Divided escrita por Pat Black


Capítulo 24
X thousand bullets


Notas iniciais do capítulo

Vocês acreditam se eu disser que estava com bloqueio para este capítulo???
Só consegui escrever depois de me embrenhar em Sia (essa maravilhosa) e escolher como trilha sonora do capítulo "One Millions bullets". Os primeiros versos: Sob a luz do luar, em seu caloroso abraço, eu me sinto tão segura..." foi que o capítulo fluiu.
Espero que gostem.



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“Pode ver quantos são?” Rick perguntou esvaziando o tambor e colocando novas balas.

“Dois à direita, perto daquelas duas árvores com o tronco retorcido.” Sam disse ainda sem acreditar que ele tinha ficado, quando imaginara que todos tinham partido ao ouvir o veículo acelerar.

“Pode ver outros?” Ele perguntou atento.

“Não. E não podemos ficar aqui.” Sam explicou sabendo que podiam ter mais deles e que os errantes logo apareceriam guiados pelos tiros. “Vem comigo.” Falou se afastando para a parte mais densa da floresta, usando os arbustos como proteção, passando a bolsa de armas para ele, assim que as árvores lhes deu cobertura suficiente para que ficassem de pé.

Sabiam que eles estavam logo atrás, mas Sam conhecia a região bem o bastante para se esconderem e guiá-lo de volta a estrada.

“Acha que o grupo do governador pode ter vindo tão longe?” Sam questionou quando se agacharam, meia hora depois, ao perceber uma movimentação e logo descobrir que tinha sido um pequeno animal.

“Não.” Rick sussurrou. “Acho que são saqueadores.” Falou observando alguns galhos se mexendo a direita.

Ele colocou o dedo sobre os lábios pedindo silêncio.

“Estou lhe dizendo Phill, vi o cara correndo para a floresta por aqui.” Uma voz jovem, com um sotaque carregado, falou baixo, mas eles estavam perto o bastante para serem ouvidos com clareza.

“E a garota?” Uma voz mais velha e mais baixa questionou.

“Não vi.” O garoto respondeu.

“Fique atento.” O tal Phill pediu. “Atire no homem, mas não machuque a garota.”

“O Jordan e o Martin foram atrás das outras duas.”

“Não me importo com a negra, ou a outra, quero a morena.” O velho falou com a voz carregada de desejo.

Eles estavam mais próximos agora, passando por trás dos arbustos e árvores, visíveis o bastante para que Rick gesticulasse a Sam que daria a volta para pegá-los. Sam meneou a cabeça e apontou para si mesma, depois falou sem som, no que Rick entendeu muito bem a palavra ‘isca’.

Antes que pudesse falar algo ela se esgueirou até um ponto mais à frente, esperou que o xerife se posicionasse, e chamou atenção dos dois. Rick estava agachado atrás de um tronco largo, onde eles não o viram quando passaram ao notar Sam entre as árvores. Os desgraçados podiam até ser espertos, mas não tinham nenhuma noção de como andar despercebidos em uma floresta.

“Saia com as mãos para cima gracinha.” O velho ordenou alguns metros de onde Sam estava, empunhando um rifle, e ela se ergueu. “Mãos para cima.” Ele mandou quando Sam manteve os braços ao longo do corpo, a arma não mão boa.

“Ela é bonita mesmo.” O garoto, ruivo e muito grande, deixou escapar dando um passo para Sam.

Ela riu torto e os dois não entenderam por que o fazia, estando em desvantagem. Logo ouviram um assobio, viraram e Rick já tinha acertado o velho na cabeça e logo o garoto no peito.

O ruivo cambaleou e ergueu a arma, mas Sam já estava atrás dele, encostando a beretta em sua têmpora e atirando. Parte do sangue dele espirrou nela e Sam recuou enojada.

Ficou um segundo olhando para os corpos, quando Rick se aproximou e revirou os dois em busca das armas e da munição. Notando no pulso de um deles uma tatuagem com três estrelas vazadas, a imagem fazendo-a estremecer levemente. Quando Rick puxou o coldre do garoto, o virou e seu braço revelou uma tatuagem similar ao do companheiro.

“Você está bem?” Ele perguntou depois de levantar, tocando no braço dela, se abaixando ligeiramente para lhe olhar nos olhos, preocupado e ansioso.

“Não é a primeira vez que mato alguém.” Ela disse, mas sentia o estômago revirar, perguntando-se se um dia, fazer tal coisa, se tornaria mais fácil.

“Não faça algo assim novamente, se colocar como isca, poderia ter levado um tiro.” Ele disse se afastando para olhá-la um momento, consternado.

Eu levaria dez mil tiros por você. Sam pensou, sabendo que nuca esteve mais certa sobre alguma coisa em sua vida. E essa compreensão do poder que Rick possuía sobre seus sentimentos a aterrorizava.

“Temos que sair daqui.” Rick apontou para os primeiros errantes que apareciam.

Correram de volta a estrada. Sam ainda deu uma olhada para trás, e avistou os errantes em frenesi avançando na dupla recém abatida, no que parecia o mesmo grupo do qual fugiram mais cedo.

“Se eles foram atrás delas, não acredito que parem em Cynthiana.” Rick falou seguindo ao lado dela.

“Espero que consigam se livrar deles.” Sam disse puxando Rick pelo braço, apontando para a floresta. “Tem uma trilha há alguns metros adiante. Vamos evitar a estrada por enquanto. ”

Ele concordou e rumaram em direção a rodovia, com Sam um pouco a frente, calados durante um bom tempo, preocupados com Maggie e, de certa maneira, também com Michonne.

Praticamente corriam, desviando aqui e ali para por fim encontrar a trilha mencionada por Sam. Logo estavam próximos a rodovia. Sam avisou Rick, e este indicou que parassem.

“Precisamos achar um veículo rápido.” Rick pontuou o óbvio.

Sam concordou com a cabeça. Estava ofegante, inclinada, mãos nas coxas, suada. Sabia que Rick teria ido muito mais rápido se não fosse por ela. Ainda se sentia fraca, algo que não a impediria de lutar, mas os atrasava. Parecia que nos últimos dias tudo contribuía para que nunca estivesse cem por cento, se tornando mais um empecilho que uma ajuda.

Rick a encarou rapidamente, depois vasculhou a sacola de armas, uma das que ele trouxera com Michonne, agarrou algo lá dentro, uma garrafa d’água, estendeu o braço e entregou a Sam. Ela agarrou e tomou um longo gole, ainda que menos da metade de seu conteúdo. Como era a única garrafa que tinham, Rick tomou um gole menor e guardou depois.

Sam se escorou em uma das árvores próximas e colocou as mãos na cintura.

“Estamos na rodovia sessenta e três. Se formos tentar encontrar um veículo na cidade, indo a pé, só chegaremos à noite.” Sam ficou com vergonha, mas não podia mentir para ele. “Mas eu não conseguirei lhe acompanhar por tanto tempo.”

Rick percebeu que ela ainda ofegava e já estavam parados por uns bons cinco minutos. Viu a vergonha em sua face e no tom de sua voz, mesmo assim, parecia impossível a Sam fingir ou mentir por orgulho.

“Temos outra opção.” Ela se endireitou e apontou para a direção contrária. “Dois ou três quilômetros, um pequeno condomínio, mais é um tiro no escuro, talvez não encontremos nenhum veículo e teríamos que voltar.”

Ao menos você. Sam meditou sabendo que não poderia ir ao local e depois retornar a cidade, a pé.

“Aguenta até lá? Até esse condomínio?” Rick perguntou ajeitando a sacola no ombro.

“Até lá, sim.” Sam não lhe ocultou isso. “Vamos?”

Ele acenou que sim e desceram para a estrada asfaltada.

Caminharam por mais de dois quilômetros em silêncio, atentos a estrada e qualquer ruído que denunciasse perigo, de humanos ou errantes. Mas a razão do silêncio entre ambos era muito mais constrangimento por estarem sozinhos, pela primeira vez desde que se conheciam, do que por falta do que conversarem.

Se fosse honesto, e se não estivessem tão preocupados com Maggie e Michonne, Rick lhe perguntaria muito e lhe diria muito. Contaria decisões que tinha tomado antes da tarde anterior, e perguntaria como ela poderia encarar essas escolhas. Mas aquele não era o lugar, nem o momento apropriado para conversarem sobre 'eles' de qualquer maneira. Mas, mesmo e apesar de tudo, não desejava que Sam continuasse a lhe tratar com tanta frieza, com barreiras erguidas para mantê-lo afastado, fosse ali naquela estrada ou depois, quando retornassem.

“Já esteve nesse lugar?” Perguntou apontando o caminho à frente, apenas para quebrar o silêncio opressor.

“Tinha uma amiga que morava lá.” Sam respondeu.

Ficou em silêncio por alguns segundos e ele pareceu ansiar que ela continuasse. Notou que Rick precisava conversar sobre qualquer coisa no momento, por isso continuou.

“Eu a conheci no hospital, quando minha mãe ficou doente.” Revelou. “O irmão dela estava lá também e nos encontrávamos com frequência na sala de espera. Nunca teríamos nos conhecido de outra maneira.”

“Por quê?” Rick pareceu genuinamente interessado.

“A família dela era rica, a minha não. Frequentávamos meios diferentes.” Sam deu de ombros. “Mas ela morreu no começo de tudo isso, pegou a febre.”

“Sinto muito.”

“Acho que foi melhor. Ela era muito sensível, muito amável... Ficaria triste se tivesse que mudar.” Sam passou a ajeitar a atadura na mão para que Rick não pudesse ver que tinha os olhos marejados.

“E você não? Digo... Você mudou? ” Rick viu Sam balançar a cabeça confirmando.

“Não mudamos todos?” Ela voltou a segurar a arma e deu uma rápida olhada em Rick.

“Não acho que tenha mudado muito.” Ele disse olhando dentro de seus olhos.

Sam lhe olhou firme, depois revelou:

“Quando minha mãe morreu, decidi que seria médica, queria salvar vidas, ajudar os outros.” Sam meneou a cabeça e olhou para a beretta. “Agora eu só penso em matá-las, para que não tenham chance de nos machucar.”

“Por isso mesmo não mudou tanto.” Rick percebeu que ela mexeu a cabeça em descrença, parecia dizer que Rick não a conhecia antes para poder notar o quão diferente estava agora. “Você é uma pessoa rara Sam, que tem um profundo senso de dever e amizade. E ainda procura ajudar os outros, sempre que pode: Chase, Sofia, Axel... Ajudou-me há nove meses e eu era um estranho.”

“Linn te ajudou xerife, não eu.” Sam replicou zangada por que não queria os elogios dele e o que estes faziam com sua determinação em mantê-lo afastado.

“Você estava lá também, poderia ter me abandonado desmaiado na porta de minha casa, ou depois, quando o errante me atacou no quarto, mas se arriscaram por mim, as duas.”

A ternura na voz dele fez suas campainhas de alerta tocarem enlouquecidas. Ele usara o mesmo tom ao falar com ela na passarela, quando lhe dissera que poderiam ter tentado, que algo poderia ter surgido entre eles, se fosse livre para isso. Mas Sam não queria tentar, não o queria desse modo, livre por que sua esposa foi assassinada, não quando tudo era tão recente e, talvez, nem depois.

Por isso fez a única coisa que podia para se defender: começou a criar barreiras e empecilhos. Desejou que Rick a notasse como alguém fria e cruel, não como uma pessoa rara que se importava com todos, por que Sam sabia que não era assim.

“Eu queria te deixar para trás.” Sam respondeu parando um momento, cansada, para recuperar o fôlego. “Encontramos você no hospital. Você estava em coma e eu o queria deixar para trás.” Sam revelou voltando a andar.

Rick pareceu não entender e Sam não achava que era o momento para explicar, mas odiava mentiras e aquela era uma que tinha carregado por muito tempo, por Linn. E, agora, esta verdade poderia afastá-lo, por isso a usou.

“Você estava deitado no quarto daquele hospital, sozinho, indefeso, seu soro estava vazio e quem quer que tenha cuidado de você, por tanto tempo, parecia que não voltaria mais.” Sam continuou revelando. “Linn quis te ajudar, disse que podíamos ficar lá até que você, sei lá, despertasse... Eu disse que não. Estava cansada de me responsabilizar pelas pessoas.”

Sam lembrava-se muito bem daquele momento. De vê-lo sobre a cama e pensar que aquele estranho só lhe traria sofrimentos. E estava certa. Nada de bom resultara em conhecê-lo ou amá-lo.

“Pelo prontuário você estava ali desde antes da epidemia, o que lhe dava quase cinco meses em coma, então sugeri a Linn que déssemos fim ao seu sofrimento.” Sam parou novamente, recuperando o ar, depois o encarou. “Linn salvou você... Eu queria te matar... Sabendo disso, acha que quero sempre ajudar as pessoas?”

“Por que não me contou isso quando nos conhecemos?” Rick questionou um pouco chocado.

“Por que Linn me pediu.” Sam respondeu. “Ela não queria que soubesse que saímos atrás de você desde o hospital até sua casa. Por que Linn é uma romântica, se interessou por você desde o começo e tinha vergonha de admitir isso.”

“Mas não você.” Rick pareceu considerar aquilo como mais do que parecia.

“Nunca fui romântica xerife.” Sam riu de seu jeito triste, voltando a andar. “E certamente não me interessaria, à primeira vista, por um estranho definhando sobre uma cama.”

“Está determinada a me chocar?” Rick perguntou, zangado agora.

“Não. É que detesto quando alguém pensa que me conhece, que sou melhor do que qualquer outro, que não faço escolhas ruins e tomo atitudes egoistas.” Sam conseguira deixá-lo aborrecido e isso era bom.

“É... Acho que conheço você mais do que imagina.” Ele rebateu lhe encarando fundo.

“Acha mesmo?”

“Você está fazendo isso, me dizendo essas coisas, por que está se sentindo culpada e também por que pensa que não está mais segura agora.” Rick disse com seu sotaque carregado, suspirando e abanando a cabeça, olhando para Sam enquanto caminhava. “Esteve se escondendo atrás de Linn e de Lori e agora não pode mais.”

“Deus, Rick!” Sam bufou incrédula. Mas ele estava correto, atingindo-a direto na jugular, em um golpe certeiro.

“Não é como se fôssemos começar nada agora, mas você sabe, e eu sei, e não preciso lhe dizer o quê.”

“Não acho que deveríamos conversar sobre isso... Cristo! Sua mulher morreu ontem.” Ela foi dura.

“E nosso casamento há oito meses.” Rick explicou diminuindo o ritmo das passadas por que ela o fez, e Sam parecia mais cansada a cada minuto. “Estava esperando ela melhorar para terminarmos tudo.” Ele esclareceu.

“Não.” Sam abanou a cabeça o achando cruel de muitas maneiras.

“Sim... Era a mãe de meus filhos, mas não podia dar a ela nada mais que amparo.” Rick suspirou triste. "E isso podia ser tudo o que ela precisava de mim no final das contas."

Diferente de Sam, que parecia viver para proteger, Lori existira para ser protegida, e Rick não se sentia inclinado a passar o resto de seus dias atado a alguém que não admirava e que não mais poderia amar.

“No fundo foi isso que Lori sempre buscou, proteção. De mim, de Shane, do grupo... Senti sua morte, queria que estivesse viva, mas nem uma coisa ou outra mudaria as decisões que tinha tomado.” Ele apontou para um telhado alto entre as árvores. “Chegamos?”

“Sim.” Sam parou e lhe encarou assustada com toda aquela conversa, com o que ele lhe revelava.

“Não iria me separar dela por causa disso, do que sinto por você.” Rick precisava explicar. “Mas o que vivíamos era uma farsa e eu a suportei por Carl, pela bebê que iria nascer, até pelo grupo. Me esforcei por eles, mas nem mesmo isso poderia mudar algo ou alterar o fato de que Lori não passava da mãe de meus filhos e nada mais.”

“Não podemos conversar sobre isso outra hora?” Sam disse incapaz de pensar com clareza, odiando o volume de culpa que alagava seu peito.

“Acha que estou sendo insensível?” Rick perguntou se afastando com ela da estrada, para um agrupamento de árvores.

“Acho que falamos mais um para o outro nessa curta caminhada, do quê durante todo o tempo que nos conhecemos.” Sam respondeu parando.

“Nunca conseguimos... Você sempre foge de mim e me trata como se me odiasse.” Rick explicou.

“Desculpe-me, se não fico alardeando aos quatro ventos o meu interesse por um homem casado.” Sam falou entre dentes.

Rick gostou de ouvi-la admitir com clareza que o interesse existia, mesmo assim, pensou em dizer que Linn não se importava, mas um barulho nos arbustos próximos os colocou em alerta.

Um errante, mulher, jovem, com o rosto descarnado onde o maxilar pendia, horrível, e, ainda assim, perdendo de longe para o pior que eles já tinham visto.

Rick se afastou, a derrubou com a faca e chamou Sam para que o acompanhasse até o portão de entrada.

Se se preocuparam que alguém estivesse usando o lugar como base, seus temores se dissiparam assim que notaram o local totalmente desprotegido, os portões escancarados, com um deles no chão ao lado da entrada.

O caos reinava ali como em todos os lugares, mas parecia que muito mais pela fuga apressada das pessoas do que realmente pelo lugar ter sido repetidamente saqueado.

Verificaram alguns veículos, até que Sam o conduziu para uma das casas mais afastadas, pomposa em sua arquitetura e claramente mais abastada que as demais.

“É a casa de sua amiga?” Ele perguntou e ela respondeu com um aceno de cabeça.

“Eles morreram logo no começo.” Sam respondeu esquecendo a discussão que estiveram tendo na última meia hora.

De todas as casas, aquela era a que menos tinha sofrido com a ação de qualquer tipo de saque. Mesmo assim, a porta estava aberta e entraram com cautela. Seguiram ao longo dos corredores até Sam fazer um sinal para ele, apontando uma porta. Ela a abriu e Rick vasculhou o interior com a lanterna.

“Limpo.” Disse com seu tom mais profissional.

Quando entraram Rick percebeu que estavam na garagem, uma parte da casa que não era visível da entrada. Rick só notou que isso era estranho, por que a maioria das demais casas pela qual passaram possuíam a garagem logo na fachada.

Tomou cuidado em verificar o lado de fora antes de abrir a porta da garagem, deixando a luz do fim de tarde entrar. Sam já retirava a lona que cobria o único veículo no local, e Rick entendeu por que este tinha ficado para trás. Era um carro moderno, do tipo que até ladrões profissionais tinham dificuldade em roubar, um carro que poucos poderiam possuir.

Ela caminhou até a parede lateral, tomada por todo e qualquer ferramenta que ele pudesse conceber. Puxou uma escada, subiu e abriu uma gaveta, mostrando a chave eletrônica, talvez a reserva, e destravando o carro.

“Tanque cheio.” Rick explicou se inclinado lá dentro e recuando para pegar as chaves que ela jogou em sua direção.

Ela rodeou o veículo, entrou e sentou ao lado dele, se dando conta que fora fácil demais, mas alguma coisa precisava ser fácil naquela merda de vida tão difícil pela qual navegavam.

Deu uma olhada para alguns objetos deixados no veículo e reconheceu uma blusa da amiga. Sam, que não pensava em Melinda há muito tempo, ficou triste em estar saqueando sua casa. Mas, se pensasse bem, a garota que tinha conhecido naquele hospital, e da qual se tornara amiga inseparável no colegial, ficaria feliz em que algo que fora de sua família pudesse ajudar Sam de alguma maneira agora.

Rick manobrou e logo estavam voltando à estrada. Retornando pelo mesmo caminho onde tiveram aquela dura conversa. Com Sam e Rick rememorando cada palavra dita e não dita entre eles.

Quando estavam na rodovia para Cynthiana, próximos o bastante da cidade, em um longo trecho onde nada mais existia que o asfalto a recortar a paisagem vazia e triste, avistaram um veículo ainda queimando longe da pista, capotado e muito amassado.

“São elas?” Sam questionou aflita sem poder distinguir muito do veículo.

Rick parou. Não havia onde alguém se esconder naquele trecho, por isso saiu, seguido por Sam, e correram para o veículo queimando, notando, aliviados, que a cor não era a certa, que aquele não era o carro deles.

“Errante.” Sam avisou apontando para um corpo sem uma das penas, queimado em alguns pontos, que tentava lhes alcançar se arrastando.

A coisa erguia o braço na direção deles a cada novo avançar, de modo que Sam pode perceber a mesma tatuagem de estrelas no pulso.

“São eles.” Apontou para o outro corpo no carro. “Os que vieram atrás delas.”

“Como sabe?” Rick perguntou acertando a cabeça do errante pela nuca, com a faca.

“Os outros dois tinham essa mesma tatuagem no pulso, não pode ser coincidência.”

“Não, acho que não.”

“Isso quer dizer que elas estão bem, certo?” Sam perguntou esperançosa.

“Se forem apenas esses quatro.” Rick foi realista, imaginando que eles pudessem ter um grupo maior, possivelmente outro veículo.

“Mas elas devem ter esperado na cidade.” Sam olhou para a bagunça que era o carro destroçado e desejou que Maggie estivesse bem.

“Está ficando escuro.” Rick abanou a cabeça. “Vamos até o ponto de encontro que usamos mais cedo, se elas não estiverem lá, procuramos algum lugar para nos abrigar a noite.”

Sam não achou a ideia muito boa, mesmo que fosse acertada, viajar a noite, com os errantes em toda a parte, e o grupo do governador a espreita por eles, não era sensato.

Para desespero de Sam, as mulheres não estavam no ponto de encontro, o que os forçou a procurar abrigo em um prédio próximo, escondendo o carro em um beco e subindo ao telhado do local pela escada de incêndio. Sam desejou terem ficado no carro, mas isso só atrairia os errantes até ali.

Ela se arrepiou quando pisou no terraço, o vento bagunçando seu cabelo em todas as direções, fazendo-a perceber que ele estava solto e nem notara. O amarrou de qualquer jeito em seu habitual rabo de cavalo, só por comodidade e se afastou em direção à borda.

O céu estava avermelhado, tingindo Cynthiana com uma luz rosada e irreal. Sam amava observar a aurora e o entardecer, ainda que nunca tivesse compartilhado esse prazer com ninguém, por isso ficou parada um longo momento olhando para o céu que escurecia, diante do sol que morria. Percebendo que tinha sido uma sensação de morte e perda, que lhe assustou ao pisar naquele lugar.

Enquanto isso, Rick se ocupava em travar a porta de acesso dali, bem como em colocar algumas latas empilhadas e encostadas a esta, a guisa de alarme.

“Acho melhor não nos arriscarmos lá dentro.” Ele avisou se aproximando de algumas caixas velhas, verificando que estavam vazias, abrindo-as e forrando o chão, junto a parede, próximo à porta, se afastando e analisando o que melhor tinham para passar a noite.

Sam assentiu sobre não poderem correr riscos no escuro, e se aproximou do chão forrado, sentando, encostando a cabeça à parede e fechando os olhos.

“Acha que elas estão bem?” Perguntou quando ele sentou ao seu lado, distante o bastante para deixá-la segura de que ele não tinha intenção alguma para com ela, àquela noite e naquele lugar.

“Confio em Maggie.” Rick respondeu. “Talvez até ainda estejam aqui e tenham apenas procurado um lugar para se abrigar, assim como fizemos.”

“Ou talvez tenham retornado a prisão.” Sam falou e suspirou desanimada. “Só desejo que uma dessas opções seja a certa.” Completou lembrando-se da manta na bolsa.

Puxou esta com cuidado para não revelar o porta retratos e estendeu a mesma sobre seu corpo. Depois pareceu considerar por um momento, levantou uma ponta do tecido e encarou Rick.

Não o estava convidando para nada mais que compartilharem a manta e ele pode perceber isso com clareza, mesmo assim, ele hesitou em se aproximar, depois o fez, vencido pela certeza de que a noite seria fria e não teriam mais do que aquilo, e um ao outro, para se manter aquecidos.

“Não é comprida o bastante para nós dois.” Ele disse após tentarem ficar sentados lado a lado.

Sam riu. Não foi algo como sempre fazia, triste ou irônica, foi espontâneo, límpido e fez Rick estremecer dos pés a cabeça.

De repente a garota se deu conta de como aquela situação era ridícula, com Rick e ela evitando se tocar o quanto podiam, quando tinham uma longa e gelada noite pela frente.

Cada preocupação, angústia e culpa podia esperar pelo dia seguinte. Precisavam descansar e não fariam isso se estivessem preocupados em manter um decoro, que não importava nada nesse momento.

“Me abrace e pronto.” Ela disse séria, envergonhada por ter se deixado levar a rir da situação.

Rick não esperou um novo convite. Ele sempre seria muito prático em qualquer situação, e a certeza de que Sam também o era, seguia sendo algo muito bem vindo.

Passou os braços ao redor de seu corpo e Sam se acomodou contra o seu peito. Encaixaram-se perfeitamente, com ela sentindo que sempre seria assim.

Ficaram em silêncio por algum tempo, cientes de que um podia ouvir o coração do outro, ambos acelerados. Ela se lembrou do beijo que trocaram, percebendo que, mesmo naquela primeira vez, não tinham realmente se ajustado tão completamente.

“Você teria me matado realmente?” Ele perguntou como se a conversa na estrada não tivesse terminado. Querendo compreender o que ela lhe revelara sobre o modo como se conheceram há nove meses.

“Sim.” Sam respondeu sincera. “Parecia muito triste te deixar daquele jeito xerife, meio morto, como um errante.” Justificou para que ele não levasse em conta sua tola tentativa em se pintar como alguém fria e sem coração.

“Como sabia onde me encontrar depois? Onde eu morava?” Rick encostou o queixo em sua cabeça e acomodou melhor a coberta ao redor dos dois.

“O endereço estava no prontuário.” Sam respondeu fechando os olhos quando ele colocou as pernas dela sobre as dele.

“Foi onde você e Maggie estavam mais cedo, quando demoraram de voltar?”

“Como sabe?” Sam se afastou e o encarou na penumbra.

“Vi a fotografia na bolsa, lá na cabana, quando você estava guardando a manta.” Ele revelou meneando a cabeça de leve.

“É para Carl e Judy.”

Ele ficou em silêncio e Sam não sabia o que estava pensando.

Que era uma intrometida talvez, por se envolver em seus assuntos de família. Pensou desviando o olhar para a sua boca e virando o rosto logo em seguida.

“Obrigado.” Ele disse apenas, a voz levemente embargada.

“Por nada... Sei o que é perder uma mãe na idade do Carl.” Sam expôs.

“Eu também.” Rick lhe contou puxando-a para que encostasse a cabeça em seu peito, evitando a vontade de lhe beijar, em agradecimento por aquele gesto, que revelava muito sobre quem Sam era e suas motivações.

Voltaram a ficar em silêncio e Rick dobrou uma perna, as dela ainda sobre uma das suas, o calor de seus corpos afastando o frio.

“Posso te perguntar algo?” Ele falou e ela se preparou para questões que não tinha vontade de abordar agora.

“Depende.” Ela soou cautelosa e Rick sorriu levemente, deixando a mão deslizar pelo seu braço nu, puxando-o para que ela o abraçasse completamente.

“Por que evita dizer meu nome?”

Ela o fazia? Perguntou-se um pouco surpresa. Nunca tinha percebido, não conscientemente pelo menos.

“Não percebi que fazia isso.” Ela respondeu com sinceridade, achando engraçado que Rick se preocupasse com algum tão tolo.

“Só diz meu nome quando está com raiva ou assustada.” Ele pareceu magoado ao dizer isso.

“Não fico assustada.” Ela falou com frieza. Rick a aconchegou mais ao seu corpo e evitou rir.

“Sempre me chama de xerife.” Rick continuou. “É muito impessoal.”

“Talvez seja essa a intenção.” Ela respondeu brusca.

“E, talvez, eu passe a te chamar de Santine.” Rick deixou escapar.

“Quem lhe contou isso?” Ela se afastou e olhou para o rosto dele banhado pela luz do luar.

“Ouvi por acaso.” Ele sorriu, ajeitando-se junto à parede, olhando para ela com a cabeça levemente inclinada. “Santine.”

“Nunca me chame assim.” Ela disse irritada.

“É muito sonoro: Santine.”

“Acha engraçado?”

“Um pouco, sempre pensei que se chamasse Samantha.”

“Quem dera.” Sam soprou com desgosto, voltando a encostar-se a seu peito, em um gesto involuntário, sem que ele precisasse puxá-la ao seu encontro.

“Rick.” Ela disse após um instante de silêncio.

“Viu? Não é difícil.” Rick sussurrou, arrepiado pelo modo como apreciou ouvir seu nome sendo dito por ela, e isso acontecia sempre.

Com vagar, sem poder controlar mais a vontade de beijá-la, ele deixou a mão deslizar pelas costas de Sam até seu ombro, depois tocou seu pescoço e tomou seu rosto, erguendo-o em sua direção, mantendo-a segura pela cintura com o outro braço.

“Não, Rick, por favor.” Ela pediu assustada com o tanto de emoção que um simples toque podia provocar, não querendo aquilo, não agora e talvez nunca, por que, mesmo que se sentisse segura em seus braços, aquilo não estava certo.

“Não vai acontecer nada... Não hoje ao menos... Prometo.” Ele disse baixando o rosto e lhe beijando suavemente.

Ela temeu retribuir, por toda a discussão que tiveram mais cedo, por não se sentir confortável em desejá-lo, quando Lori se fora há menos de vinte e quatro horas, por que Linn se magoaria.

Havia tantas razões para não fazê-lo e apenas uma para seguir adiante, mas essa reduzia as demais e as esmagava.

Sam o queria, desejava seus beijos, ainda que não admitisse para si mesma que só o permitiu seguir adiante por que o amava.

Mas a boca dele estava sobre a sua, doce, a barba roçando suave em seu rosto, com ele a beijando ternamente, sem exigências, demonstrando que precisava que o beijasse de volta, que retribuísse.

“Rick.” Sam soprou quando seus lábios se separaram apenas o suficiente para que respirassem.

Ele deslizou e deitou a levando junto, moldando e ajeitando a manta sobre seus corpos.

“Durma um pouco.” Ele sussurrou com a voz embargada, lutando contra o desejo, por que prometera, por que não era certo, não ainda.

Olhou para cima, a lua cheia iluminava o céu sumindo com as estrelas, enquanto em seus braços segurava uma garota muito jovem, muito sincera e muito desejada. Suspirou, achando estranho não se sentir mal por isso, por querer e desejar Sam, agora, e só não seduzi-la por que ela se arrependeria depois, e ambos sabiam disso.

Assim, que apenas a abraçou, acariciando suas costas com vagar, acalmando-a e se acalmando no processo, sentindo o peso dela sobre seu ombro e sua perna, a mão pequena e enfaixada traçando suavemente figuras em seu peito, até que, aos poucos, eles se deixaram levar pelo cansaço e adormeceram, juntos.


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Notas finais do capítulo

X thousand bullets - Dez mil tiros