A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 16
Quinze




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Na expedição de Cavendish havia um anglicano chamado Lewis Charles. Fervoroso, ele havia chamado a atenção por seus discursos inflamados contra a Rainha Elizabeth a quem chamava de bastarda filha de uma adultera. Tais discursos haviam deixado a Rainha furiosa, pois manchavam a imagem de Ana Bolena, sua mãe.

Bem, resumindo. Para escapar da forca, Lewis teve que embarcar quase como um clandestino na expedição de Cavendish. A Rainha ficou satisfeita, pois expedições daquele tipo quase que equivaliam a uma sentença de morte.

Alguns homens, quando no mar, logo se esqueciam de suas convicções religiosas. Pois sobreviver era preciso e pensar nas sagradas escrituras sobre não matar ou no ensinamento de Jesus sobre amar o seu próximo poderia custar uma bala no peito ou uma estocada de espada na barriga.

Mas Lewis era um dos poucos homens a quem essa mudança não ocorrera. Bradava aos quatros cantos do navio sobre a danação do inferno e os ensinamentos de Cristo. Sempre era visto rezando. Mas, era extremamente cruel quando a frota abordava algum navio católico.

            Pois bem, então ao chegar nas terras do novo mundo e ver as manifestações católicas de seus habitantes, para ele foi viver um pesadelo. E sempre que podia, destruía sem piedade as igrejas das cidades que eles atacavam.

            Em Santos não foi diferente. Na primeira oportunidade, ele fez o que considerava a sua missão. Mas isso teve um preço caro.

***

            Nos domingos, a população da Vila de Santos sempre se reunia para ouvir a missa. Como a igreja estava impossibilitada de receber os fiéis remanescentes, Padre Afonso passou a celebrar a missa ao ar livre mesmo. Como os primeiros cristãos, alguns diziam, felizes por ter ainda o alento de sua religião.

            Essas missas, com suas rezas e cânticos, tinham a benção de Santa Catarina de Alexandria, uma das santas preferidas dos colonos, que Padre Afonso carregava como um verdadeiro tesouro.

            A imagem fora retirada às pressas da igreja pelo Padre, temeroso que os piratas, em sua maioria protestantes, resolvessem destruir a imagem tão querida.

            E essa demonstração da fé católica deixava Lewis Charles, ou o Bispo como era chamado entre os piratas, furioso.

            - Isso não é certo, Sir Thomas! – Esbravejava ele inúmeras vezes à Cavendish. – O lugar é nosso agora, somos representantes da igreja Anglicana da Inglaterra. E esses papistas idólatras esfregando seus ídolos em nossos narizes.

            Cavendish respirou fundo ao responder. Thomas, que cuidava de algumas armas de seu capitão sacudiu a cabeça, escondendo um sorriso.

            - Bispo, eu já disse e repito. Não estou interessado na vida desses papistas. Só estou esperando o Dainty, Roebuck e o Black Pinnace voltarem da pilhagem das outras cidades da costa para irmos embora desse lugar. Se eles querem rezar para os seus santos de barro, que rezem. – Completou o capitão com voz entediada.

            - Mas capitão, eu posso acabar com isso! Exaltar a nossa fé, esmagando esses idólatras como fizemos com a frota do reizinho deles.

            - Não! – Retrucou Cavendish. – Esse lugar está mais para um barril de pólvora. Já os roubamos, já os aterrorizamos. Se tirarmos deles o que eles consideram o bem mais precioso, estaremos acendendo o estopim. E eu não estou com homens suficientes para detê-los. E essa conversa está encerrada, Bispo.

            Lewis bufou, mas não teve alternativa a não ser sair da cabine. Cavendish suspirou e olhou para Thomas.

            - Antes enfrentar uma horda de espanhóis do que um fanático religioso. Homens como o Bispo ainda vão levar nações inteiras a guerras terríveis. – ele comentou. Ao ver que o seu imediato não lhe deu resposta, Sir Thomas voltou aos seus afazeres.

***

            A bordo do Leicester havia homens letrados como Anthony Knivet que escrevia sobre tudo que via. Descrevia para a posteridade as paisagens, os colonos, os perigos e as aventuras daquela expedição com poesia. Mas também havia a escória da sociedade. Homens que haviam sido condenados por diversos crimes como roubo, estupro e assassinato.

            Desse último grupo haviam dois sujeitos. Irmãos. Eram chamados de Butcher e Catcher. Seus verdadeiros nomes eram ignorados. Mas os dois tinham braços fortes e estavam à vontade com a pirataria.

            - Isso aqui está muito monótono... – comentou Butcher acendendo um cachimbo.

            - É verdade. Sorte daqueles que estavam no Roebuck e saíram para saquear por aí. – respondeu Catcher, raspando a madeira da amurada com uma faca.

            - Ei, olhe. – mostrou Butcher cutucando o irmão.

            Ao lado deles, estava o Bispo debruçado sobre a amurada olhando os colonos caminharem em direção ao lugar onde se realizavam seus ritos. Ele falava para um grupo de homens que ora olhava para ele, ora olhava para os colonos. Alguns balançavam a cabeça parecendo concordar.

— Quer um pouco de diversão? - perguntou Butcher. O irmão acenou com a cabeça sorrindo de forma maldosa.

Os dois saíram do seu canto e foram até onde o grupo estava.

— Olha só pra eles… - começou Butcher. - Nem parece que estão prisioneiros. Sir Thomas permite muitas regalias à esses papistas espanhóis.

— Butcher, teoricamente, esses são portugueses. - esclareceu um dos homens de nome Crown.

— Que importa! São católicos. Da mesma raça que queria assassinar nossa Rainha e colocar Mary no trono. Eles deveriam ser varridos na face da Terra.

— Queria que nós tivéssemos um líder com amor à Deus suficiente para fazer isso. - Catcher fingia descaradamente.

— E vocês têm! - bradou Lewis. - Farei a obra de Deus nessa terra, livrando-a dos adoradores de Baal!

— Adoradores de quem? - perguntou Catcher em voz baixa para o irmão.

— Quem se importa! - respondeu o outro, bradando em seguida -  Sim! Morte aos idólatras!

Inflamados pelo discurso de Lewis e por alguns goles de aguardente antes, os piratas começaram a descer pela prancha em direção à terra. A guerra religiosa que assolara a Europa não fazia muito tempo ameaçava chegar as praias do Novo Mundo.

Nesse momento, os colonos rezavam à sombra de algumas árvores. Os piratas, liderados por Lewis, depredavam tudo ao seu redor. Caíram sobre os colonos com socos e pontapés. A praia, até então tranquila, tornou-se um campo de batalha. As mulheres gritavam correndo junto com seus filhos e filhas.

Lewis foi na direção do seu alvo: Padre Afonso e a imagem de Santa Catarina. Um, apesar de religioso, sabia como guerrear. O outro só pensava em defender a sua relíquia sagrada. Minutos após o ataque, Padre Afonso caiu por terra a poucos centímetros de sua querida santa.

Leonor e D. Eugenia estavam um pouco distante do grupo principal. Mas, quando um dos piratas as viu, correu na direção delas. Leonor sabia que o alvo era ela; então correu, deixando D. Eugenia escondida atrás de um grupo de rochas. Iniciou-se um jogo de gato e rato entre ela e o facínora, que para sua infelicidade, era Butcher.

Quando ela tropeçou no vestido, ele aproveitou e a subjugou.

Leonor gritou em pânico, mas o bandido a silenciou com a mão. Com a outra começou a apalpá-la tentando subir-lhe as saias.

Tomada pelo horror, Leonor fechou os olhos e desejou morrer. De repente o corpo do pirata desabou em cima dela. Arquejante, a moça empurrou o corpo do homem para o lado. Uma mão estava estendida para ela.

Leonor a agarrou e jogou-se nos braços de Agoirá que a abraçou forte.

— Moça Leonor está bem? - perguntou o índio, jogando um pedaço de madeira longe

— Agora sim. Como vosmecê soube?

— Vi moça Leonor correndo e esse homem estava em seu encalço. Sabia que moça Leonor corria perigo.

Os gritos na praia chamou a atenção de Leonor e ela correu para ver o que acontecia.

— Não, moça Leonor! Não vá! - pediu Agoirá. Vendo que a moça não mais lhe ouvia, o índio correu atrás dela.

Ao chegar em uma parte da praia, Leonor viu que o capitão Cavendish e um outro grupo chegava na balbúrdia atirando para o alto.

— Já chega! - bradou o corsário. - Quem começou isso?

Padre Afonso, com sua batina rasgada, tinha ferimentos no rosto e nas mãos.

— Aquele lá, no bote levando nossa santa.

Cavendish cobriu os olhos com a mão para protegê-los da luz e viu Lewis se distanciando num pequeno barco.

— Bispo! Ordenei-lhe que não fizesse nada! Volte já aqui!

Ele levantou-se do barco e levantou os braços. Oscilava perigosamente na correnteza. Da praia todos viram a imagem de Santa Catarina sendo sacudida enquanto ele berrava.

            - Como Moisés destruiu o bezerro de ouro, eu mando essa imagem para o inferno. - E jogou a imagem no mar.

            Os católicos gritaram de dor e pesar. Nesse momento, tomada pela raiva, Leonor pegou uma pedra e atirou contra ele.

            - Vá para o inferno vosmecê, seu desgraçado!

            Ninguém esperava que, àquela distância, a pedra acertasse o pirata. E ela realmente não o acertou. Mas, ao se assustar com o projétil improvisado; Lewis perdeu o equilíbrio, caindo do bote.

            Os colonos comemoraram, achando que havia sido bem feito o protestante tomar um banho de água gelada. Mas, quando ele não apareceu novamente, o silêncio tomou conta de todos.

            - Ele não sabia nadar! - constatou Cavendish.

            Os olhares voltaram-se para Leonor, que ainda olhava para mar sem acreditar no que fizera.

Cavendish logo deu a ordem.

— Prendem-na!

Rapidamente, Thomas segurou Leonor puxando-lhe as mãos para trás. Agoirá pulou em defesa da moça, mas foi abatido com uma coronhada de outro pirata.

— Agoirá! - a moça gritou lutando-se para se soltar e ajudar o índio.

— Levem-na.  Vou decidir o que fazer. - ordenou Cavendish.

Os colonos estavam ainda se recuperando da pancadaria. Alguns tentavam se mover, gemendo a cada movimento... Mas Padre Afonso interceptou Cavendish.

— O senhor não pode levá-la senhor, ela é uma donzela de boa família.

— Padre, ela pode até ser da família real espanhola. Ela matou um dos meus homens. A sorte dela está em minhas mãos. - ele fez um sinal com as mãos para os homens o seguirem.

Ninguém deu pela falta.de Butcher. E quando a maré subiu, ele foi fazer companhia a Lewis e a Santa Catarina de Alexandria no fundo do mar.

            Ao chegarem à cabine do navio, Thomas colocou Leonor sentada em uma cadeira. A moça fez menção de levantar-se, mas ele colocou-a sentada novamente, lançando-lhe um olhar de advertência. A moça sustentou-lhe o olhar.

            Cavendish andou ao redor de Leonor.

— Você é bastante imprevisível, não é? Manda buscar ajuda fora da vila, agora mata um dos meus homens.

            - Eu não o matei. Foi Deus. Ele desrespeitou nossa manifestação a Deus e aos santos.

            - Ah! Estou cansado dessa história! Deus, santos, homens. Católicos e não católicos. Nada disso me diz respeito. O que eu sei é que você tem sido uma pedra no meu sapato. E é preciso muita idiotice ou muita coragem para fazer isso.

            Leonor continuou calada apenas observando o pirata enquanto ele falava. Cavendish tinha que admitir que a moça fosse tão corajosa, além de linda. Com vestidos refinados e joias seria uma beldade na corte. Seu tom de voz não era agudo ou afetado como os das mulheres que conhecia. Tinha um tom rouco que agradava aos ouvidos, embora as palavras o irritassem.

Mas ele não estava ali para encantar-se pela moça. Ele tinha que dobrá-la. Quebrar-lhe o espírito.

— Você me enfrenta… - ele segurou-lhe o rosto rudemente. Thomas sentiu como se lhe dessem um soco no estomago. Era a mulher que amava que estava ali à mercê do seu capitão. E ele podia fazer nada.

 - Sabe o que eu vou fazer com você, bela dama? Vou lhe entregar aos meus homens. - ele sentiu uma perversa satisfação ao vê-la arregalar os olhos. - Ah, a senhorita tem medo deles… No meio deles, em segundos toda essa bravura escoa como areia da praia.

Thomas não podia permitir isso, de maneira nenhuma.

— Senhor, eu acho que a moça agiu intempestivamente. Sem pensar nas consequências. Agora, ela já está bem mais que ciente da idiotice que fez.

— Será, Horton? - Cavendish soltou o rosto de Leonor. A miserável não soltara um gemido. - Eu acho que uma temporada nos porões entre os ratos a deixará menos intempestiva. - ele a segurou pelo braço e a jogou para Thomas que a amparou.

— Leve-a. Mas não deixe nenhum dos homens a tocar. Tenho uma suspeita de que ela vale muito.

Thomas levou Leonor para outra sala, enquanto Cavendish escrevia em um papel. Esperou a tinta secar, lacrou-a e saiu pela porta. No convés, encontrou um grumete. Era um rapazinho novo de olhos vivos e astuto como um gato.

— Rob, venha cá! - ele chamou. Quando o rapazinho se aproximou, o capitão entregou o papel a ele.

— Vá para a vila e procure essa pessoa. Espere a resposta e volte em seguida. Sem demora, seu rato! Senão serão vinte chibatadas nesse seu corpo mirrado, entendeu.

 - Sim senhor, capitão! - o garoto saiu para atender o seu mestre.

 Cavendish olhou para o mar à sua frente.

— Ah, Bispo… Tenho que lhe agradecer por sua ajuda. Talvez com uma missa, quem sabe?


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