Gabriel escrita por Bella P


Capítulo 8
Capítulo 7




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DUAS COISAS ACONTECERAM APÓS A entrada dramática de Castelo:

A primeira foi que Lorenzo pôs-se de pé em um pulo, ao mesmo tempo em que o jogo de mesa e cadeiras desapareceu tão rápido quanto surgiu.

A segunda foi que Lorenzo não teve tempo nem de engatilhar a sua arma, e já estava sendo arremessado do outro lado do salão. As suas costas bateram na parede com força o suficiente para o impacto expulsar o pouco ar que tinha em seus pulmões, a sua visão ficou escura por um segundo e quando ele se recuperou, olhou à sua volta para ver se tinha sido o único desafortunado a sofrer o ataque abrupto dos anjos.

Infelizmente, não.

Os seguranças de Bee, e o próprio Bee, haviam sido arremessados sobre o bar. Peter e Lorena sobre a mesa do DJ, com Peter tendo protegido Lorena do impacto com o seu corpo maior, ao envolvê-la em um abraço de modo a formar um casulo ao redor dela. Hunter estava caído ao seu lado e também atordoado, e Castelo permanecia de pé, perto da entrada explodida, e as suas asas estavam erguidas em posição de ataque, como as asas de um galo de briga.

— Parece que temos um anjo elemental do ar — Hunter comentou com um grunhido, enquanto virava sobre o próprio corpo e apoiava as palmas no chão para assim levantar.

Como dito antes, anjos e demônios tinham poderes, mas nada muito elaborado e geralmente envolvia o controle dos elementos da natureza: água, terra, fogo e ar. Anjos eram mestres em dominar o fogo, demônios mestres da água. Habilidades desenvolvidas por causa da evolução natural da espécie e do ambiente que eles habitavam. Anjos também voavam e demônios, para não ficarem para trás em questão de locomoção, haviam adquirido uma bizarra habilidade de usar as sombras para viajar. Ao menos Lorenzo achava ser as sombras, porque sempre que estava caçando um demônio, era delas que eles surgiam.

Ou talvez eles apenas usassem as sombras como camuflagem, vai saber.

Agora, um anjo elemental do ar? Este era o primeiro que Lorenzo via, ou enfrentava. O primeiro que fazia sentido também, na concepção do caçador. Por que fogo e não ar? Visto que eram seres que voavam? Melhor deixar esta divagação para outra hora, isto sim, pois as asas de Castelo ficaram ainda mais eriçadas diante do comentário de Hunter e, quando o anjo deu um passo à frente, Lorenzo acordou o suficiente de seu torpor para recolher a PUMP caída em seu colo e atirar contra o primeiro-ministro. 

Obviamente que Castelo conseguiu desviar do tiro. Anjos eram velozes e tinham toda uma capacidade ‘a la Matrix’ para evitarem de ser atingidos. O anjo que Lorenzo abateu naquela manhã, e a manhã apesar de ter sido há poucas horas, pareceu ter ocorrido eras atrás diante de tanta coisa que aconteceu neste meio tempo. Então, o anjo que Lorenzo abateu naquela manhã foi um golpe de sorte. Com certeza a criatura não esperava que o caçador conseguisse acertá-la. Diferente do que a ficção gosta de transparecer, era extremamente difícil acertar um alvo em movimento. Mais difícil ainda quando o atirador em si também estava em movimento. Praticamente impossível se o alvo estava em alta velocidade enquanto em movimento.

Após o tiro, os anjos que flanqueavam Castelo chiaram, literalmente chiaram, diante deste ataque, e depois ganiram, curvando-se com todos os músculos do corpo enrijecidos, com as asas abertas (novamente, galos de briga), enquanto chamas subiam por suas mãos e braços, lambendo os membros como se estes tivessem sido mergulhados em um balde de álcool.

Lorenzo trocou um breve olhar com Hunter antes de ambos se jogarem para lados opostos assim que as chamas saíram das mãos dos anjos em jorros de fogo azul-alaranjado, e acertaram a parede onde eles estavam apoiados um segundo antes, deixando uma marca enorme carbonizada nesta e tinta derretida para trás.

Lorenzo rolou ao menos um metro pelo chão antes de levantar com um pulo, para logo depois agachar por instinto quando ouviu um ‘flush’ soar pelo clube, e um jato de chamas atingiu um ponto bem acima de sua cabeça. Ele não parou para ver o estrago que a parede sofreu, provavelmente foi igual ou pior do que o ponto de parede onde ele estava encostado antes, apenas continuou correndo até chegar com um deslize atrás de um sofá e usá-lo como escudo, enquanto usava o restante da munição ainda em sua arma, sobre os anjos.

Agora vamos a um pequeno momento de vivendo e aprendendo:

Balas de prata feriam lobisomens, se banhadas com acônito então, era morte na certa. Mas com anjos e demônios, era o cobre que surtia efeito.

E com anjos, curiosamente, surtia mais efeito cobre banhado com água benta. Gloriosa ironia. E nem precisava ser água benzida por padres. Qualquer ritual de benção, vindo de qualquer religião, feito por qualquer pessoa, tinha o mesmo efeito. Por isso que, quando o último cartucho da PUMP de Lorenzo atingiu a coxa de um dos anjos e ele guinchou, Lorenzo quase fez uma dança da vitória. Em vez disso, ele simplesmente trocou a PUMP pelas semiautomáticas presas no coldre às suas costas.

— Lorenzo — Lorenzo virou com um pulo diante do chamado, apontando o cano de suas armas na direção em que veio a voz, e viu Peter e Lorena surgirem das sombras ao seu lado — Cuide da minha irmã — foi a única coisa que Peter disse, enquanto Lorena agachava-se ao lado do caçador, usando o sofá como cobertura, e então o sucessor pôs-se de pé, com as costas eretas e peito estufado, em toda a pompa e elegância que a sua posição lhe dava. Pequenos flocos de gelo giravam ao redor de seus braços, como um mini-tornado de neve, desciam pelos membros em uma carícia quase sensual, acumulando-se nas palmas abertas de Peter e solidificando e estendendo-se até tomarem o formato de duas espadas que mais pareciam ser feitas de cristal do que água em estado sólido.

— Peter! — Lorena chamou em um tom irado quando viu o irmão abandonar a cobertura do sofá, porém Peter a ignorou por completo, indo em direção a Castelo, que estava engajado em uma batalha com Hunter e o mestiço, obviamente, estava perdendo. 

Hunter era bom em combate corpo-a-corpo, Lorenzo testemunhava isso pela primeira vez naquela noite no Por Una Cabeza. Apesar de maior e mais musculoso, em comparação ao caçador, Hunter era ágil e de golpes certeiros e poderosos. Castelo já apresentava algumas feridas na pele visível de seu rosto, resultado dos socos que o acertaram, porém o primeiro-ministro tinha a vantagem de ser um elemental do ar e ao que parecia não era um completo ignorante na arte de defesa pessoal. Na verdade, quando o anjo usou a própria asa esquerda para dar uma rasteira poderosa em Hunter, abrindo uma brecha de vulnerabilidade e ao mesmo tempo terminando com triunfo aquele combate ao derrubar o adversário, ficou claro que Castelo tinha um vasto conhecimento na arte, era bem verdade.

— Diga-me uma coisa — Lorenzo falou para Lorena quando viu os outros anjos, que antes tinham recuado surpresos por causa do companheiro ferido, se recuperarem do choque e aproximarem-se cautelosos de onde o caçador e a demônio estavam, dois dos anjos estavam com as asas envergadas em posturas ameaçadoras de ataque — Diga-me que você sabe fazer aquele hócus pócus com o gelo, como o seu irmão.

— Seis anos entre os humanos me deixou enferrujada — Lorena respondeu quando os anjos atacaram, Lorenzo somente reagiu, atirando a esmo para atrasá-los, fechou os dedos no pulso da demônio ao seu lado e com um puxão e um pulo, tirou ambos de trás do sofá.

Lorenzo continuou a apertar o gatilho a cada inspirada e expirada de ar, puxando Lorena consigo e tentando colocar a maior distância possível entre eles e o adversário, mas o Por Una Cabeza não possuía muitos metros quadrados em tamanho e a soma de bar, pista de dança, palco e área social complicava o deslocamento deles. Além disto, Castelo não estava apenas empenhado em seu embate com Peter, que tomou o lugar de Hunter quando este foi derrubado no chão, ele também estava controlando as correntes de ar dentro do clube, de modo que as balas ou eram desaceleradas, ou desviadas de seu percurso, não atingindo nenhum dos anjos que investia contra eles. Lorenzo parou de atirar ao perceber este fato. Por mais que a sua calça cargo guardasse munição extra nos vários bolsos costurados em suas pernas, essas não eram eternas.

Rosnados vieram da direita de Lorenzo e ele viu Bee e os seus seguranças empoleirados na bancada do bar, com os olhos escurecidos por causa das pupilas extremamente dilatadas, dentes afiados à mostra em um gesto de desafio, e as garras alongadas.

— Bee também? — Lorenzo comentou, surpreso, ao ver que Bee estava entre os demônios com presas e garras prontas para o ataque. Peter havia explicado que um mestiço que passava muito tempo entre os demônios, desenvolvia mais o seu lado demoníaco do que o humano, mas Bee? Bee parecia absurdamente normal para ter qualquer traço demoníaco. Nem tão bonito assim ele era. 

— É para isto que serve o Por Una Cabeza — Lorena explicou — Para demônios manterem contato com os seus e assim não se perderem para a humanidade. O clube seria um pequeno covil, longe do covil. E Bee está aqui  todo o santo dia — dava para ver, pelo modo com que ele deu um salto acrobático e aterrissou de quatro, na frente dos anjos, que Bee tinha contato pleno com o covil e todo o seu lado demoníaco desenvolvido. Essas criaturas também eram ágeis e extremamente graciosas, como os gatos.

Estava aí uma boa comparação.

Belos, ágeis e arredios, como gatos.

Os anjos recuaram diante desses novos adversários, mas não baixaram a guarda e muito menos pareceram intimidados.

Lorenzo nunca havia testemunhado uma briga entre anjos e demônios, e confessa que era algo belo de se ver, mas, ao mesmo tempo, extremamente mortal. Era um embate de garras e gelo contra asas e fogo.

As asas dos anjos eram o ponto mais vulnerável de seus corpos, mas também eram os membros mais poderosos e um anjo bem treinado e destemido poderia usá-las como arma. E elas eram grandes e pesadas. Levar um bando de penas na cara não era para qualquer um. 

Quando um dos anjos tentou levantar voo, mesmo dentro daquele espaço fechado, Bee deu um salto mortal de causar inveja a um ginasta, deu um salto preciso e poderoso, como o de um gato, e pousou nas costas do anjo. Na verdade Bee pendurou-se na asa do anjo com uma das mãos, usando as suas garras como âncora e deixou o peso de seu corpo mais a gravidade fazerem o resto do trabalho, e então ele começou a deslizar ao longo da asa e as suas garras abriram talhos profundos e dolorosos no membro, causando uma chuva de penas sobre eles. O anjo foi ao chão com força e Lorenzo ouviu alguns ossos quebrarem no impacto, e então Bee ergueu-se triunfante sobre a sua presa caída e sorriu presunçoso para os outros anjos que guincharam diante da derrota do colega, os convidando de forma provocativa a fazerem o mesmo, os convidando a atacar porque Bee estava pronto para um novo round

E os anjos atacaram, aceitaram o desafio, bufando como feras enjauladas e enfurecidas, gritando como aves de rapinas prestes a dar o bote, e quando os jatos de fogo que eles invocaram transformaram-se em bolas de fogo, a coisa toda saiu de controle.

Isto se, em algum momento, elas estiveram sob controle.

Uma das bolas atingiu a estante de bebidas atrás da bancada do bar, todas garrafas com teor alcoólico e, portanto, altamente inflamável, e as chamas se espalharam com tamanha velocidade, alimentadas por álcool o suficiente para encher o tanque de uns trinta carros, que quando Lorenzo viu, ele não lutava mais contra anjos, mas sim contra as chamas, enquanto tentava levar Lorena para a única saída que tinha o caminho livre dos detritos da briga: a entrada explodida por Castelo. Porém não foram muito longe porque assim que se aproximaram o suficiente da porta destruída, uma poderosa rajada de vento arremessou Lorena e ele de volta para dentro da boate.

Lorenzo deslizou pelo chão por uns bons metros, o ataque, o voo raso e súbito impacto contra o solo o fez perder as suas armas e o contato com Lorena. As chamas aumentavam ao seu redor e o calor gerado por elas fazia suor descer por sua testa e entrar em seus olhos, turvando a sua visão por causa das lágrimas que escorriam deles.. A fumaça começava a irritar o seu nariz e garganta e, lacrimejando e tossindo, Lorenzo virou a tempo de ver um anjo surgir de entre as chamas e pousar em cima dele, o segurar pelo pescoço e o erguer do chão.

Lorenzo tossiu mais ainda, tentou respirar entre a pouca brecha que o aperto oferecia, segurou o braço que o esganava com uma mão e com a outra mão livre, puxou a faca de caça que sempre carregava no suporte preso ao cós de sua calça, e a enterrou até o cabo no antebraço do anjo. O grito de dor que o anjo soltou, enquanto recuava segurando o braço ferido, fez um zumbido ecoar nas orelhas de Lorenzo e o caçador também recuou aos tropeços assim que foi solto, tentando recuperar o equilíbrio e o ar, mas o oxigênio dentro do clube estava sendo queimado pelo fogo e o idiota do Castelo, ainda brigando contra Peter, não ajudava a situação espalhando mais ar sobre as chamas, as alimentando e as alastrando com mais rapidez. 

Outro anjo surgiu de entre o fogo, tomando o lugar do primeiro, furioso e sibilando, mas não chegou muito perto de Lorenzo para concluir o seu ataque porque tiros soaram sobre o barulho de coisas explodindo por causa das chamas, e Hunter apareceu como um príncipe de contos de fadas, faltando apenas o cavalo branco, com as armas que Lorenzo perdeu em punho e esvaziando os pentes dessas sobre os dois anjos que foram recuando, feridos e confusos, quando de repente uma parte do forro do teto soltou e caiu sobre os anjos em uma chuva de espuma isolante, gesso e chamas, sumindo com as suas criaturas do campo de visão de Lorenzo. 

— Hora de partir —  Hunter puxou Lorenzo pelo braço e eles passaram por Lorena, que ajudava um Bee ferido a se levantar. A perna dele sangrava e os seus seguranças não estavam em nenhum lugar à vista.

—Levem-no! — Lorena praticamente jogou Bee sobre Lorenzo — Eu preciso encontrar o meu irmão! — e Lorenzo pensou em protestar, mas um olhar de Lorena o fez ficar quieto. Era um olhar que dizia que ela faria isso, iria se aventurar dentro de um prédio em chamas a procura do irmão, e não estava pedindo a autorização de Lorenzo, estava apenas informando o fato.

— Te encontro lá fora! — Lorenzo respondeu em um grito, porque tudo era uma cacofonia de sons de coisas estalando, quebrando, soltando de suas bases por causa das pequenas explosões que ocorriam ao redor deles, e colocou um braço de Bee por sobre os seus ombros, começando a carregá-lo pelo longo e tortuoso caminho que seria até a porta — Aqui não tem saída de emergência? — perguntou. Porque se não tivesse, como é que os bombeiros aprovaram a abertura daquele estabelecimento?

—Claro que tem! — Bee também gritou, para fazer-se ouvir. Mesmo estando próximo a Lorenzo, a zona era tão grande que era praticamente impossível ouvir os próprios pensamentos — Mas está do outro lado do salão, entre o fogo e os anjos enfurecidos — a resposta final de Bee foi abafada por uma explosão e eles instintivamente se abaixaram para evitar que detritos voadores os acertasse na cabeça. Quando levantaram e Lorenzo olhou para trás, foi para atestar uma coisa que fez o seu coração parar no peito por um segundo.

— Onde está Hunter? — porque Hunter estava ao seu lado quando Lorena apareceu com Bee a tira colo, portanto Lorenzo acreditou que o mestiço o seguia a caminho da saída. Bee também olhou para trás e arregalou os olhos.

— Ele estava atrás de nós, não estava? — Bee questionou, mas o seu tom não era de muita certeza. Ele não se lembrava de ter visto Hunter os seguir apenas presumiu, como Lorenzo, que o outro homem os acompanhava. Lorenzo assentiu e fez menção de soltar Bee e ir atrás de Hunter, mas o meio-demônio o impediu — Hunter já esteve aqui várias vezes. Ele conhece todas as saídas, não apenas as de emergência. Vamos! — Lorenzo hesitou por um segundo, porém outra explosão o incitou a continuar o caminho para a porta, carregando Bee com ele, e estavam quase chegando na saída e conquistando a sua liberdade, se não fosse um único problema:

Castelo surgiu como uma aparição na frente deles, bloqueando a passagem, e o primeiro-ministro parecia ter visto dias melhores, porque a aparência dele era horrível.

As asas de Castelo tinham partes congeladas, estavam depenadas em alguns pontos, desgrenhadas em outros, e ele sangrava por causa de um ferimento no ombro esquerdo. O seu terno de alfaiataria estava rasgado e sujo de fuligem, assim como o seu rosto pálido agora era cinzento por causa dessa mesma fuligem que misturava-se a uma trilha de sangue e suor que escorria de um corte em sua bochecha esquerda, até o queixo. O cabelo imaculado em todas as vezes que Lorenzo teve o desprazer de encontrar o anjo, agora estava despenteado e o primeiro-ministro tinha uma arma nas mãos e esta estava apontada para Lorenzo e Bee. 

E desde quando os anjos usavam armas humanas? Coisas que eles consideravam primitivas e desnecessárias?

— Dê-me o mestiço, caçador, e ninguém se machuca — Lorenzo quis rir em deboche diante da ameaça clichê do anjo, mas se segurou a tempo, pois a risada lhe causaria um acesso de tosse ao invés de passar a mensagem desejada. Castelo realmente achava que Lorenzo engoliria esta? ‘Dê-me fulano e ninguém se machuca’. O anjo achava o quê? Que Lorenzo nasceu ontem? Que idiota. 

Felizmente Lorenzo não precisou bolar nenhum plano de fuga doido, pois a perna de uma mesa acertou Castelo da têmpora, abrindo outro ferimento para fazer par com o primeiro na bochecha, e o anjo foi ao chão como um peso morto, cedendo visão para Peter, que estava às costas do primeiro-ministro e era um bálsamo para os olhos de Lorenzo, mesmo com o demônio estando sujo, ferido e com a perna quebrada de uma mesa nas mãos, a qual ele largou para ajudar Lorenzo a carregar Bee para fora do clube.

— Onde estão Lorena e Hunter? — Lorenzo perguntou para Peter assim que eles sentaram Bee no meio-fio da calçada oposta ao Por Una Cabeza. Com sorte o meio-demônio encontrou com os seus companheiros perdidos, tenha visto eles saírem do meio daquela confusão. 

— Eu os perdi no meio da confusão — Peter respondeu, o que não acalmou o coração acelerado de Lorenzo devido aos acontecimentos da última hora, e deu um relance por sobre o ombro quando as janelas do andar superior do prédio explodiram e chamas saíram por elas.

— Meu apartamento! — Bee gemeu e prontamente calou a boca quando Lorenzo deu a ele um olhar de desagrado. Eles tinham coisas mais importantes com o que se preocupar, como o fato de que Lorena e Hunter estavam desaparecidos, e Bee ficava se lamuriando por causa de um maldito apartamento? O seguro cobriria a bosta do prejuízo. 

— Você não pode apagar o fogo? — Lorenzo perguntou para Peter, que fez um não com a cabeça.

— Nós não criamos os elementos que controlamos, nós usamos o que já existe. Neste caso, extraímos a água das partículas que flutuam no ar. Quanto maior o índice de umidade relativa do ar, melhor para nós. Perdi os meus poderes no segundo em que o ar tornou-se seco demais por causa do fogo, e o calor começou a me desidratar. Mas, mesmo assim, — Peter virou na direção do prédio, com toda a intenção de retornar, pois sendo um mestiço ele teria mais chances de sobreviver ao fogo, porém uma última e violenta explosão fez o edifício inteiro ser consumido pelas chamas.

Lorenzo sentiu algo morrer dentro de si ao presenciar a cena, ao chegar à conclusão óbvia de que eles eram os únicos sobreviventes e então ele percebeu que foi o seu coração. O seu coração que morreu junto com Hunter e Lorena.

 

oOo

 

QUANDO A POLÍCIA E OS BOMBEIROS finalmente chegaram ao clube, este era apenas uma carcaça queimando, com nada mais para contar história ou ser identificado, e Lorenzo, Peter e Bee já tinham sumido da cena do crime fazia tempo.

— Você é realmente cheio de surpresas — Lorenzo disse apático, enquanto apoiava Bee contra o seu corpo e via Peter abrir a porta do jipe de Hunter com um par de arames encontrado no lixo. Em seguida, ambos ajudaram Bee a entrar no carro e esticar-se no banco de trás, com os restos mortais da jaqueta do terno de Peter amarrada em sua coxa e comprimindo o seu ferimento.

Peter abriu a porta do motorista e Lorenzo nem ao menos o questionou, somente deu a volta no carro e entrou pelo lado do carona. Minutos depois, o motor foi acionado por mais um dos talentos ilegais de Peter e eles deixaram o estacionamento a três ruas de distância do clube, de onde ainda podiam ver, por cima dos outros prédios, o clarão do incêndio.

Depois disto, a viagem, sabe-se lá para onde, seguiu em silêncio. E embora Lorenzo soubesse que era uma má ideia estar em um carro com dois mestiços, no momento ele não estava nem aí. O seu corpo todo estava dormente e ele nem sabia direito o por quê. Não era a primeira vez que ele perdia alguém querido em combate e os anos o ensinaram a como compartimentar as suas emoções, pois esta vida não era uma que lhe garantia chegar à velhice. Poucos conseguiram tal façanha. Mas, de alguma forma, ainda doía.

E o que fazia Lorenzo se sentir pior ainda era que boa parte de sua tristeza não era nem por causa da morte de Lorena, alguém com quem ele conviveu com muito mais frequência em comparação a Hunter. 

A bela Lorena. Tão inteligente, tão vivaz, que estava lhe fazendo um favor porque Lorenzo era cretino o suficiente para depois de todos esses anos ainda esfregar na cara dela que ela o devia. Não, lhe doía mais a perda de Hunter, de quem ele não deveria nem sentir a falta, mas era mais fácil dizer do que fazer. Por mais que quisesse negar, Hunter ainda mexia com ele, de uma maneira ou de outra. Lorenzo achou que esses sentimentos tinham desaparecido com o tempo, mas a verdade era que eles estavam apenas adormecidos, esperando o momento certo para retornarem como um soco na boca do estômago.

Uma mão afagando o seu cabelo assustou Lorenzo, que virou para ver que Peter tinha uma mão no volante e outra na cabeça dele, em um gesto de conforto. Pelo retrovisor interno, Lorenzo viu que Bee dormia no banco de trás, e ressonava baixinho.

— A escolha foi de Lorena — Peter disse em um sussurro, recolhendo a mão e a voltando para o volante — A escolha sempre foi de Lorena, as certas e as erradas. Não se culpe pela morte dela — era um pedido difícil de acatar. Porque a culpa que Lorenzo sentia não era por ter metido Lorena nesta confusão, mas sim por não estar suficientemente deprimido, como deveria estar, pela morte dela. Lorena deveria ter prioridade em seu coração. A conhecia mais tempo, eles tinham uma ligação, mesmo que de interesse, então ele deveria ao menos chorar por ela e não ter vontade de chorar por Hunter.

Mas ele tinha, só de lembrar que perdeu Hunter, Lorenzo queria encolher-se sobre o banco, abraçar os joelhos e chorar como uma criança. Chorar da mesma forma que chorou, de forma livre e desimpedida, quando a sua mãe morreu. Mas ele não era mais uma criança e tinha maior controle sobre as suas emoções e reações. Então, tudo o que fez foi engolir o bolo entalado em sua garganta e perguntar ao mestiço ao seu lado:

— Como você não pode estar abalado? — porque Peter continuava a ser um poço de calma e isto estava limando aos poucos a apatia dentro de Lorenzo e a substituindo por irritação.

Peter apenas sorriu graciosamente para Lorenzo, que quis dar um soco na cara do mestiço, qualquer coisa para desfazer aquela compostura de lorde que o meio-demônio sustentava com perfeição.

— Sabia que as minhas tentativas de encontrar Lorena foram quatro? — Peter disse e o tom dele era de uma leve tristeza, associada a nostalgia — E depois da quarta tentativa eu resolvi parar porque o recado dela me foi bem dado. Mas isto não quer dizer que eu esqueci da minha irmã — continuou deu um relance pelo retrovisor e Lorenzo não soube dizer se ele olhou para Bee dormindo, para certificar-se de que o primo estava bem, ou para a rua vazia atrás deles.

— Como assim? — Lorenzo perguntou e Peter deu outro relance pelo retrovisor e, desta vez, o caçador teve a certeza que o mestiço olhava para Bee — Abelardo? Abelardo sabia quem era Lorena? Ele era o quê? O seu informante sobre o que acontecia ou deixava de acontecer com ela? — porque Lorena nunca mais reclamou de guardas de sua família a perseguindo, depois da quarta tentativa, onde o próprio Lorenzo a ajudou a mandar o dito recado para os demônios. Aquele que dizia que Lorena queria ser deixada em paz.

Peter não o respondeu, não de forma direta. 

— Sabe o quão surpreso eu fiquei ao saber que Lorena se associou a um Caçador? A um Cipriani, ainda por cima. Lorena foi muito esperta ao usar você como cão de guarda.

— Como é? — Lorenzo disse, ofendido, e Peter deu a ele um breve olhar e um pequeno sorriso.

— Não me entenda mal, Lorena gostava de você, mas com certeza não se aproximou de você unicamente pelo seu charme — o mestiço disse com um tom de divertimento permeando a sua voz. Ele teve um gostinho do dito ‘charme’ de Lorenzo e este era explosivo. 

De certa forma, Lorenzo sabia disto, sabia que era uma via de mão dupla entre Lorena e ele. O caçador a usava para conseguir informações entre os demônios, a usava como espiã e informante. Lorena o usava como escudo para afastar qualquer ameaça. Um cão de guarda. Era um acordo silencioso que eles tinham e extremamente benéfico, mas que, quando Peter o mencionava em voz alta, parecia completamente escuso.

— O meu pai não aceitou Lorena, mas ele nunca a deserdou. Oficialmente, ela ainda era da realeza, e portanto visada.

— Você reparou que está usando o verbo no passado para se referir a Lorena? — porque Lorenzo ainda não queria assimilar tudo o que aconteceu naquela última hora.

Peter ficou em silêncio e a sua expressão finalmente deixou de ser a expressão calma que estava irritando Lorenzo. Agora Peter estava com a testa franzida e apertava o volante com força o suficiente para marcar o couro que o forrava.

— Eu prefiro encarar a realidade agora do que ficar sofrendo na ilusão — Peter disse com uma expressão séria e com um leve tom de dor em sua voz.

— Para onde estamos indo? — Lorenzo perguntou depois de um tempo de silêncio e ao ver através da janela que eles estavam chegando aos limites da cidade.

— Verona.

— Isto são umas seis horas de viagem. Por que estamos indo para lá?

— Porque eu deixei Gabriel com uma pessoa de confiança e preciso buscá-lo, levá-lo para um local seguro.

— Gabriel? — Lorenzo perguntou e recebeu um breve olhar de Peter que dizia: ‘quem você acha que é Gabriel?’ —  Você deu o nome de um arcanjo para o seu filho meio demônio? — Peter sorriu de um modo, como se a lembrança da nomeação de Gabriel fosse algo doloroso e, ao mesmo tempo, feliz.

— Acqua deu este nome para ele. Gabriel foi o mensageiro de Deus na Bíblia e ela acreditava que ele traria uma mensagem de paz para os anjos e os demônios.

— Mas você não acredita nisso, não é mesmo? Se acreditasse, teria levado Gabriel para o seu covil para protegê-lo, em vez de ficar usando território humano para brincar de pique-esconde com Castelo e os seus capangas — Lorenzo acusou e Peter franziu os lábios e apertou mais uma vez o volante.

— O meu pai não é tão crédulo assim, diferente da soberana Estrela, mas eu esperava que, com Estrela tomando a iniciativa para as negociações de paz, eu conseguiria convencê-lo de maneira a chegar a um acordo. Gabriel era o nosso trunfo com Estrela.

— E ele ainda pode ser. Vamos levá-lo ao QG do meu clã, entrar em contato com Estrela…

— E dizer o quê? Que o anjo de confiança dela foi quem matou Acqua? Ela não acreditaria em uma palavra nossa porque, para começo de conversa, os caçadores nem deveriam estar envolvidos nesta história, e quem poderia ter alguma chance de conversar com ela e mostrar as provas está morto — uma pontada de dor surgiu no peito de Lorenzo ao ser lembrado da morte de Hunter. Por um segundo, a conversa entre Peter e ele fez Lorenzo esquecer por um momento os últimos acontecimentos, arquivá-los no fundo de sua mente como lembranças de um terrível pesadelo. Peter fez o favor de recordá-lo, de forma dolorosa e fria, de que tudo foi real. 

— Você mesmo disse que foi Castelo quem contratou Hunter…

— Com a aprovação de Estrela. A soberana pode não saber da história por completo, ou que Castelo é um filho da puta preconceituoso, — Lorenzo ficou surpreso ao ouvir o palavrão sair da boca do sucessor. Conhecia Peter há pouco tempo, mas ele passou a impressão de ter mais classe do que isto. Aparentemente, este não era o caso — mas ela sabia o suficiente para autorizar o envolvimento de Hunter neste caso e descartar os caçadores. Agora Hunter está morto e eu não vou ficar parado esperando os seguidores de Castelo, aqueles que compartilham do mesmo preconceito que ele, virem atrás do meu filho — Peter finalizou de forma acalorada. Aparentemente o sucessor era capaz sim de perder o controle de suas emoções, especialmente quando o assunto envolvia a vida do filho estar em risco, e por isso Lorenzo ficou quieto. Até porque, não tinha argumento contra as palavras de Peter, pois essas eram completamente sensatas.

A única prova que eles tinham de que Castelo foi o responsável pela morte de Acqua, ao invés de um demônio, era um exame de laboratório e o testemunho de Peter, que a soberana Estrela jamais ouviria, mesmo com Gabriel sendo uma carta na manga. Estrela não quis, desde o começo, ter os caçadores envolvidos neste assunto, queria vingança e sempre soube que os caçadores não atenderiam às vontades dela sem provas concretas de que realmente Acqua morreu pelas mãos de um demônio. Portanto, iludida e movida pela dor, Estrela ignoraria qualquer prova que os Cipriani apresentassem dizendo o contrário.

Na cabeça da soberana um demônio matou a sua filha e nada a demoveria desta ideia. Até porque foi Castelo, com certeza, que primeiramente colocou aquela ideia lá. Castelo em quem ela deveria confiar de forma cega. Sem contar que, por causa dessa negação, ela já estava se preparando para uma guerra, o que lembrou Lorenzo:

— O seu pai sabe que está prestes a sofrer um ataque frontal de uma armada de anjos? —  Peter retesou os ombros em um clássico gesto de culpa — Peter! Eles serão pegos desprevenidos, haverá um massacre! O covil precisa ser alertado disto!

— Na verdade eu esperava resolver isto antes que o pior acontecesse — Peter se defendeu.

— E este plano está funcionando para você? — Lorenzo acusou, não acreditando na ingenuidade de Peter. E o sucessor que pareceu tão composto antes, tão certo de si, agora demonstrava pura insegurança e incerteza sobre os seus planos e atos, e isto fez Lorenzo perceber o quão jovem Peter realmente era.

Anjos e demônios, apesar dos poderes, de serem criaturas sobrenaturais, não eram imortais. Eles envelheciam, tinham expectativas de vida como os humanos, mas essas eram expectativas absurdamente longas comparadas à humana. Essa era a razão dos anjos e demônios chamarem a raça humana de ‘mortais’, porque eles poderiam viver para ver gerações de uma única família humana nascer, crescer e morrer, por isso do erro de Lorenzo.

À primeira vista, Lorenzo pensou que Peter fosse mais velho do que ele devido ao seu físico bem desenvolvido, talvez da mesma idade que o seu irmão Marcelo, mas Lorena tinha vinte e oito anos e era a primogênita de Elias sendo Peter era o segundo filho. E agora que observava melhor, Peter parecia ter na verdade entre vinte e vinte e dois anos. O rosto dele ainda continha um pouco da gordura infantil em suas bochechas e nenhuma marca de expressão. Peter era uma criança e a postura de maturidade que ele empunhou mais cedo era mera fachada. Peter provavelmente tinha a maturidade mental de seu irmão Alessandro, de dezenove anos. Misericórdia! E isto, em contagem demoníaca ou angelical, era praticamente ser uma criança. Pelas leis de sua raça, nem ao menos maior de idade Peter era.

— Eu preciso falar com a minha família — Lorenzo suspirou e coçou os olhos com as pontas dos dedos, pois uma dor de cabeça por causa do estresse começava a incomodá-lo — Eles precisam avisar ao regente Elias sobre o que está acontecendo.

— Lorenzo…

— Não, Peter! — Lorenzo o interrompeu com rispidez — O seu plano, até agora, foi uma bosta, então de agora em diante nós faremos as coisas conforme o meu plano!

— Que é? — Peter perguntou com um suave tom de petulância em sua voz, provavelmente porque não gostava da ideia de ser contrariado em suas ordens.

— Eu ainda estou pensando — Lorenzo respondeu com um muxoxo e Peter riu, desfazendo a cara amarrada.

— Por que você não dorme um pouco e assim coloca as suas ideias brilhantes no lugar? — Peter sugeriu, com um ligeiro tom de provocação, e Lorenzo só seguiu a sugestão dele porque a adrenalina estava diminuindo dentro de seu organismo, o fazendo reconhecer as dores e os hematomas que a última batalha deixou em seu corpo, e o cansaço começava a pesar em sua mente, pesar em suas pálpebras. O seu cérebro queria desligar e recarregar e, com isto, Lorenzo ajeitou-se sobre o banco da melhor maneira possível e fechou os olhos.

No segundo seguinte, ele já dormia.


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