vosmecê não fechou os olhos nem por um segundo essa noite. Venha Mãe Maria e me mostre qual foi a erva que vosmecê fez chá outro dia. – e dito isso, a velha senhora saiu do aposento levando Mãe Maria junto.

            Leonor ficou olhando a porta se fechar. Se D. Eugenia soubesse o quanto ela dormiu bem...

            Alguns minutos mais tarde, de olhos fechados, relaxando na tina, Leonor ouviu a porta se abrir.

            - Mãe Maria, eu posso ficar mais alguns minutos? Essa água está deliciosa.

            - Sou obrigado a concordar. – disse uma voz masculina.

            Assustada, Leonor abriu os olhos, afundando-se mais ainda na água. D. Constancio estava muito confortável sentado em uma cadeira perto da janela.

            - O que vosmecê faz aqui? Não tem o direito de me ver assim.

            - Ora minha cara... Vamos nos casar em poucos dias. Assim que seu pai voltar. Não há nada de mais eu ver minha noiva banhar-se.

            - Tem sim! Vosmecê atenta contra a minha honra.

            - Honra? – ele levantou-se e pegou um punhal no cinto. Leonor estremeceu com medo do que ele podia fazer. Havia um brilho estranho no olhar de D. Constancio. Um brilho malvado, perverso.

            - Tenho certeza que aquele pirata viu bem mais do que eu.

            - Não sei do que vosmecê está a falar. – Leonor olhou para a água.

            - Sabe não? – ele encostou o punhal no queixo dela, forçando-a a levantar a cabeça. – O pirata que se bate por vosmecê. Sempre. Ele sempre está ali, disposto até a morrer por vosmecê.

            - Continuo não sabendo do que vosmecê está a falar. Hoje, aquele pirata me ouviu gritar. Eu estava prestes a ser violentada e ele, com toda a coragem e cavalheirismo, me defendeu de um bruto. – o olhar de Leonor era duro para seu noivo.

            - E tenho certeza que ele teve uma boa razão para fazer isso. Eu prestei atenção em vosmecês. Não pense que eu sou burro, menina. – ele passou o punhal pela pele de Leonor, sem feri-la contudo. – Agora preste atenção em mim. Você é minha noiva. – ele frisou bem a palavra minha. – E eu não vou admitir outro homem a toca-la. Se ele continuar lhe rodeando, poderá muito bem acordar na ponta de uma corda.

            Leonor sentiu o coração parar ao imaginar Thomas pendurado numa corda. A vida esvaindo-se lentamente dele. Mas a moça não pronunciou nenhuma palavra.

            - Está avisada, Leonor. Se prezar o que ele fez por ti, mantenha distância dele. Sabes que eu posso providenciar isso. – tão calmamente quanto entrou, D. Constâncio saiu do aposento.

            Leonor deu um soco na água.

            - Não! Não! Não! – ela murmurou contra o seu reflexo tremulante. Assim estava o seu coração. Tremulo de pavor porque aquele monstro tinha a sua vida nas mãos. E tinha o poder de destruí-la se cumprisse a ameaça contra Thomas.

            Por amor a ele, Leonor teria que deixá-lo.

***

            A noite caiu e a lua minguante era também amiga dos amantes. Principalmente daqueles que precisavam de seu manto escuro para esgueirar-se pelas paredes.

            Ao atingir a mata nos fundos da casa, Leonor procurava por aquele por quem seu coração bateria mais rápido, mas também por quem ele sangraria sem parar.

            Ela sentiu um toque em seus cabelos e soube no mesmo instante que era Thomas.

            - Meu amor... – ela suspirou entre os braços fortes dele.

            - Minha amada. – ele a trouxe para perto de si, sorrindo ao senti-la novamente entre seus braços.

            - Vosmecê está bem?

            - Sim. Não se preocupes. E você? Devia estar descansando. Depois de tudo que você passou hoje...

            - Não poderia faltar à tua promessa. Não poderia passar essa noite sem sentir os teus braços ao redor de mim. – ela o abraçou forte.

            A urgência na voz do Leonor o alertou para algo que não estava bem.

            - Leonor, o que tens? Eu não queria que tivesse presenciado o que fiz hoje cedo. Agora, tens todo o direito de temer-me. – Thomas a levou para um tronco caído e os dois sentaram-se.

            - Temer a vosmecê? Nunca. É meu amor, meu protetor, meu anjo da guarda. Mas temo por tua vida.  – ela tocou o rosto dele.

            - Depois de hoje, nenhum dos homens de Cavendish se baterão comigo. – ele sorriu orgulhoso de seu feito. – Rachid era tido como invencível. Mas ele não sabia o preço que um homem apaixonado pode cobrar de alguém que macula o seu amor. – Thomas acariciou o rosto de sua dama.

            Leonor suspirou ao ouvir as palavras dele permeadas de tanto amor. Mas as palavras de D. Constancio ainda martelavam em seus ouvidos.

            - E se fores emboscado? Meu coração está a sangrar por ti Thomas. Eu morrerei se fores ferido.

            - E quem poderia armar uma emboscada contra mim? – ele a viu torcer as mãos nervosamente. - Já sei! Teu noivo.

            - Sim. Ele me surpreendeu durante o banho quando estava sozinha e...

            - O que! – Thomas levantou-se lívido de raiva. – Ele se atreveu a tocá-la?

            - Não! – Leonor não ousou contar que D. Constâncio a havia tocado com o punhal. Thomas seria capaz de invadir a casa para enfrentá-lo. – Apenas ficou a me olhar. E quando eu me apercebi de sua presença, levantou-se e falou comigo.

            - Miserável! E o que ele te disse?

            - Que se eu prezava a tua vida, deveria mudar meu comportamento para que vosmecê não tivesse que me proteger tantas vezes.

            - Se não...

            - Ele teria o poder de te fazer acordar numa manhã na ponta de um laço. – e ela começou a chorar desesperadamente.

            Thomas pegou um lenço e enxugou-lhe as lágrimas.

            - Não meu amor... Não chore. Eu não te deixaria nem jurado de morte. – o inglês a abraçou.

            - Não entendes? Ele ameaçou a tua vida! – a jovem falou com a cabeça apoiada no peito dele. - Se, para te salvar ele pedisse o meu coração ou a minha inocência, sem pestanejar eu lhos daria. – Leonor agarrou-se a ele. – Minha vida, minha honra, tudo eu darei para te salvar. Se ele quer que eu te afaste de mim, vá! Vá embora! – ela o empurrou.

           As lágrimas desciam copiosas pela face que ela teimava em manter erguida. Nunca haveria de arrepender-se de condenar-se a uma vivencia de trevas se daquilo dependesse a vida de seu amor.

         – És um pirata e eu uma dama de família. Nunca terias o consentimento de meu pai para ter a minha mão. Deixamos nos levar pela ilusão do perigo e achamos que um é a vida do outro. Vá embora, pirata infame e voltas para tuas pilhagens. – Leonor ainda tentou dar um tom duro às suas palavras, mas sem sucesso.

            Thomas riu da tentativa dela de ofender-lhe.

            - Minha amada... Nem as pedras acreditaram em você.

         - Vosmecê é tolo por rir de mim. Estou a lhe falar francamente e ainda escarneces? - Os soluços ameaçavam sufocá-la.

            Thomas pegou nas mãos dela.

            - Confias em Deus, não confias?

            A jovem estranhou as palavras dele.

            - Sim, confio.

            - Pois eu também confio. Qual seja o nome que se dá, papista ou anglicano, nós confiamos no mesmo Deus, Leonor. E Ele nunca irá permitir que nossos corações sigam por caminhos diferentes. Pois de alma e coração pertencemos um ao outro. E a maldade de D. Constâncio não há de nos separar. – prometeu Thomas.

            - Mas ele te matará! E o que será de mim? Implorarei para que ele acabe comigo. E caso ele não o faça, me entregarei à condenação eterna, pois não desejarei mais viver. Minha própria mão me conduzirá à morte. – Leonor retrucou.

            - Não! Cala-te louca! Não dizes isso. – Thomas a abraçou forte. Os corações batendo em uníssono acelerados pelo medo de um perder ao outro. Ele começou a beijá-la com aflição, sentindo o gosto salgado das lágrimas dela que se misturavam às suas próprias.

            Quando ele ergueu a cabeça, Leonor viu que ele chorava diante das suas palavras. E o sofrimento de seu amor fez com que ela chorasse mais ainda. Mas era preciso deixa-lo para que Thomas vivesse.

            Ela ergueu-se na ponta dos pés, enlaçando-o pelo pescoço para beijá-lo apaixonadamente. Mas antes que ele a estreitasse entre os braços, Leonor soltou-se dele correndo de volta a casa.

            - Leonor! – Thomas gritou ainda na esperança que ela parasse e voltasse para ele. Mas somente a brisa respondeu ao seu grito desesperado.

            A moça correu pela mata jogando-se contra o tronco de um ipê roxo. Ela abraçou-se ao tronco como se necessitasse de apoio e lentamente foi escorregando para o chão, sufocada pelo choro dolorido. Leonor sentiu-se como se seu coração quebrasse em mil partes e se fizesse pó, nada restando em seu peito.

            Ela pegou o crucifixo de dentro do vestido. Apertou-o tanto entre as mãos que a carne ficou marcada. Apenas as lembranças de que o amor lhe tocara e lhe fora tão cruelmente tirado seriam suas companheiras pelos anos de sofrimento e solidão que teria ao lado de tão odioso marido.


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