A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 14
Treze




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Os dias, então, começaram a seguir com lentidão irritante. Para aflição de Leonor, nenhum indicio de alguma ajuda estava vindo de fora. E nem Igaracê voltava com notícias favoráveis ou não.

            Ela se sentia dividida. Parte dela queria muito que seu pai chegasse logo com reforços e escorraçasse os piratas da cidade.

            Mas outra parte ficava preocupada se ele viesse. Com a quantidade de navios ancorados na barra, Leonor calculava que havia muito mais de trezentos homens a dominar o litoral. Nunca que seu pai conseguiria reunir em tão pouco tempo um número excedente de homens para combatê-los.

            Agora uma rotina abatera-se sobre os colonos. Durante o dia, tudo parecia quase normal. A única diferença era que a igreja continuava fechada e que a oferta por víveres diminuíra. As famílias mais abastadas como os Cubas, os Adorno e os Olinto de Siqueira tinham suas próprias criações. Mas as famílias mais pobres tinham que contentar-se com a caça que conseguiam.

            Mas, quando os piratas se aperceberam disso, os animais começaram a desaparecer dos criadouros. Então a fauna ao redor da vila começou a diminuir consideravelmente.

            Na casa dos Olinto de Siqueira pouca coisa mudou. Com a melhora de D. Eugenia depois do ataque na noite de Natal, Leonor começou a ter mais tempo livre entre os afazeres da casa e a ajuda no hospital.

            Nesses momentos era que ela percebia, à distância, alguém que a vigiava como um carcereiro ou um improvável anjo da guarda.

            - Vamos Leonor, vosmecê tem que pegar a bola! – gritava João Guilherme.

            - Se jogar ela mais longe, vou mandar vosmecê mesmo pegar, ouviste seu ingrato. – reclamando mais do que uma velha ranzinza, Leonor foi buscar a bola que o menino havia jogado para ela, mas com força, impossibilitando a moça de pegá-la.

            Enquanto ela procurava a bola, viu que alguém a observava.

            - D. Thomas? É vosmecê? – ela perguntou baixinho, com o coração aos pulos.

            Thomas saiu de trás de algumas árvores.

            - Então você me achou...

            - Há alguns dias que eu sinto que vosmecê está por perto. Por que não está com seus companheiros, sendo um bom pirata, saqueando e queimando?

            Ele sorriu com o desdém dela.

            - Talvez eu não seja um bom pirata. Não embarquei nessa viagem para saquear e queimar.

            Leonor colocou uma das mãos na cintura.

            - Ora. Talvez uma alma se salve... – ironizou.

            - Vai rezar para que isso aconteça? – ele perguntou com expressão maliciosa.

            A moça ruborizou-se. Pois esse era o seu pensamento desde que ele a salvara daqueles malfeitores. Ela o colocava em suas orações todas as noites para que quando seu pai chegasse com reforços, ele já estivesse bem longe dali. E essa oração sempre lhe pesava no coração, sem que a moça não soubesse a causa.

            - Rezo para que vocês saiam logo daqui e nos deixem em paz.

            - Acho que essa é a intenção do meu comandante. Já não há mais o que levar.

            - Leonor! Leonor! Não achaste a bola ainda? – eles ouviram o menino chamar.

            - Eu tenho que ir... – Leonor queria mover-se, mas parecia que seus pés estavam presos.

            - É você tem... – Thomas confirmou em voz baixa.

            - Leonor! – a voz de João Guilherme parecia mais próxima.

            - Ai meu Deus! – a moça começou a procurar pela bola em torno de si. Entrando ainda mais na mata. – Ela está por aqui. Só pode estar.

            Thomas acompanhou toda aquela movimentação.

            - O que?

            - A bola do meu irmão. – Leonor continuava a procura entre as folhagens. – Tenho que achar, antes que ele...

            Ao revirar as folhas, a moça viu uma cobra e se assustou, recuando. Sem ver onde pisava, tropeçou em uma raiz exposta.

            Antes que ela caísse, Thomas foi mais rápido e a segurou, trazendo-a contra o seu corpo.

            Um dos braços circundava a cintura dela e o outro lhe apoiava as costas. Leonor espalmou as mãos no peito como se quisesse afastá-lo, mas ao mesmo tempo, as mãos crispavam-se na camisa atraindo-o para mais perto.

            O tempo pareceu parar. Até os pássaros calaram-se. Nada. Nenhum ruído era ouvido. Somente a respiração profunda e o bater dos corações.

            A eternidade passando em segundos. Olhos azuis como o mar nos olhos castanhos como o mogno. Mirando-se, guardando cada detalhe. Pele clara, curtida pelo sol. Pele morena suave como a pétala de uma flor. Lábios finos, maltratados pela longa exposição no mar. Lábios rosados como botão de rosa, feitos para serem beijados. Que sabor eles teriam...

            Thomas endireitou o corpo trazendo Leonor consigo. Sabia que tinha de soltá-la, mas não conseguia. Nunca mais teria a chance de provar o doce sabor dos lábios que o atormentavam nas noites insones...

            Ela tinha que se soltar daquele abraço, pensou Leonor em parte horrorizada por estar nos braços daquele pirata. Mas ali era o seu lugar, dizia-lhe o coração saltitante como um cabrito novo. Era ali que ela queria estar, desde o primeiro dia, desde o primeiro sonho. Era ele, que a fazia acordar nas noites quentes, com o coração na boca e a respiração arfante.

            - Você está bem? – ele perguntou, levantando o queixo dela delicadamente.

            - Sim, eu... – ela baixou os olhos, mas mudou de ideia ao ver a pele dele e alguns fios de cabelo aparecendo pelo colarinho aberto da camisa. – Eu estou bem. O senhor poderia me soltar, por favor. – a moça levantou a cabeça, olhando diretamente nos olhos dele.

            - Ainda não, my darling. Ainda não... – e abaixou os lábios na direção dos dela ao mesmo tempo em que a apertava ainda mais nos braços.

            Leonor nunca havia sido beijada. E nada poderia prepará-la para o turbilhão que a acometera. Sentia a cabeça girar e girar. Um fogo agitava-lhe as entranhas. Ela emitiu um gemido do fundo d’alma que fez eco ao desejo que Thomas também sentia.

            Ele a beijava com suavidade a principio para não assustá-la. Mas ouvir o gemido que escapou dos lábios dela, o descontrolou da tal maneira que passou a beijá-la não somente com os lábios, mas com as mãos, com o corpo. Sorvia-lhe a boca como se provasse a mais fina iguaria, o mais rico vinho.

            Leonor esqueceu-se de tudo. Thomas embriagava-lhe os sentidos beijando-a daquele jeito. Nada era comparável aquilo. Ela sentia-se derreter, desmoronar diante dele. Sentia-se pronta, embora não soubesse exatamente para que.

            Nos breves momentos em que as bocas separavam-se, os lábios dele correram da suave curva do queixo até as linhas puras do pescoço de cisne.

            - Leonor... Que feitiço me lançou? Não consigo mais pensar em meu passado.

            - E eu não terei futuro se vosmecê não for embora. Vosmecê é um pirata e eu noiva de um homem que tanto perigoso quanto de rico.

            - Você quer que eu vá? – perguntou Thomas afundando o rosto na massa de cabelos escuros

            - É preciso... – Leonor murmurou contra o ombro dele.

            - Não! Quero te ver novamente, Leonor.... Tocar-te, te beijar... – ele recomeçou a beijá-la. Nas faces, nos olhos, nos lábios.

            - É rematada loucura. Vosmecê não entende. Estou presa a um casamento. Ai meu Deus! – ela soltou-se dele e colocou as mãos sobre o rosto, em desespero. - Se meu noivo sabe disso, ele manda te matar.

            - Bem quem sabe é desse jeito que tudo deve terminar para mim. – Thomas disse com voz sombria. – Não encontrei a morte em batalha, mas a encontrarei por amor...

            Leonor empalideceu.

            - Não digas isso.... Entreguei o meu coração a vosmecê. Se morreres não me restará mais nada, Thomas.

            A pronúncia do nome dele na voz dela provocava-lhe estremecimentos de excitação.

            - Tenho que ir agora, se não alguém vem me procurar. – ela disse

            Thomas deu alguns passos para frente e abaixou-se pegando uma bola feita de fibras vermelhas.

            - É esta o cupido?

            Ela riu pela alusão. Afinal se não fosse pela bola, eles nunca teriam se encontrado ali.

            - Venha. – ele lhe deu a mão para que ela passasse por cima de algumas folhagens. – Se alguém lhe perguntar, diga que a bola caiu aqui. E diga ao seu irmão que ele tem um braço forte. Garotos gostam de ouvir isso.

            - E vosmecê? O que gosta de ouvir?

            Thomas colocou a mão em seu rosto. Leonor sentiu a aspereza da pele acostumada ao trabalho pesado e aquilo aqueceu seu coração. Seu pai sempre lhe dizia que um verdadeiro homem é reconhecido pelas mãos. Quanto mais ásperas, menos medo ele tem da vida. Ela colocou umas das suas sobre a dele.

            - Incrível! Quando eu saí da Inglaterra, eu só pensava em morrer. Mas agora, eu só penso em ouvir a tua voz. Como pode ser isso? – ele declarou

            - Quem sabe o que Deus determina para nós? É um mistério, Thomas. – Leonor respondeu.

            - Eu verei você outras vezes? – ele acariciou o rosto dela.

            - Eu não sei.... Eu preciso pensar... – e correu para fora da mata.

            Thomas ainda a observou conversando como irmão. Decerto falando o quão longe a bola estava. Depois de um rápido olhar para trás, ela o pegou pela mão e os dois entraram na casa.

            Ainda sentindo o toque dela em seu rosto, o inglês tomou o seu caminho em direção ao cais.

***

            Dom Constâncio servia-se da penumbra da taverna para ver e ouvir o movimento ao seu redor. Logo dois homens se reuniram a ele.

            - Até que enfim, inúteis. Porque a demora? Aliás, a demora e a incompetência! Não conseguiram prender uma donzela indefesa? Dois homens para uma tarefa tão simples

            - Não foi tão simples, dom Constâncio.  Sua noiva não era tão indefesa assim. Aquela miserável...

            Dom Constâncio agarrou o outro pelo pescoço e colou o rosto dele na mesa.

            - Tenha mais respeito com aqueles que são superiores a você, seu infame.

            - Sim, senhor! Sim senhor!

            Dom Constâncio o soltou e o homem continuou o seu relato.

            - Como eu dizia senhor, a donzela não era indefesa. Ela me feriu com um punhal. E o homem que a acompanhava era hábil com uma espada.

            - Besteira! - Dom Constâncio bebeu pouco mais do vinho, no entanto, sem oferecer aos homens. - Aquele selvagem não saberia nem pegar numa espada.

            - Mas não era nenhum selvagem, D. Constâncio. - o homem mais baixo respondeu. – Era um dos piratas.

            - O quê?!

            - Isso mesmo. Ele disse que a dama estava sob sua proteção.

            - Não acredito. – D. Constancio coçou o queixo.

            - Pode acreditar, D. Constâncio. Ele era um exímio espadachim e sua noiva tem uma pontaria de canhoneiro, senhor - o mais baixo tocou a atadura na cabeça.

            - Então um dos piratas resolveu tomar minha noiva sob sua asa... E vocês sabem quem ele e?

            - Alto, jovem, olhos azuis...

            - Guzman eu perguntei se vocês o conheciam. Não pedi uma descrição de mulher apaixonada.

            Guzman sentiu arder de raiva. Se aquele homem não fosse um dos mais ricos da colônia, ele enfiaria aquela garrafa de vinho em um lugar onde o sol não batia.

            - E então? Quem é ele?

            Guzman e o outro homem olharam para os lados, pensando em como responder aquela pergunta, quando o espanhol ergueu os olhos.

            - Ali, D. Constancio! – ele fez um sinal com a cabeça. – É aquele ali.

Constancio virou a cabeça e viu um homem que entrava na taverna naquele momento. Era o mesmo do ataque na igreja. O homem que havia perseguido Leonor quando a louca mandou um dos selvagens atrás de D. Bernardo.

            Naquele dia ele não prestou muita atenção no pirata, por motivos óbvios. Queria passar despercebido. Mas, agora, D. Constancio avaliava bem o homem que entrava. E, pelo cenho franzido, não estava gostando do que via.

            - Quero falar com ele. Tragam-no aqui.

            Guzman e o outro homem entreolharam-se. Eles já haviam enfrentado aquele homem e sabiam que ele era bom no manejo da espada.

Constancio fez um gesto de irritação e levantou-se, pegando a caneca com o resto de vinho, encaminhou-se para onde o homem estava.

            Thomas estava sentado em uma das mesas e olhava pensativamente para a caneca a sua frente, quando um desconhecido se sentou.

            Lentamente, ele virou a cabeça demonstrando todo o seu descontentamento com a intromissão.

            Demonstrando estar à vontade, D. Constancio levou a caneca aos lábios.

            - Vosmecê é um dos homens do corsário inglês, não é?

            - Quem quer saber?

            - Sou D. Constancio Olinto de Siqueira. Sou um rico comerciante dessas terras.

            - É mesmo? – Thomas respondeu irônico. – E a troco de quê está me dizendo isso.

Constancio inclinou-se para frente.

            - Quero falar com seu comandante. Propor um negócio.

            - E por que pensa que ele perderia tempo falando com o senhor?

            - Vinte mil Peças de ouro...

            Thomas assobiou surpreso.

            - Entendo. E o senhor que o que em troca dessa fortuna?

            - Isso só ele saberá.

            - E como vou saber se isso não é uma armadilha para o meu comandante?

            - Terá que confiar em mim, senhor Horton?

            - Já fomos apresentados?

            - Eu me lembro do senhor durante o ataque na igreja. Aliás, - D. Constancio olhou fixamente o rosto de Thomas, atento a qualquer mudança. – eu peço desculpas pelo atrevimento de minha noiva.

            - Sua noiva? A moça rebelde? – Thomas sentiu uma pontada no estomago como um soco.

            - Sim. Ela teve uma educação diferente de qualquer outra donzela. Toma atitudes impensadas.

            - Não acho que foi impensado. Ela sabia muito bem o que estava fazendo. – Thomas deixou a lembrança da coragem impulsiva de Leonor invadir sua mente. Daí para os beijos que trocaram foi um pulo.

            - É... – D. Constancio inclinou-se para frente com um sorriso irônico nos lábios. – Ela realmente sabia o que estava fazendo.

            Thomas olhou para o homem e viu que cometera um erro. Ele deixara o outro perceber que a lembrança da moça o perturbara.

            O inglês bateu a caneca da mesa, levantando-se ruidosamente. D. Constâncio levou a mão à espada.

            - Então o senhor quer propor um negócio à Sir Thomas! Vamos ver se ele não vai custar a sua garganta cortada. Venha comigo. – Thomas caminhou até a porta.

Constâncio levantou-se e o seguiu. Direcionou um olhar mais adiante para Guzmán e o homem que o acompanhava. Os dois fizeram um aceno imperceptível com a cabeça e seguiram os dois quando eles saíram da taverna.

            Thomas queria chegar o mais rápido no Leicester e entregar logo o homem à Sir Thomas. Era honesto o suficiente para desejar que o comandante não aceitasse a proposta do português e lhe mandasse cortar a garganta. Assim, Leonor estaria livre do compromisso com tal criatura. Aliás, ele mesmo desejava cortar a garganta do tal homem.

            Perdido em seus pensamentos, ele nem notou que D. Constâncio olhava constantemente para trás, como se suspeitasse estar sendo seguido.

            De repente, dois outros homens mascarados surgiram à frente dos dois.

            - Muito bem! O ouro ou a vida! – disse um dois apontando a espada para eles.

            - Seus sujos! – vociferou D. Constâncio, - Sabem que eu sou? Sou D. Constâncio Olinto de Siqueira. Vou manda-los enforcar por isso.

            - Se o senhor saber quem nós somos, o que não é o caso. Mas antes do dia terminar, eu poderei dizer que estoquei tão fina pança com a minha espada.

            Thomas retirou um apito do bolso e o fez soar. Em seguida, vários homens surgiram magicamente das sombras. Eles renderam os bandidos.

            Ele virou-se para D. Constâncio.

            - Não pense que eu acreditei em seu teatro, senhor. Devia escolher melhor seus cúmplices. – Thomas caminhou na direção dos mascarados e lhe tirou as máscaras. – Esses eu reconheci na taverna sentados com o senhor. E, se eles quisessem disfarçar a voz, deveriam ter colocado panos sobre o rosto, não máscaras nos olhos. – Ele sacou um punhal e imprensou D. Constâncio contra a parede. – Agora me diga. O que na verdade o senhor quer?

            - Calma! Só estava me protegendo. Os dias andam muito perigosos por aqui. Quero mesmo propor uma aliança ao seu capitão. – D. Constâncio capitulou quando sentiu a ponta do punhal em seu pescoço.

            - Sabe que depois dessa traição, o valor da barganha subiu. Vinte mil peças no início? Agora são quarenta mil peças.

            - Tudo bem! Eu posso arranjar esse montante. Mas, por favor me largue. – D. Constâncio pediu.

            - Sua coragem me impressiona. – Thomas zombou, guardando o punhal.

            - E quanto a esses, Horton? – um dos piratas perguntou indicando os dois homens.

            - Deem-lhes uma lição e larguem-nos por aí. Duvido que se meterão comigo uma terceira vez, não é?

            Os piratas saíram levando os dois homens a pontapés e socos.

            - Agora que estamos entendidos, D. Constâncio, vamos ver sir Thomas.

            - É claro. – D. Constâncio aquiesceu. Mas em seu pensamento completou: “Vamos ver se estará tão seguro assim quando eu terminar de falar com seu comandante, seu bastardo.”


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Notas finais do capítulo

Esse D. Constâncio tá com ideia.... E ela não é boa para o nosso herói. Aguardem os próximos capítulos!



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