Por Um Dia escrita por Carpe Librum


Capítulo 3
Meu Dia, Seu Último


Notas iniciais do capítulo

O suicídio sempre provoca questionamentos. O pensamento de que tudo poderia ter sido evitado é inescapável, mesmo quando era alguém que não conhecíamos bem. E ainda mais se for um ídolo.

Aviso: depressão, drogas e suicídio.



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“My girl, my girl, don't lie to me

Tell me where did you sleep last night

In the pines, in the pines

Where the sun don't ever shine

I would shiver the whole night through

My girl, my girl, where will you go

I'm going where the cold wind blows

In the pines in the pines

where the sun don't ever shine

I would shiver the whole night through...”

(Where Did You Sleep Last Night - Nirvana)

Ainda agora mal posso acreditar em tudo o que aconteceu. Por mais que eu procure, não consigo encontrar uma explicação, saber como fui parar lá...

Você pode não acreditar, mas por um dia eu era Kurt Cobain, pode?

Assim que abri os olhos, a primeira coisa que pensei foi: “que sonho maluco”! Sim, porque as sensações, as lembranças de uma vida inteira que não era a minha estavam vívidas em minha mente, na sensação de ressaca e, como pude descobrir depois, na minha pele, ou... na pele dele, que loucura!

Em meio a pensamentos confusos e sensações totalmente estranhas à minha pessoa, demorei a me dar conta de que estava em um lugar totalmente diferente do qual eu havia ido dormir, mas conforme fui me situando, se é que isso seria possível, percebi que aquele quarto não era o meu!

O que poderia ter acontecido?

Fiz um esforço tremendo para tentar me recordar da noite anterior, e tenho certeza de que dormi em meu quarto e em minha cama e de que não bebi ontem à noite, simplesmente porque... Eu. Não. Bebo. Ainda assim uma sensação horrorosa de ressaca tomava conta de mim, eu estava com dor de cabeça, zonza, boca amarga e um enjoo daqueles!

Cambaleando pelo caminho, entrando e saindo de cômodos à procura de um banheiro, acabei tropeçando em uma espécie de mesinha, sei lá! Só sei que derrubei tudo o que estava sobre ela e, me abaixando automaticamente para recolher, pude ver que havia muitas coisas espalhadas, como garrafas de cerveja, pacotes de cigarro e um cinzeiro lotado. Mas, dentre tudo, uma coisa particularmente me chamou a atenção, uma latinha com duas colheres, uma seringa e algumas outras coisas que eu não conhecia.

“Que porra é essa?”, pensei, mas tive que me apressar para o banheiro porque estava nauseada demais. Assim que cheguei lá, só deu tempo de me abaixar até o vaso sanitário, vomitei tanto que achei que iria virar do avesso.

Quando consegui me recuperar um pouco, fui até a pia para passar uma água no rosto, mas estava me sentindo tão mal que acabei enfiando a cabeça inteira embaixo da torneira e o que aconteceu em seguida foi... assustador!

Quando levantei o rosto e olhei para o espelho levei um susto, não foi meu rosto que apareceu lá, mas o de Kurt Cobain. “Mas que porra é essa?”, pensei de novo, e por que é que agora tudo o que me vem à cabeça é: “que porra é essa?”. Mas o que é que está acontecendo? Saí pela casa olhando em tudo o que pudesse refletir imagem: espelhos, janelas, panelas, tampas... Mas a imagem não mudava, era sempre a cara do Kurt.

— Oh my God, my God! What’s up? Caralho, eu falo inglês também?! What the fuck?

Olhei por uma janela, abrindo cautelosamente um canto da cortina. O lugar era lindo, mas certamente não era a minha terra. A paisagem, o ar, tudo era diferente, e fazia frio.

Tá legal! Respire fundo e acalme-se!

Well... O que eu podia fazer? Não sabia por que e nem como, mas havia acordado em um corpo que não era o meu.

E então... Uouuu! Se eu sou Kurt, a ressaca é de verdade e aquilo pela sala é... Shit, shit, shit!

Isso me deixou muito nervosa e eu dei uma boa tragada no cigarro e... que porra é essa? Quando eu acendi este cigarro? Eu não fumo! Caralho! Meu, minha boca também não era tão suja! Que por... Não, eu não vou perguntar que porra é essa de novo! Espero que a polícia não apareça por aqui! Caso contrário, este corpo vai estar encrencado!

Eu não sabia onde estava, quer dizer, já sabia quem eu ocupava, mas não sabia onde quem eu ocupava estava ou... Ah, vocês entenderam!

Tentando não fazer barulho — afinal, não sabia se estava sozinha e, caso aparecesse mais alguém, o que eu diria? O que diriam? —, enfim, comecei a dar uma olhada pelo lugar.

Na sala onde eu estava, havia discos e livros, uma velha vitrola, uns poucos retratos onde reconheci Kurt, quer dizer eu... não! Ele! Enfim... Havia também Courtney segurando um bebê, provavelmente Frances. De repente “me toquei” que era “a casa”, justamente a casa onde Kurt havia cometido suicídio anos atrás. Isso foi sinistro, principalmente porque no fundo eu já sabia, eu sentia, eu estava lá, naquele corpo cujas memórias começavam a sobrepor-se às minhas e, quanto mais tempo eu passava nele, mais fortes e dominantes elas ficavam a ponto de eu já quase não saber mais onde terminava Ayelli e onde começava Kurt.

Quem eu era ou “o que” eu era?

Uma segunda chance?

De repente comecei a me sentir muito triste! À medida que essas memórias se tornavam mais fortes, tudo na minha cabeça ia ficando mais confuso.

Eu precisava falar com alguém e, de repente, me vi ligando para o Dave, que era o baterista.

Bom, a gente não era tipo... os melhores amigos, mas nos dávamos bem, nos entendíamos bem quando o assunto era música, para o resto... Às vezes falávamos alguma coisa como se fosse só para sabermos “tá, ainda estamos juntos”, mas eu gostava do cara, embora nunca tivesse dito isso a ele. Acho que eu precisava dizer, mas isso agora estava preso em minha cabeça como todo o resto que não saía: as músicas, a voz...

A sensação que eu tinha era sufocante e, ao telefone, Dave me disse algo parecido com o que disse dias antes, quando nos esbarramos em algum lugar do qual não me lembro bem agora: “E aí?” Foi como: “Você está bem?” E eu respondi: “E aí?” E foi como: “Tô bem, e você?” E ele respondeu: “Te ligo”.

Ok. Alguma coisa se quebrou porque já não era como uma conversa qualquer das que costumávamos ter.

Eu estava tendo problemas sérios com as drogas e isso meio que estava quebrando a gente, não no sentido financeiro, mas eu estava me isolando cada vez mais. O que é pior e, eu não sei até que ponto “eu” achava pior, é que eu não queria me livrar delas porque elas me libertavam de certa forma.

Desliguei o telefone e... bem, acendi um cigarro, quer dizer mais um, já nem sei quantos acendi ao longo desse dia.

Olhei novamente pelo canto da janela, a tarde caía devagar e eu mal percebi o dia passar. Me joguei em uma poltrona e fiquei olhando para uma guitarra à minha frente, alguns papéis e uma caneta vermelha, e não sei por que, o vermelho daquela caneta me chamou tanto a atenção. Peguei um papel amassado e só... comecei a escrever...

A angústia apertou. Senti que tinha tanto para dizer ao mundo, tanto sucesso para fazer, mas como iria suportar mais sucesso se não estava nem conseguindo lidar com o sucesso que tinha?

Eu preciso sair deste corpo! Não quero vê-lo morrer e, pior, não quero morrer com ele. Senti a angústia crescente, o desespero. Letras e acordes de músicas fervilhando dentro da minha cabeça e eu sentindo que não tinha tempo para colocar tudo isso para fora. Tinha medo do fracasso, ainda que tudo seguisse dando certo profissionalmente, sentia minha vida desmoronando. Eu gostava do sucesso, gostava do dinheiro, mas o preço de tudo isso estava se tornando alto demais, me sentia perseguido.

Às vezes, sentia como se eu estivesse dentro de uma bolha e ela fosse encolhendo, encolhendo, encolhendo...

Talvez, num último ato antes que minha personalidade fosse totalmente suprimida pela dele, peguei o telefone e liguei novamente para Dave:

— E aí?

— E aí?

— Cara, que dia é hoje?

— Você tá bem, cara?

— Só me diz que dia é hoje, por favor!

— Cinco de abril, por quê?

— De que ano?

— 1994. Cara, você tá legal?

Desliguei o telefone desesperada. E eu não conseguia pensar em mais nada a não ser que “não havia mais tempo”.

Quando me dei conta, estava injetando um líquido branco que já estava preparado numa das seringas que encontrei caídas junto às coisas que derrubei da mesinha quando tropecei. Estranhamente, comecei a me sentir um pouco melhor, a solução começava a parecer tão clara... meu corpo flutuava e, flutuando dentro daquela maldita bolha que só fazia encolher, eu não me sentia mais tão angustiada, porque agora eu sabia que havia um jeito de resolver, um jeito rápido e fácil de escapar.

Eu estava cansada, não queria mais estar ali, eu precisava furar aquela bolha, precisava sair.

Então eu peguei algo com um cano comprido e coloquei o dedo no gatilho. Oh, meu Deus, o que era aquilo? Não! Era uma espingarda, uma arma! Eu nunca peguei numa arma antes! Eu não, mas ele sabia bem como manuseá-las...

Eu já quase não conseguia mais respirar, não conseguia andar. A essa altura, “eu” já não tinha mais nenhum controle sobre as ações daquele corpo e suas memórias. Encostada em uma parede, deixei meu corpo escorregar até o chão. Eu buscava o ar, eu buscava a liberdade, eu acreditava que se furasse aquela bolha estaria livre. Então coloquei o cano da arma em meu queixo e puxei o gatilho.

O barulho foi ensurdecedor!

Com um sobressalto, abri os olhos com as mãos nos ouvidos, eles ainda zuniam. Apavorada, notei que havia um pouco de sangue em minhas mãos, mas, estranhamente, não havia ferimento algum em mim. Então de onde veio aquilo?

Corri para frente do espelho e era eu de novo! Olhei em volta e estava no meu quarto e, de novo, pensei que porra era aquela.

Eu sentia meu corpo todo dolorido, como se tivesse levado um empurrão daqueles, e minha cabeça ainda girava, mas já não havia em mim nenhum resquício de todas aquelas angústias, daquele medo, das incertezas, daquela tristeza profunda. Eu podia respirar normalmente embora tivesse ficado uma leve sensação de vazio... como se faltasse algo...

Muitos irão crer que eu tive apenas um sonho, mas eu sei, estive lá! E fico me perguntando se poderia ter feito alguma coisa para mudar o desfecho daquela história trágica que deixou órfãos da música por todos os lados.

Agora eu sei exatamente o porquê de tudo. Era demais para ele! Um dia, ele acreditou que pudesse ter sua música ouvida, mas as pessoas ouviam e não entendiam. Ele achou que pudesse viver com isso e viver de sua música sem perder a liberdade que tanto prezava, mas enganou-se, não se pode ter tudo!

Eu não sei como isso pôde acontecer: acordar em outro corpo, numa outra época. Infelizmente, não pude fazer nada para mudar os fatos e, talvez, nem tenha sido essa a intenção dos acontecimentos. Talvez tenha sido apenas a oportunidade para uma fã, um de seus órfãos, de conhecer e entender o que realmente se passava na cabeça do seu ídolo, o que ele estava sentindo em seus últimos momentos.

A vida é mesmo uma coisa maluca, enquanto alguns navegam por ela com total controle do leme, outros se perdem em alto mar...


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Notas finais do capítulo

Kurt perdeu o leme e nos deixou, por um tempo, à deriva. A morte dele foi triste e evitável e eu sempre vou sentir muito por isso. Espero que a alma dele tenha aprendido e ensinado que há sempre uma maneira, que tudo vai ficar melhor. Se a gente se der uma chance.

Texto da jurada Aline.



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