Gabriel escrita por Bella P


Capítulo 7
Capítulo 6




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O SEGURANÇA NEM VIU DE onde a pancada veio e talvez amanhã não acordasse com uma enxaqueca e uma boca inchada e roxa se não tivesse se metido no caminho de Lorenzo.

O plano era simples: invadir e conquistar. Um plano que Hunter não aprovou e tentou impedir Lorenzo várias vezes, enquanto eles atravessavam a rua, mas Lorenzo estava no módulo caçador e a opinião de Hunter sobre o assunto podia ir para o inferno.

Os demônios na fila não perceberam a aproximação deles até o momento em que Lorenzo simplesmente os ignorou e foi direto para a porta, com toda a intenção de entrar. E foi então que os protestos começaram diante deste abuso.

— Você tem passe? — o segurança era o típico segurança de boate: enorme, tatuado e com a cara amarrada. O sujeito espalmou a mão sobre o peito de Lorenzo, impedindo a sua passagem, e Lorenzo olhou da mão em seu peito para o homem na sua frente, cujos olhos brilharam em um tom amarelado sob a luz das luminárias da rua.

— Lobisomem? — Lorenzo deu uma risada curta — Isto facilita as coisas — E acertou a coronha da sua PUMP no rosto do homem, que caiu como uma fruta madura cai do pé. Lobisomens eram oito ou oitenta. Na forma amaldiçoada, eram animais irracionais e sedentos por sangue e entranhas de humanos desavisados. Na forma humana, eram criaturas bem resistentes, mas uma única pancada bem empregada os derrubava de vez. Eles tinham ‘queixo de vidro’.

Gritinhos histéricos vieram da fila e alguns demônios correram para longe, outros olharam para Lorenzo, sem saber como direito como reagir, divididos entre fugir ou entrar na boate agora que não tinha ninguém bloqueando a porta.Para Lorenzo, o que essas criaturas decidissem não fazia a mínima diferença, porque ele entrou na boate, com Hunter ainda em seu encalço e repetindo que aquilo era uma péssima ideia.

Engraçado, ele tinha uma lembrança diferente de Hunter. O mestiço sempre pareceu durão e casca grossa, e a sua fama de mau o precedia. E Lorenzo lembrava do comportamento cabeça fria e maduro do meio-demônio quando este o ajudou a caçar aquele wendigo. Hoje o que havia ao seu lado era apenas um sujeito irritantemente reclamão. 

— Hunter! — Lorenzo gritou para se fazer ouvir sobre o barulho da batida eletrônica da música, calar a boca do mestiço resmungão, enquanto percorria com os olhos todos os cantos da boate, à procura de algo específico — Onde está o seu espírito aventureiro? — soltou com deboche e ao achar o que queria, atirou.

A caixa de som ao lado da picape do DJ estourou em faíscas no segundo seguinte em que o projétil alojou-se em sua fiação, e a música deu um sobressalto em sua batida antes de morrer de vez. Um silêncio mórbido caiu sobre o ambiente, porque até mesmo as conversas cessaram diante desse estranho acontecimento. Todos entreolharam-se, tentando entender o que aconteceu, até que alguns olhares das pessoas mais próximas a Lorenzo caíram sobre ele, mais especificamente sobre a arma que havia em suas mãos.

Lorenzo sorriu para um casal de demônios fêmeas próximo a ele, ergueu novamente a sua arma, a apontou para o teto e disparou.

Todos encolheram-se diante do estampido e olharam para Lorenzo, assustados.

— Todos para fora. Agora! — e enfatizou a ordem com outro tiro para o alto.

 A reação foi imediata e Lorenzo tinha que confessar que não achou que o seu plano fosse funcionar por completo, mas observou satisfeito demônios tropeçarem uns nos outros para saírem o mais rápido possível dali.

— O que você pensa que está fazendo?! — a voz histérica de Bee veio da sua direita e Lorenzo virou com um enorme sorriso sacana no rosto, quando o mestiço aproximou-se o suficiente dele e cercado por quatro seguranças com garras à mostra e os dentes pontiagudos aparecendo sob os lábios arreganhados.

Esses leões de chácara, diferente daquele na porta, eram demônios. Portanto, mais difíceis de derrubar. 

A transformação deles era algo sutil. Não havia alteração nos músculos e ossos da face, ou na coloração dos olhos, porque esses já tinham cores naturalmente diferentes, o que havia era somente o alongamento das pontas dos dentes, criando uma fileira de presas, e o crescimento das unhas, transformando-se em garras. E ainda sim, mesmo com o visual anormal, eles ainda eram perigosamente belos. 

— Eu estava na vizinhança e resolvi passar por aqui para dar um oi — Lorenzo sorriu inocente para Bee, cujo rosto estava ganhando tons púrpuras de ódio — Oi — e Bee rosnou e avançou sobre Lorenzo, com o punho fechado e em riste, porém Hunter impediu o seu ataque, segurando-lhe o braço com mais força que o necessário.

— Bee… — Hunter soltou o punho de Bee, que recuou bufando de raiva — Nós pedimos desculpas pela súbita invasão — Lorenzo arqueou uma sobrancelha para o mestiço. Com os outros Hunter era pura polidez, praticamente um lorde de tão bem educado que era. Com Lorenzo era sarcasmo regado a sedução barata. Nossa! Lorenzo sentiu-se especial agora, só que não. 

— Eu não — o caçador respondeu de forma pedante e alargou o sorriso zombeteiro, só para irritar Bee — Eu não me sinto culpado — completou e Hunter o olhou com estranheza, como se fosse a primeira vez que via Lorenzo em toda a sua vida, o que corroborou com a teoria que sustentava até agora

Lorenzo esteve certo este tempo todo: Hunter ainda o via como o garoto tolo de dezesseis anos, inexperiente na caçada, assustado e apaixonado pelo jovem misterioso que salvou a sua vida. Lorenzo deixou de ser tolo há muito tempo. Apaixonado? Não vamos conversar sobre isto agora.

— Você perdeu o juízo Cipriani? — Bee praticamente guinchou e Lorenzo arqueou uma sobrancelha para ele. Não lembrava, em nenhum momento de seu encontro com Bee pela manhã, de ter se apresentado para ele, de ter dito quem realmente era — Eu tenho testemunhas, câmeras de segurança, eu vou arruinar você e a sua família! — Bee literalmente cuspiu as últimas palavras, mas Lorenzo não se abalou em nada, apenas apoiou o cano de sua PUMP no ombro e inclinou a cabeça para o lado, como um filhote de cachorro curioso.

— Que testemunhas? —disse com um sorriso de escárnio.

Estava escuro demais naquele clube, ele agiu rápido demais, e qualquer ser vivo inteligente sob estresse não absorvia bem o cenário e acontecimentos a sua volta. Os clientes do clube saíram dali tão apavorados que se fossem relatar o acontecido à polícia, Lorenzo terminaria sendo descrito como um dragão de dois metros de altura que soltava bolas de fogo pelas patas. E quanto aos seguranças? A polícia nunca dava muito crédito aos empregados do acusador. Esses poderiam estar comprados.

— E que câmeras? — Bee ofegou e lançou um olhar para uma das câmeras de segurança na parede atrás de Lorenzo, e depois voltou o olhar para o caçador e o mirou como se ele estivesse louco. A reação do mestiço foi o seu primeiro erro e Lorenzo sacou a arma no coldre sob a sua jaqueta e atirou na dita câmera. Bee soltou um grito agudo de horror e, se não soubesse bem, Lorenzo diria que na verdade o homem era meio anjo ao invés de meio demônio. Os gritos dele assemelhavam-se aos gritos dos anjos. 

— Cipriani, não teste a minha paciência! — Bee ameaçou após recuperar-se deste susto e Lorenzo desfez o sorriso sacana que ostentava todo este momento, e guardou a arma novamente no coldre.

— Você que não teste a minha paciência abelhinha. Onde está Lorena?

— Quem? — Bee fez-se de desentendido e pulou, dando um gritinho semelhante ao grito de um gato que teve o rabo pisado, quando Lorenzo atirou com a sua PUMP na direção do bar e destruiu várias garrafas de bebidas. Garrafas que ele apostava serem caríssimas. — PARE DE DESTRUIR A MINHA PROPRIEDADE! — Bee gritou após recuperar-se deste novo susto causado pelo ataque repentino.

— O negócio é o seguinte: eu não posso atirar em você, então atiro no que é seu. E os seus capangas levarão a próxima bala que sair do tambor da minha arma, se derem mais um passo neste direção — Lorenzo alertou quando os demônios inclinaram-se para frente, ainda com posturas ameaçadoras, e arreganharam ainda mais os dentes.

— O Código dos Caçadores… — Bee parecia saber muita coisa sobre os caçadores, para alguém que pela manhã fez-se de otário e fingiu espetacularmente não saber quem Lorenzo era. 

— Não foi escrito em pedra como os Dez Mandamentos — Lorenzo interrompeu Bee — Está aberto a interpretações como, por exemplo, durante uma caçada a minha caça ter usado o seu clube como refúgio, sendo abrigada pelo seu dono, o que me obrigou a tomar atitudes drásticas para terminar o meu trabalho, e isto inclui destruir propriedade alheia e atirar nos seus leões de chácara que me atacaram sem provocação alguma.

— É mentira! — Bee soltou em um sopro de ar, completamente lívido, e agora tremia em uma mistura de pavor e ódio diante da implícita ameaça de Lorenzo e da calma com que ele a ofereceu. Hunter mirava o caçador novamente com aquela expressão como se não o conhecesse, como se fosse a primeira vez que encontrava com Lorenzo na vida. Que o rapaz que cruzou o seu caminho anos atrás era uma pessoa completamente diferente, o que era uma verdade. O que o meio-demônio pensou? Que Lorenzo seria o mesmo depois de anos? As pessoas mudavam, com certeza até o próprio Hunter mudou com os anos, Lorenzo só não sabia o quanto porque o Hunter que conheceu no passado foi uma mentira, o que lhe garantia que o de agora era o verdadeiro?

— É uma mentira, ou não — Lorenzo deu de ombros, inabalado — Que nome terá mais peso quando a história for contada? O meu, ou o seu? Agora, – e apontou a arma para o segurança mais próximo, mirando o cano bem entre os olhos do demônio que congelou em todos os seus movimentos – onde está Lorena?

— Somos cinco contra dois — Bee olhou venenoso para Hunter que, miraculosamente, após o ridículo pedido de desculpas, manteve-se quieto.

— Sabe o que também está no Código dos Caçadores? Se você cair, certifique-se de levar o maior número de caça contigo. Um caçador está sempre preparado para o pior — Lorenzo ergueu a arma na altura dos olhos e a desviou do segurança que havia congelado no lugar, para Bee, que estava branco como uma vela — Lorena, onde ela está?

— Aqui — Lorenzo deu um relance para o palco onde estava a picape destruída do DJ, e onde agora havia um novo demônio que segurava Lorena pelo braço — Ela está aqui.

 

oOo

 

O SUCESSOR PETER ERA UMA surpresa para Lorenzo, porque parecia que toda a boa genética dos demônios havia ido direta e unicamente para o sujeito.

Peter era alto como Hunter, usava um terno de caimento perfeito sobre os seus ombros largos, e o rosto dele era de traços retos e de formato retangular. Ele tinha uma covinha no queixo quase imperceptível, os olhos eram de um azul tão claro que ganhavam tons de verde, e, às vezes, cinza, ao refletirem as luzes coloridas da boate. O cabelo era loiro, em um tom meio dourado, meio castanho, curto e arrepiado. Ele era branco, mas não pálido como uma vela, ou avermelhado como uma mistura de ketchup com maionese, na verdade havia um tom dourado saudável em sua pele, e bem suave, como um bronzeado já desbotando, e os seus lábios eram um meio termo entre cheios e finos, e eram extremamente rosados.

Lorenzo estava impressionado com a imponência de Peter e talvez, somente talvez, um pouquinho atraído por ele. Hunter, obviamente, rosnou ao seu lado, porque o seu olfato de meio demônio deve ter captado todos os feromônios que Lorenzo emitia por causa de Peter.

— Você é muito tosco — Lorenzo disse com um rolar de olhos e uma coronhada nas costelas de Hunter, o que substituiu o rosnado dele rapidamente por um grunhido de dor. Novamente, Hunter não tinha cacife para ficar dando pitaco na vida amorosa de Lorenzo ou quem deveria atraí-lo ou não. Se não teve culhões para assumi-lo anos atrás, conforme confessou mais cedo ao declarar que fez o que fez porque Lorenzo era menor de idade e um Cipriani (e Lorenzo não engolia que esta era a única razão para ter levado um fora) não seria agora que iria tirar o atraso — Mas então Lorena, como anda a reunião de família? — o caçador perguntou. Lorena rolou os olhos, bufou, lançou um olhar irado para Peter ao seu lado e arrancou o braço de entre os dedos do demônio, ajeitando o cabelo e vestido logo em seguida. 

Lorena e Peter eram o dia e a noite. Ele era branco, ela era negra. A expressão de Peter dizia que ele era um demônio sério e comedido, Lorena era espalhafatosa e bon vivant. Lorena adorava a humanidade, viver entre os humanos, curtir todas as coisas que eles criaram em anos de evolução, desde a tecnologia, a cultura, ao entretenimento, a comida, Peter tinha a cara de alguém que a última coisa que queria na vida era pôr os pés na superfície, ou conviver mais do que o necessário com os mortais. E, mesmo assim, eles eram irmãos. Mães diferentes lhes deram características diferentes, mas a expressão de desagrado de ambos era idêntica.

E sim, Lorenzo sabia exatamente quem Lorena era e o seu passado.

Antes de Peter se tornar o primeiro sucessor, o herdeiro do trono, esta posição foi de Lorena. Mas Lorena não queria ser sucessor, ainda mais que na tradição dos demônios, e ao contrário dos anjos, eram os filhos machos que assumiam o trono.

Lorena era macho apenas fisicamente e o pai sabia disto, mas recusava-se a aceitar este fato. Por isto que Lorena fugiu para a superfície e obviamente que Elias mandou demônios atrás dela mas, macho ou fêmea, Lorena era uma lutadora excepcional e em uma de suas tentativas de fugir da guarda real, um humano foi pego no fogo cruzado. Foi assim que Lorenzo a conheceu, foi assim que a livrou de se tornar uma caça ao encontrar o demônio verdadeiramente responsável pela morte do humano, e o entregar para as autoridades especializadas.

Nem todos os demônios e anjos eram mortos para manter o equilíbrio, casos especiais envolviam autoridades, autoridades especiais constituídas e treinadas por Caçadores, ramificações da polícia que tinham conhecimento deste mundo e sabiam como lidar com essas criaturas. E também foi Lorenzo que escondeu Lorena até ela deixar de ser Luigi e tornar-se a Lorena de hoje.

Lorenzo ouviu falar sobre Peter das histórias de Lorena mas, sinceramente, a descrição dela não fazia jus ao demônio na sua frente.

— Por favor, não me diga que você armou tudo isto — Hunter arfou ao seu lado e Lorenzo deu a ele um sorriso falsamente inocente.

A ideia não era que Lorena conseguisse informação de Bee, mas sim que ela desse a Lorenzo uma razão para entrar no clube quebrando tudo. Tocar um pouquinho de terror no coração de Bee e colocar a conhecida insanidade dos Cipriani em teste. Principalmente dos irmãos Cipriani que sabiam ser dramáticos quando queriam. Carmem sempre dizia que eles todos deveriam ter sido atores, não caçadores. Peter ser envolvido na história foi um imprevisto que, aparentemente, estava se tornando um bônus.

— Como se Lorena realmente precisasse de um cavaleiro da armadura brilhante para salvá-la — Lorenzo brincou e Lorena sorriu arrogante para ele. A demônio sabia chutar traseiros e fazia isto com classe e sobre um salto quinze — E agora que estamos todos aqui, vamos conversar.

— Conversar?! — Bee guinchou — Eu vou chamar a polícia!

— É, chama a polícia sua besta, para eles verem o adorável estoque de beladona que você tem lá nos fundos — Lorena debochou e Lorenzo sorriu provocador para Bee, como se perguntasse silenciosamente o que ele faria agora.

— Abelardo — Peter falou com uma voz suave, como a de um tenor, e Lorenzo riu. O nome de Bee era Abelardo?

Abelardo fuzilou o caçador com o olhar diante da risadinha por causa de seu nome, mas não disse nada.

— Se o jovem Cipriani quer conversar, — Peter continuou quando Lorena foi rapidamente para o lado de Lorenzo — vamos conversar — e estalou os dedos.

Lorenzo esperou, diante deste gesto de Peter, que um servo surgisse de entre as sombras do clube e perguntasse ‘pois não, meu senhor?’, não que uma mesa e cadeiras fossem arrastadas de um canto do salão, como se puxadas por uma corda invisível, e parassem no centro da pista de dança.

— Em que momento da história você esqueceu de me dizer que o seu irmão é um elemental do ar? — ironicamente, o elemento predominante dos demônios era a água, enquanto dos anjos era o fogo. Embora ambas as raças pudessem controlar os quatro elementos, a sua grande maioria concentrava-se somente nesses dois. Um demônio elemental do ar era raro, e várias eram as teorias sobre o porquê disto, e apenas uma fazia sentido:

Evolução.

Os demônios viviam sob a terra, onde a temperatura era amena e a umidade relativa do ar imensa por causa da proximidade com os lençóis freáticos. Por isso do controle da água, mais especificamente do gelo. Demônios possuíam uma habilidade impressionante de controlar a água em seu estado sólido e a vivência diária com quantidades abundantes deste elemento os tornou familiares a ele.

Os anjos viviam nas alturas, onde era sempre frio, e por isto a maioria desenvolvia como elemento o fogo. Era uma maneira de manterem-se aquecidos, e o ar seco ajudava melhor na propagação deste elemento, para assim esquentarem os seus ninhos, embora Lorenzo não entendesse até hoje como eles conseguiam gerar fogo em ar rarefeito, mas esta era uma daquelas máximas que você somente aceitava que existia, porém não questionava a sua existência. 

E esta era mais uma razão para eles não se entenderem: eram totalmente opostos até mesmo no controle dos elementos da natureza.

Mas, em raros casos, havia um anjo ou demônio que tornava-se mestre no controle de outro elemento, como terra ou ar.

— Ele não é. Peter é um feiticeiro — Lorena murmurou para Lorenzo, que assoviou baixinho.

Feitiçaria era um dom sobrenatural que era restrito apenas aos humanos. Ou ao menos era. E se ao pensar em magia você pensa em Harry Potter, varinhas de condão e bichinhos sendo transformados em copos, pode esquecer completamente deste assunto.

Feiticeiros não tinham varinhas, não transformavam nada em coisa alguma, e eram de pouca, senão nenhuma confiança. Eles eram mestres em ervas e poções e a sua principal habilidade eram feitiços de proteção e maldições. Um feiticeiro apenas, se for bastante poderoso, poderia colocar Roma inteira sob uma redoma de proteção mágica, assim como poderia amaldiçoá-la de várias maneiras diferentes, e extremamente cruéis.

Era um dom perigoso, volátil, que podia desestabilizar a psique de um ser humano. Então imagine de um demônio que, pela genética, já tinha poderes o suficiente para torná-lo uma ameaça? Acrescentar magia ao pacote era razão o suficiente para deixar todos tensos com a situação.

— Não é uma coisa que comentamos em nosso covil — Lorena continuou — A mãe de Peter foi uma humana médium que não sobreviveu ao parto, mas Peter sim, e a mistura de dons deu essas habilidades a ele. E antes dela morrer, ela fez umas previsões de grandeza para Peter, por isso que ele sempre foi o favorito do papai.

— Isto não é verdade — Lorenzo e Lorena pularam de susto ao ouvir a voz, pois Peter estava praticamente na frente deles e nenhum dos dois viu o mestiço se aproximar — Papai a aprecia muito.

— Ele me apreciava quando eu era o primogênito e o herdeiro. A apreciação sumiu quando ele viu que não tinha dois meninos como filhos, mas sim um menino e uma menina — Lorena disse com amargura, com certeza rememorando lembranças desagradáveis da época em que viveu no subterrâneo, deslocada e assustada, sem entender o que havia de errado com ela, odiando-se todos os dias que passavam e tentando encaixar-se em uma sociedade que preferia excluí-la a adaptar-se à ela. Essa história Lorenzo conhecia bem, e ela sempre era contada por Lorena neste exato tom.

Peter suspirou de uma maneira que dizia que essa discussão era antiga e que ele não queria repeti-la naquele momento.

— Por favor, sentem-se — ele convidou a todos e apontou para as cadeiras ao redor da mesa. Lorenzo hesitou bastante antes de sentar e mirou Lorena e Hunter quando ambos sentaram cada um ao lado dele, o flanqueando como cães de guarda. Hunter rosnou para Lorena, que sorriu provocante de volta.

E desta vez foi Lorenzo quem suspirou diante da repetição daquele cenário. As provocações de Lorena e a animosidade de Hunter já estavam se tornando figurinhas carimbadas na vida de Lorenzo, apenas das poucas horas que ambos se conheciam.

— Abelardo, você também — Peter falou em um tom suave — Creio que os seus empregados podem fechar o clube e dispensar qualquer curioso — não foi uma sugestão, pois Lorenzo pôde ouvir subentendido o tom de ordem sob essas palavras.

Os quatro seguranças desapareceram clube adentro e Bee sentou à mesa, sendo imitado por Peter.

— Eu sei porque você está aqui Lorenzo — em que momento Lorenzo tinha se apresentado?

Peter sorriu, como se soubesse exatamente o que Lorenzo estava pensando, e as bochechas de Lorenzo com certeza ficaram vermelhas, pois ele as sentiu esquentar. O sorriso de Peter ficou ainda maior, o que não estava ajudando em nada o coração acelerado de Lorenzo.

Peter era um perigo para a sua libido.

— Está aqui por causa de Acqua — o sucesso continuou e Lorenzo piscou repetidamente, esquecendo do seu coração acelerado diante da menção de Acqua.

— Você foi o demônio que rasgou a barriga de Acqua — Lorenzo acusou, conectando os pontos rapidamente. No momento todas as pistas indicavam que Acqua frequentou ou escondeu-se no Por Una Cabeza, a teoria que o rasgo na barriga foi feito com a intenção de esconder a gestação, não de roubar a criança, somada com a teoria de quem quer que tenha feito isto, o fez na intenção de permitir que o corpo de Acqua retornasse ao ninho de forma honrada, o resultado final só poderia ser que alguém que se importava com a anjo fez este trabalho ingrato — Lorena me falou que você é um mestiço, portanto não deveria ter garras.

— Verdade — Peter disse com uma calma que causaria inveja ao cardeal DeMarco — Mas você deve saber que, quanto mais tempo um demônio passa entre os humanos, mais ele perde a sua conexão com o covil e aquilo que o faz demônio, o tornando quase humano. O inverso também acontece. Por isso que eu tenho isto — e ele esticou os dedos da mão, de onde as garras surgiram de suas pontas com um baixo ‘tsc’.

— Por que você quis esconder a gravidez de Acqua? Qual foi a intenção? Que ela fosse enterrada de forma honrosa junto aos seus? — Hunter perguntou em um tom áspero que Lorenzo sabia que era porque o mestiço sentia-se ameaçado em seu território.

E por que não tinha percebido isto antes? Hunter não tinha apenas ciúmes de Lorena, ele considerava Lorenzo o seu território.

Seria doce se Lorenzo fosse uma adolescente emocionalmente retardada que achava fofo um homem possessivo, mas Lorenzo não era uma adolescente e muito menos queria homem ou mulher algum achando que ele era uma mera propriedade. E só para enfatizar isto, Lorenzo deu outra coronhada nas costelas de Hunter, que deu um pulo na cadeira diante do ataque.

— Porra, Lorenzo!

— Hunter? — Lorenzo sorriu docemente para Hunter — Vamos esclarecer uma coisa aqui antes de continuarmos com esta conversa: eu fodo ou sou fodido por quem eu bem entender, e você não tem e nunca terá opinião alguma sobre isto, ok? — Hunter grunhiu e mirou Lorenzo com irritação.

— Não foi bem isto o que você pensava há uma hora — e a carranca dele se desfez em favor do seu patenteado sorriso sacana. Lorenzo ergueu levemente a arma em seu colo, em uma nova ameaça de ataque, e a reação do mestiço foi instantânea:

Hunter deu um pulo e afastou-se de Lorenzo com cadeira e tudo, abraçando as costelas como forma de proteção, e olhou para Lorenzo com as suas grossas sobrancelhas negras franzidas em desagrado. Do outro lado da mesa, Peter riu.

— Agora entendo porque você se apegou a este humano — Peter disse isto enquanto olhava para a irmã que sorriu matreira de volta para ele.

— Eu sei — Lorena pousou a mão sobre a cabeça de Lorenzo, afagando os cachos castanhos com as pontas de suas unhas bem feitas, um gesto que ela sabia ser o ponto fraco de Lorenzo, porque o deixava todo relaxado e ronronando como um gatinho. Da maneira que ele estava fazendo naquele momento.

Peter lançou a Lorenzo um olhar intenso e cheio de segredos e promessas, o que fez Lorenzo engolir em seco e remexer-se sobre a cadeira, pois as suas calças estavam ficando desconfortavelmente apertadas somente por causa daquele olhar. O que cacete havia com esses demônios que sempre mexiam com a libido de Lorenzo de forma indecente e feroz?

Lorena gargalhou e parou de afagar o cabelo de Lorenzo, que endireitou-se como pôde e pigarreou para disfarçar o seu incomodo. Hunter, que ainda estava encolhido sobre a sua cadeira e abraçando as costelas, crispou os lábios na direção de Peter, emanando puro ódio que era refletido pelos seus belos olhos ametistas.

— Essa foi uma cena interessante de presenciar, com certeza. Mas, voltando ao assunto, eu fiz o que fiz a Acqua porque não queria que ele soubesse que o bebê vingou — Peter disse sério e com um olhar distante.

— Ele quem? — Hunter perguntou em um tom mais contido e deu um relance para Lorenzo, como se esperasse outra coronhada dele, e avisava com o olhar que se ele tentasse, desta vez perderia a mão. Lorenzo ignorou a ameaça não dita em favor de colocar toda a sua atenção sobre Peter.

— É Castelo, não é? É ele que você não quer que saiba sobre o bebê — Lorenzo atestou e Peter assentiu — E onde está o bebê? — o caçador perguntou e viu com curiosidade Peter lançar um breve olhar para Hunter, como se este tivesse a resposta, e Lorenzo também mirou o mestiço, que deu de ombros dizendo que não fazia ideia do que Peter estava falando 

O olhar do sucessor retornou para Lorenzo.

— Seguro — ele respondeu, sem muitas explicações, e continuou — Eu não sou um poderoso vidente como a minha mãe, mas consigo captar uma coisa ou outra no ar e uma coisa eu digo: não confio nesse mestiço contratado por Castelo para encontrar o bebê de Acqua.

— O quê? Não foi Castelo que me contratou! Ele só foi o mediador em nome da soberana Estrela — Hunter protestou — Ela que me contratou para encontrar Acqua, que estava desaparecida. Não desaparecida, não é mesmo? Na verdade ela fugiu de casa e depois foi morta. Afinal, grávida sem estar interligada…

— Acqua não fugiu de casa por causa da gravidez fora de uma interligação. Ela fugiu por causa do que o bebê representava — Peter informou e Lorenzo o olhou com a mesma expressão confusa de antes, uma que exigia explicações — Muitos e muitos anos atrás, um médium fez uma profecia sobre um bebê nascido de um anjo, mas com as virtudes de um demônio, que traria uma era de paz entre os dois povos mais antagonistas desta terra.

— Você está querendo nos dizer que o bebê de Acqua é o bebê da profecia? — Peter assentiu para Lorenzo, diante da pergunta dele.

— O único tipo de ser humano que soberana Estrela respeita são os mediadores e os médiuns. Uma profecia feita por um médium é algo extremamente sério, e no qual ela acredita plenamente — Bee continuou e Lorenzo olhou surpreso para ele.

— De onde Peter e você se conhecem? — perguntou e Bee sorriu de forma afetada para ele.

— Somos família. A minha mãe era irmã da mãe de Peter, por isso Acqua tinha traços de beladona. Ela ficou escondida aqui por um tempo, a pedido de Peter, — pela cara que Bee fez, Lorenzo concluiu que Peter não disse exatamente ‘por favor’ ao pedir isto ao primo, ele simplesmente ordenou, pois, como herdeiro, ele tinha poder sobre qualquer mestiço e demônio da Itália, mesmo que este vivesse entre os humanos — e me ajudou vez ou outra com o clube.

— E é por isso que eu sempre evitei frequentar o Por Una Cabeza — Lorena completou.

Claro!

Lorenzo ouviu falar de Peter porque era ele que estava no comando da caçada ao sucessor fugitivo. Enquanto era Luigi, Lorena estava vulnerável, depois que operou e o seu corpo mudou drasticamente, a tornando praticamente irreconhecível para familiares, a não ser que você olhasse bastante, ela relaxou mais, mas nunca baixou a guarda.

— E Castelo sabia disto, sabia que o bebê de Acqua era o da profecia — Hunter retornou ao assunto.

— Ninguém odeia mais demônios do que Castelo e para ele, qualquer desculpa para começar uma guerra conosco é válida — Peter falou.

— Como matar Acqua, fazer parecer que foi um demônio, e contratar, em nome de Estrela, um pseudo caçador para este caso — Lorenzo apontou para Hunter, que protestou diante da ofensa — Mas Hunter procurou os Cipriani pedindo por ajuda, — continuou — porque ele mesmo não queria cometer um erro que fosse e começar uma guerra devastadora. Um milagre, diga-se de passagem — Hunter resmungou alguma coisa sob a respiração, mas Lorenzo o ignorou mais uma vez — Castelo descobriu isto e resolveu nos eliminar antes que a nossa descoberta chegasse aos ouvidos de Estrela, por isso do anjo kamikaze. Mas uma coisa eu não entendi — Lorenzo virou para Peter —Como você tem tanta certeza de que este é o bebê da profecia? Que Acqua relacionou-se com um demônio e teve um filho com ele?

Peter suspirou, fechou os olhos por um segundo e em seguida os reabriu e mirou Lorenzo dentro dos olhos quando disse:

— Porque o pai do bebê sou eu — e somente para completar esta revelação bombástica, a porta principal do Por Una Cabeza explodiu e Castelo adentrou o clube como um anjo vingador, cercado por seus lacaios salivando por sangue.

— E é por isso — o anjo disse com um sorriso que gelou o sangue nas veias de Lorenzo — que eu não posso permitir que esta aberração continue viva.

E então, a confusão começou.

 

 


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