Por Um Dia escrita por Carpe Librum


Capítulo 8
Espaço em Branco


Notas iniciais do capítulo

A detetive Lauren Clark troca de identidade com o misterioso Daron Baker, e os dois se veem envolvidos numa trama que pode culminar na morte de um presidente.



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ESPAÇO EM BRANCO

Lauren Clark

A morte. O que dizer desse fantasma que assombra os sonhos até mesmo dos mais céticos? Confesso que não houve um dia de minha vida em que não me peguei refletindo sobre ela, sobre como seria o momento solene, o momento em que em todas as minhas angústias e medos seriam deixados para trás, o momento em que me entregaria à escuridão desconhecida, em que mergulharia nesse mar infinito e cruel. Saber que ela é inevitável me causava arrepios. Será que sou covarde por temê-la de forma tão intensa?

Sentia-me cruel e ao mesmo tempo confortável ao saber que todos estão na mesma situação, condenados a mergulhar nesse abismo perverso e desconhecido. E então meus pensamentos se entrelaçavam a outro dilema: um sacrifício valeria a pena? Entregar-me a um medo tão profundo e devastador por algo ou alguém?

Em meio a tantas incertezas me deparava apenas com uma inevitável certeza: a hora chegaria, não havia escapatória. Eram momentos como esse que despertava em mim o desejo de ser imortal, como os deuses da mitologia. Amar a vida me fez sentir que minha passagem por este planeta, mesmo que não represente uma mísera importância, valeu a pena, cada segundo, e me sinto honrada em dizer que minha morte também.

Presságio

Eu estava me afogando, meu corpo sendo atacado por milhares de mãos sedentas por ele, me puxando para algum tipo de abismo. Apenas meus braços se movimentavam, lutando contra a maré de mãos à minha procura, podia sentir as dores causadas pelas unhas afiadas atravessando meu corpo como cacos de vidro, podia ouvir meus gritos ecoando no ambiente vazio. Vozes riam de mim, o som começou a se tornar tão alto que me impedia de ouvir meus próprios gritos, e como num piscar de olhos a dor se transformou em alívio. Eu estava submersa sob a água, havia assumido o lugar de observadora, podia ver meu corpo sendo carregado pelas correntes de água, aparentando ser tão leve e frágil quanto uma boneca de pano que estampava um encantador sorriso de redenção, até se perder de meus olhos e ir ao encontro do desconhecido.

Fui acordada pelo som de um trovão enfurecido, estava tremendo inconscientemente, olhei ao redor como um cego que enxerga pela primeira vez, e fui invadida pela sensação de alívio, havia sido apenas um pesadelo!

Em 1987, os belos olhos claros de uma pequena garotinha do Texas brilharam no momento em que descobriu o significado da palavra desafio. Para qualquer outra criança seria um momento banal, esquecido com o passar do tempo. Para mim, foi o momento em que descobri a verdadeira razão de minha existência. A sonoridade dessa palavra me gerava calafrios, mas eu gostava deles, e todos os meus atos dali em diante foram baseados em desafios. E desde o momento em que meu pai descobriu minha vontade imensa de ser desafiada, as brincadeiras e tarefas se tornaram sinônimos dessa pequena palavra que impulsionou minhas atitudes. Meu pai, meu pequeno poço de felicidade, um detetive policial que sempre foi minha inspiração para tudo, éramos como espelhos, mais do que somente pai e filha, éramos confidentes, amigos. Eu podia enxergar coragem em seus olhos, o amava mais que a mim mesma, e quando ele foi assassinado em uma missão para proteger um garotinho sequestrado por um maníaco, confesso que sofri por sua perda, mas não me rendi à dor. Conhecia meu pai como ninguém, sei que ele morreu sentindo orgulho de si mesmo, assim como eu senti.

Inspirada nele, me tornei detetive, a profissão que, a meu ver, é tão intensa quanto uma muralha, e tão inconsistente quanto um barquinho imerso em meio a uma tempestade em alto mar. Lutas corporais, lutas armadas, tudo envolvia perigo, confesso que mantive uma relação de amor e ódio com ele enquanto vivi. Meu trabalho no departamento do serviço secreto tinha seu término por volta das 02h30min da madrugada. Washington era meu novo lar, desde que aceitei emprego na segurança pessoal da Casa Branca, há cinco anos. Era sem sombra de dúvidas o trabalho mais recompensador possível, me sentia protegendo o país.

Depois de um longo dia de trabalho, e de em alguns momentos me perder em pensamentos ao me lembrar de meu terrível pesadelo, eu finalmente estava em casa, meu corpo estava exausto. O único lugar onde queria estar era em minha amada e querida cama, e foi a partir do momento em que me entreguei ao sono que minha vida mudou para sempre.

Eu poderia descrever esta cena de inúmeras formas, mas nenhuma faria jus ao momento. Qual cena? Aquela em que me deparo com a situação mais aterrorizante e estranha de toda a minha vida: possuir o corpo de um desconhecido. Não sei como aconteceu, ou por que aconteceu, e confesso ter passado horas a fio tentando compreender o motivo por trás do destino me pregar essa peça, no mínimo, sobrenatural. O grito que soltei ao vislumbrar a imagem de um homem de meia idade refletida no espelho arrepiaria a espinha de qualquer um. Meu estado de completa incredulidade perdurou por horas enquanto tentava convencer a mim mesma que estava sonhando, melhor dizendo, vivendo um pesadelo, talvez tão horrível quanto o último. E depois de muito tentar convencer a mim mesma de que era apenas um pesadelo duradouro, percebi que havia sido pega pelo azar, estava presa no corpo de um homem.

Eu sei o quanto isso parece irrisório aos olhos de qualquer ser humano lúcido. Essas palavras saem da boca de alguém que outrora foi uma completa descrente em qualquer tipo de atividade sobrenatural, e talvez por isso tenha acontecido. Na verdade, posso dizer com total veemência e resquícios de tristeza, que nunca descobrirei o mistério por trás da atípica possessão.

Daron Baker era nome do dono do corpo que agora me pertencia, e naquele momento torcia para não ser por muito tempo. Meu sobressalto ao me descobrir no corpo de outro alguém surpreendentemente não foi tão intenso se comparado à reação que tive ao descobrir que esse alguém vivia no ano de 1963. Eu estava no corpo de outra pessoa, em outro século... Como isso poderia ser pior? Era inconcebível.

Minha trajetória pela casa teve início a partir do momento em que percebi que precisava fazer algo a respeito, não poderia esperar por uma nova ação do destino, ou quem quer que fosse responsável por aquilo. Era uma casa contemporânea da época, com móveis luxuosos, organização no mínimo impecável. Quem quer que fosse Daron Baker, possuía um bom gosto soberbo, e vasculhando seus objetos percebi que ele transparecia um enorme desespero, essa foi minha errônea primeira impressão.

Observei os quadros espalhados pelas paredes e porta-retratos contendo sempre o mesmo núcleo familiar, uma mulher de aparência absurdamente delicada, e duas crianças de olhares inteligentes, eles formavam uma linda família, o que quer que tivesse acontecido para não estarem mais ali era lamentável. No momento em que a campainha tocou pela primeira vez no dia em questão, a princípio fiquei sem reação, imóvel por alguns segundos, até tomar coragem. Andei cautelosamente até a porta:

— Bom dia, Sr.Baker — quem falava era uma senhora de meia idade carregando consigo uma pasta e um sorriso jovial que chegava a ser irritante. — Venho em nome do orfanato Lustre de Cristal lhe entregar esta carta em agradecimento à sua bondosa doação para as atividades culturais e reforma.

O cara era um filantropo!

— Ok. – Peguei o envelope. – Eu que agradeço, tenha um bom dia.

Não podia deixar de me impressionar, era um doação e tanto, abri o envelope rapidamente, precisava saber o conteúdo da carta, poderia ser importante. Dentro havia dois desenhos claramente feitos por crianças, que no momento me arrancaram um sorriso, e uma carta com os dizeres:

Caro Sr.Baker, venho por meio desta agradecer suas caridosas doações ao orfanato, somente nós sabemos a série de dificuldades que enfrentávamos antes do senhor usar seu bondoso coração para nos apoiar.

Deus o abençoe!

Solange Carter

Diretora

Joguei a carta e os desenhos dentro da primeira gaveta que encontrei e voltei aos corredores, havia três quartos vazios e mobiliados impecavelmente, além de uma biblioteca magnífica! Estava no corpo de um intelectual e filantropo, era tão aleatório que chegava a ser engraçado...

Devaneios

Daron Baker

Luzes e mais luzes, a princípio era tudo que eu entrevia, parecia estar tendo o maior pesadelo de toda a minha jornada. O momento em que me deparei com minha imagem no espelho foi estranhamente revelador, a sensação de estar em um corpo consideravelmente mais leve e inferior ao meu tinha uma ridícula explicação: eu estava habitando o corpo de uma mulher. Olhos claros, rosto delicado, cabelos negros, ela era dona de uma aparência muito atraente, e logo descobriria que tudo em Lauren Clark era instigante e hipnotizante.

Lauren Clark

A noite se aproximava, trazendo consigo a insegurança que me dominou por completo ao perceber que estava de mãos atadas, não havia o que fazer, não havia como reagir, eu estava presa dentro do corpo de um desconhecido e talvez aquilo durasse para sempre. Odiava quando o fazia, mas não pude deixar de chorar. As lembranças de casa dominavam a minha mente como um vírus dominando um programa de computador, se pudesse voltar ao passado e nunca ter adormecido naquele momento... Deitei-me na gigantesca cama de Daron esperando por algum milagre, até deixar que o sono me dominasse, assim como quando tudo começou.

Daron Baker

Ela amava a vida, e a contradição se encontrava ao descobrir que sua profissão era perigosíssima. Detetive. Era curioso o quanto aquela mulher me atraía, me peguei diversas vezes analisando suas fotografias e sua imagem refletida no espelho. Ela era tão quente quanto o clima no Oriente Médio, enquanto eu, tão frio quanto o clima no Alasca, éramos totalmente opostos. Como água e vinho.

Durante a tarde fui surpreendido por um telefonema, um pequeno aparelho que provavelmente tinha a função de comunicação vibrava sem parar, e possuindo-o em minhas mãos pude me lembrar das grandes promessas da tecnologia de que já havia ouvido falar inúmeras vezes. Definitivamente, seriam um sucesso. Pronunciar com a voz extremamente feminina de Lauren me incomodava profundamente, mas não havia escapatória, percebi que para me comunicar deveria tocar naquela pequena tela. Nada aconteceu, aproximei-a de meu ouvido:

— Sim? - Um barulho ensurdecedor dominava o local – Sim?

— Lauren... desculpe, o departamento está uma loucura hoje, precisamos de você aqui em menos de 30 minutos.

O que eu deveria dizer? Calei-me por alguns segundos enquanto pensava em alguma desculpa, não poderia fingir que era Lauren Clark em seu local de trabalho.

— Desculpe... eu estou me sentindo um pouco mal...

— Nada de desculpas Lauren... o presidente comparecerá à reunião no plenário do Capitólio em 2 horas – Presidente? — Lauren...

— Sim, eu irei.

Ela se despediu e desligou, esperei por uns segundos até me certificar de que a caixinha se apagasse e a joguei dentro de uma gaveta.

Lauren Clark era detetive a serviço da Casa Branca, aparentemente. Meu pesadelo se transformou em sonho.

Lauren Clark

Fui acordada pelo som da chuva torrencial do lado de fora da casa, lutava para não abrir os olhos e deixar que o sono me possuísse novamente, mas meu desejo foi interrompido por um choque de realidade consideravelmente tão forte quanto um choque elétrico de alta voltagem. Eu estava presa dentro do corpo de um homem desconhecido, presa no século passado, era um ultimato, precisava decifrar o que estava acontecendo. Meu primeiro ato foi abrir todas as gavetas de Daron Baker, revirei tudo o que foi possível, havia uma montanha de papeladas, comecei a passar os olhos rapidamente sobre cada documento procurando alguma informação relevante, nenhum resultado.

Daron Baker

A Casa Branca, o centro de poder da pátria, o coração da América, o lugar que tinha nas mãos o destino do mundo. Era sem sombra de dúvidas a casa mais luxuosa possível, nem em meus sonhos mais ambiciosos havia imaginado tanto luxo e sofisticação concentrados em um só imóvel. Os corredores transmitiam forte impressão de serem infinitos, e por todos eles, quadros impecavelmente bem feitos de todos os ex-presidentes.

George Washington, Thomas Jefferson, Abraham Lincoln, Herbert Hoover, e finalmente... John F. Kennedy.

Lauren Clark

A carta que eu possuía em mãos era provavelmente a chave de todo o mistério, confesso que tremia, sentia de alguma forma que ali estaria a explicação para tudo o que estava acontecendo comigo. Os ponteiros do relógio batiam delicadamente, me fazendo sentir como se o meu tempo estivesse sendo cronometrado, eu não estava errada.

A letra com a qual me deparei era provavelmente a mais impecável que já havia visto, e os dizeres que ela revelava me geraram calafrios por todo o corpo.

Daron Baker

Minha ida à Casa Branca no corpo de Lauren tinha apenas um propósito, descobrir se meu plano havia sido concretizado com sucesso. Estando no corpo de Lauren pude perceber o quanto aquela mulher era interessante, as pessoas a olhavam com total reverência, com respeito, e algumas com nítida admiração.

Aproximei-me de uma sala onde se encontravam inúmeras máquinas de escrever, mas possuindo telas que lembravam as das televisões, e senti que dali poderia sair a informação de que tanto precisava. Uma mulher de aparência simpática vinha em minha direção, seu olhar revelava grande astúcia, ela era a pessoa certa para me ajudar.

— Lauren, senti sua falta por aqui hoje, havia me esquecido de que hoje você entraria bem mais tarde. Parece um pouco abatida, o que houve?

— Eu estou bem. – Ela trazia em seu peito um crachá com o nome Regina Knowles. – Regina, na verdade estou um pouco enrolada, preciso de informações sobre a morte do presidente Kennedy, mas não sei quem pode me ajudar.

— Está falando com a pessoa certa, o que precisa? - Não havia nenhum resquício de desconfiança em seu olhar. – Lauren...

— Sim, preciso de todas as informações que possuir.

— Venha comigo. — Eu a segui até uma das caixas, onde ela escreveu algo e depois tirou um papel de uma máquina. — Aqui está, não sei para que deve precisar disso, mas ok. Mais alguma coisa?

— Muito obrigada. — E me retirei rapidamente, precisava encontrar um local vazio. Confesso que meu coração batia impacientemente, uma porta onde estava escrito Banheiro feminino acabou se transformando em minha salvação no momento. Estava vazio. Sentei-me no chão e passei os olhos lentamente sobre o conteúdo do papel.

John Fitzgerald Kennedy foi o trigésimo quinto presidente dos EUA e é considerado uma das grandes personalidades do século XX.

Havia informação demais, procurei identificar a palavra morte e quando a encontrei foi como se meus pensamentos fossem transportados ao passado. As imagens passavam em frente aos meus olhos tão claramente que senti que podia tocá-las, a noite do pronunciamento do presidente, o sorriso no rosto de meu pai, as lágrimas de minha mãe relutando para que ele não fosse, a inocência de meus irmãos ao se despedirem dele e, logo depois, as piores cenas que vislumbrei em toda a minha vida.

Ao ouvir o som de uma voz se aproximando fui obrigado a voltar ao presente, ao momento solene, e quando meus olhos encontraram aquelas palavras senti o chão se abrindo sob meus pés.

A morte do Presidente se deu por causas naturais em 23 de Maio de 1988, próximo ao seu aniversário de 71 anos.

Eu havia falhado.

Lauren Clark

Eu sei o quanto o mundo me julgará por isso, sei quantas lágrimas provocarei. Mas nenhuma delas será tão carregada de dor quanto as que eu derramei por conta da ganância deste país, e tenho dito. Eu venho imaginando este dia por anos e anos, desde que derrubei a última flor por cima do corpo de meu pai, prometi a mim mesmo que o ato que cometi seria a causa de minha existência. Peço solenemente que cremem meu corpo e joguem as cinzas sob as margens do rio Sidney.

A vida é um jogo nada justo, estou apenas fazendo o meu.

Daron Baker

Daron Baker planejava uma vingança, mas contra quem? Pude sentir tanta dor e rancor naquelas poucas palavras, reli-as inúmeras vezes. Como poderia ter me enganado tanto com ele? Sua casa, objetos, fotos em família, toda a visão que tinha dele caiu sobre terra, o homem dono do corpo que agora eu possuía voltou a ser um completo desconhecido. O relógio apontava que a noite estava prestes a terminar, e eu precisava saber contra quem Daron planejava um atentado, era minha obrigação.

Daron Baker

As cenas das mortes de ambos os meus pais e de meus irmãos latejavam em minha mente, como eu poderia ter falhado? Planejei tudo por anos, eles tinham sido mais espertos que eu pela segunda vez? Repassei todo o plano em minha mente até ela ser invadida por uma epifania. Se estava no futuro, tinha o poder de mudar o passado quando retornasse ao meu corpo, tinha o poder de mudar meu plano e acertar desta vez, o destino havia me dado uma segunda chance.

Lauren Clark

Se alguém escondesse algo que não quisesse que ninguém encontrasse, provavelmente esconderia no lugar menos provável possível. Qual lugar na casa de Daron Baker seria totalmente à prova de desconfiança? Os quartos das crianças! Revirei todas as gavetas do quarto da garotinha, não havia nada além de desenhos infantis, joguei o colchão no chão e não havia nada embaixo dele. Depois de revirar praticamente tudo, minha única e última opção era o closet, estava abarrotado de roupas, joguei todos os cabides no chão... Nada.

A raiva começou a me dominar por completo, escorei a mão no fundo do closet e quando minha mão tocou nele reconheci um pequeno som familiar.

Estava oco!

Daron Baker

21 de Novembro de 1963, um dia antes do qual eu havia planejado, era a ocasião perfeita. Agora, o destino só precisava me dar apenas mais uma pequena ajuda, me fazer voltar ao meu corpo.

Lauren Clark

Confesso ter ficado imóvel por segundos enquanto me deparava com o arsenal de armas e mapas escondidos no local secreto do closet da filha de Daron, mas para meu completo desespero, não havia pistas de quem seria sua vítima. Perdi tanto tempo conjecturando e tentando encontrar pistas de quem seria que me desfoquei do tempo. O dia estava prestes a acabar, e com o final dele viria o meu ultimato.

Deitei-me novamente na cama de Daron, fechei meus olhos e, como do início de tudo, fui invadida por um turbilhão. Como numa série de visões caleidoscópicas, pude ouvir gritos estridentes atravessando meus ouvidos como zumbidos de vespas, era como se tudo à minha frente tivesse desaparecido e entrado em um universo paralelo, cenas confusas e aleatórias se passavam na frente dos meus olhos como um trailer de um filme.

Uma casa modesta à beira do campo, crianças cantando a velha musica de natal animadamente, o clima de cumplicidade e felicidade era quase palpável, e como água escorrendo pelo ralo de uma pia tudo se transformou em gritos estridentes e desesperados e choros incessantes.

Os dizeres: eu odeio a América invadiam minha mente e se repetiam diversas vezes, incansavelmente, até serem acompanhados pelo nome: John Kennedy! 22 de Novembro! Texas!!! Isso é tudo de que me lembro, e depois disso fui tomada por um sono profundo.

Dia solitário

Lauren Clark

No dia seguinte, o que eu tanto ansiava não aconteceu, não estava de volta ao meu corpo, e para minha infelicidade tudo piorou. O destino estava se transformando de irônico para cruel, pois naquele momento eu possuía o corpo de ninguém menos que John Kennedy. Eu era a próxima vítima!

Daron Baker

O destino nunca havia sido tão bondoso comigo, de alguma forma sentia que ele estava ao meu lado, me apoiando. Estava de volta ao meu corpo, ao século vinte, ao dia 21 de Novembro de 1963, o grande dia.

Lauren Clark

A experiência de estar no corpo do homem mais poderoso do planeta deixou a experiência de estar no corpo de Daron Baker no chinelo. Confesso que em alguns momentos questionei minha sanidade, e depois de perceber que não era um pesadelo, também percebi que era a hora de agir. Para a minha sorte, conhecia a Casa Branca como a palma de minha mão, estava na hora de colocar meu plano em prática. O dia estava se passando assustadoramente rápido, conhecia muito bem a rotina de um presidente, mas nada se comparava a estar no corpo de um. De uma forma totalmente inesperada, descobri que Kennedy — no momento eu — tinha um discurso marcado para o dia seguinte no Tennessee e um para o dia em questão, o primeiro, ironicamente, na minha cidade e de Daron: Dallas, Texas. Minha estratégia era muito simples, inverter os dias, e reforçar a segurança à volta de Kennedy.

Daron Baker

Minha casa havia sido brutalmente desorganizada, quem poderia estar em meu corpo enquanto estive fora? Não tinha importância, o discurso começaria em 2 horas, precisava me preparar.

Coloquei minha arma em uma bolsa e a camuflei em várias camadas de roupa, estava tudo pronto!

Lauren Clark

Eu já me encontrava dentro do carro presidencial quando tudo começou, Jackie Kennedy, a primeira-dama, se encontrava ao meu lado, o carro era cercado por milhares de pessoas, gritando o nome do presidente, ele era a esperança daquele país. Em meia hora tudo acabaria, enquanto sorria e acenava, torcia como nunca antes para algo dar certo.

Daron Baker

Ele já estava em minha mira, o momento mais esperado de minha vida estava próximo. Estava a quilômetros de distância, aquele sorriso estampado no rosto, matá-lo seria como matar o país que tirou a vida de minha família, que mandou meu pai para aquela maldita guerra, e que destruiu a minha vida.

John Kennedy estava à minha frente, o ângulo era perfeito, deslizei meu dedo sobre o gatilho, e vi sua cabeça explodir diante de mim.

Os gritos e o pandemônio em que o local se transformou foram o ambiente perfeito para minha fuga. Estando em casa, restava apenas uma coisa a fazer.

Peguei a mesma arma e coloquei-a no meu ouvido, minha missão estava cumprida, poderia ir em paz, apertei o gatilho, e me perdi na escuridão.

Lauren Clark

Meu corpo foi encontrado horas depois, sem ao menos um sinal de vida, totalmente destruído pela morte. Sinto que assim como fui pega por ela possuindo o corpo de Kennedy, ele também possuía meu corpo quando a morte o encontrou, mas acho que nunca saberei a verdade.

Meus olhos que outrora foram cheios de vida, agora se encontravam mais vazios do que nunca. Vê-los daquela forma causou em mim a maior agonia de toda a minha vida.

Vida. Essa pequenina palavra que resume tudo que somos, confesso que possuo uma longa lista de arrependimentos, mas no final, eles não fazem diferença. Um dia, todos que possuem as mesmas incógnitas que eu possuía irão se deparar com o que vejo agora.

A morte de Kennedy permanece como um dos maiores mistérios da humanidade, a minha também, só que para mim mesma.

Daron e a morte me venceram, se uniram de uma forma traiçoeira. Pensar que ele teve a chance de viajar no futuro e retornar ao passado me faz acreditar que tudo trabalhou a seu favor. Ambos antecipamos nossos planos visando alcançar nossos objetivos, eu falhei, enquanto até os ventos sopraram a favor dele.

Kennedy e eu fomos pegos pelo destino, de alguma forma, sinto que ele se aliou a Daron Baker, enquanto o presidente e eu fomos unidos por um elo que entrelaçou nossas vidas com algemas.

É tão triste pensar que ele, ao contrário de mim, nunca terá explicação nenhuma acerca do pesadelo que nos tomou.

A morte nos abraçou de uma forma implacável, não havia escapatória, me sinto estúpida, e ao mesmo tempo orgulhosa ao saber que tentei detê-la. Talvez eu não possuísse esse direito, talvez a vingança de Daron fosse maior que tudo, maior até que nossas vidas.

O momento em que senti a bala atravessar meu corpo foi como ver meu pesadelo se tornando realidade, eu havia falhado, havia me entregado ao meu medo mais profundo, a morte. Não havia sido a heroína, não consegui salvar meu país e muito menos o presidente, mas sinto que tudo valeu a pena. Eu fui desafiada pelo destino, e mesmo que ele tenha trapaceado, eu o enfrentei, e me orgulho de mim mesma por isso. Como uma apreciadora de teatro, sinto que minha vida foi uma peça escrita às pressas, mas digna de um final sublime e insólito.

Por aqui me despeço.

Daron deixou rancor.

Kennedy deixou saudades.

Eu deixei apenas um espaço em branco.


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Notas finais do capítulo

Este é de uma das finalistas, vencedora do nosso concurso anterior. Vamos resumir assim, querida: você é tudo, menos um espaço em branco. Confie em quem você é e sinta sempre orgulho disso. Esteja a postos para o desafio.



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