Arborescente escrita por nywphadora, nywphadora
Era incrível como a minha vida era um conjunto de momentos entediantes intercalados por momentos ruins. E os momentos ruins sempre vinham próximos, sem descanso. A tempestade antes da tão esperada calmaria.
Naquela noite, eu chorei. No meio da praça, como Reilly fez. Estava escuro, e logo notariam a minha ausência, mas eu pouco me importei para aquilo.
― Vamos, Aeryn!
Evan estava me seguindo desde que eu saí do prédio abandonado, e foi ele quem me ajudou a seguir para a sede da Franqueza, eu mal podia me aguentar em pé.
― Aeryn! Mas o que... ― Karen apareceu no hall, olhando chocada para Evan, que afastou-se de mim no mesmo momento.
― Eu vou indo. Se cuida ― ele murmurou para mim, antes de ir.
Karen me puxou pelo braço, para dentro, a expressão séria.
― O que deu em você? ― perguntei, conseguindo me soltar.
― O que deu em mim? O que deu em você! ― ela exclamou ― Olha, eu sei que aquele garoto é lindo. Olhar não tira pedaço, mas, cara, você não pode se relacionar com ele. Ele é um sem facção! Isso nunca daria certo!
― Do que você está falando? ― perguntei ― Eu não estou tendo um relacionamento com o Evan.
― Então, o que estava fazendo com ele?
― Meus amigos da Amizade viraram sem facção. Queriam me ver.
― Aeryn, não há nada que possa fazer a eles. Agora eles são sem facção, como você disse. Eles eram seus amigos na Amizade, mas tiveram sua escolha.
Indignei-me com o que ela disse.
― Escolha? ― repeti ― Eles não tiveram escolha! Eles foram expulsos! Que tipo de justiça é essa?
― Ei! Eles não foram expulsos da Franqueza ― Karen defendeu.
― Mas a Franqueza jamais faria algo para mudar isso.
― É claro que não! Cada facção tem sua forma de democracia. Interferir seria permitir que interferissem conosco.
Eu não sabia mais o que dizer, meus pensamentos eram nublados por minha revolta e angústia. Virei-me, indo para longe de Karen, mas ela puxou-me pelo braço mias uma vez, virando-me.
― Aeryn, eu sou sua amiga, não inimiga ― ela disse, exasperada ― Responda com sinceridade: você consegue se ver como uma sem facção?
― Já disse que não tenho nada com ele ― respondi.
― Você não respondeu a minha pergunta.
― Não! Eu não consigo me ver como uma sem facção! Esse era o meu pesadelo quando eu completei 16 anos: fazer o teste de aptidão, e não dar resultado algum, embora eu saiba que isso é impossível.
Ela olhou-me com pena, parecendo relaxada pelo que eu disse.
― Você viu ele, não foi? Na simulação de homicídio da Trudie.
― Não quero falar sobre isso ― desviei o olhar para a parede de vidro, o que não foi uma boa escolha, já que dava uma ótima vista da praça.
O que Karen fez, me surpreendeu. Ela simplesmente me abraçou. Nós nunca nos abraçamos, e eu nunca vi o pessoal da Franqueza fazendo isso. Era sempre um aperto de mãos.
― Entendo que esteja preocupada com sua família ― ela murmurou para mim ― Não se preocupe, tenho certeza de que eles estão bem.
― Não sei como esperam que eu me desligue dessa parte da minha vida de um dia para o outro ― suspirei.
Ela afastou-se de mim, pegando as minhas mãos com as suas.
― Um dia, isso vai se tornar mais fácil ― disse.
― Sua família está aqui ― lembrei-lhe.
― Eu sei, mas não podemos nos encontrar. Isso atrapalharia o treinamento ― ela disse, como se fosse óbvio ― E, quando eu me formar, serei só eu. Em um apartamento, talvez dividido com alguém, talvez não. Entende o que quero dizer? Nós crescemos, apesar de dividir ou não a facção com nossos pais.
Não conseguia imaginar como seria se fosse comigo, tendo que me manter afastada de meus familiares, para seguir a minha vida. Parecia ser bem pior do que não vê-los por dias.
― Vamos para o dormitório ― suspirou Karen ― Hoje foi um dia horrível!
Só Todd e Steven estavam lá. Mischa, Nolan e Jesse deveriam estar bêbados em algum canto. Pacey e Reilly, talvez, estivessem conversando sobre Petal, tentando se consolar, e lembrando da pessoa maravilhosa que ela foi.
― Sabe, Pacey ia pedi-la em namoro ― Steven disse, no meio do silêncio do dormitório.
― Quando? ― perguntou Karen, olhando para o teto, do seu lugar no beliche.
― Antes da doença se manifestar ― disse Steven ― Conversamos sobre isso, quando ele estava bêbado.
― Qual das trinta vezes? ― debochei.
― No mesmo dia. Quando ficamos de “castigo” ― Todd disse, dessa vez ― Isso só me faz pensar no quanto a nossa vida pode ser curta...
― Não! ― Karen o interrompeu ― Por favor, não comece. E não me proponha algo que não proporia se não estivesse mexido pelo funeral.
Pude ver a sombra de seus braços, como se rendendo. Embora, não precisasse ver para saber que ele faria isso, estava acostumada demais com eles, já sabia suas reações a diferentes situações.
― Trudie estava pensando em colocá-la para identificação de criminosos ― comentou Steven ― Ela era boa em desenho... Para fazer um retrato falado.
― Nunca vi alguém fazendo isso ― disse Karen, parecendo admirada.
― Deve ser fantástico ― concordou Todd.
― Parece que há um pouco da Amizade por aqui ― brinquei ― Minha mãe se daria perfeitamente bem nessa profissão.
― Eu não sei. Eles devem contratar pintores para cuidar disso, mas preferimos pôr gente da nossa mesma facção para trabalhar por aqui ― Karen deu de ombros.
― Você vive fazendo isso ― ri, e ela me olhou confusa ― Em um momento, fala do pessoal da facção como “eles”. Em outro, fala em “nós”.
― Somos da Franqueza, Aeryn ― ela disse, com naturalidade.
― Sei disso ― retruquei.
A porta do quarto abriu-se, Pacey e Reilly foram para suas camas, calados. Os três bêbados não demoraram a aparecer também.
― A programação amanhã será normal ― disse Trudie, ignorando os três.
Parece que ela respeitava a forma de luto da Audácia, já que não os criticou.
― Falou ― disse Todd.
As luzes apagaram-se, e eu abracei o sono, com vontade.
Naquele dia, celebramos a vida e a morte de Petal Closs, e eu revi antigos amigos da Amizade, que estavam sofrendo, sem que eu pudesse fazer algo para ajudar. A impotência não foi embora, ela só tornou-se mais forte. E a tempestade parecia longe de acabar.
― Vocês estudaram em “história das facções”, no colégio, os manifestos das facções. Quem se lembra do manifesto da Audácia? ― Trudie perguntou.
Os ex-audaciosos e Pacey levantaram a mão, confusos. Todos nós estávamos, na verdade. Qual era o objetivo daquilo?
― Perfeito! É um bom número! ― ela elogiou ― Agora, quem lembra do manifesto da Abnegação?
Só Pacey levantou a mão.
― Mesmo seus manifestos são suscetíveis ao esquecimento ― murmurou Trudie, logo voltando sua voz para o tom normal ― Quem se lembra do manifesto da Erudição?
Pacey e Reilly levantaram as mãos.
― Dois são melhores que um ― disse Trudie ― Manifesto da Amizade?
Revirei os olhos, antes de levantar a mão, junto com Pacey.
― Claro ― ela riu ― Pacey, você parece saber todos os manifestos, mas não o repreendo por isso. É útil! Não esqueçam de tudo o que aprenderam em suas antigas facções, essas informações podem vir a ser úteis.
Ela respirou fundo, antes de voltar a falar.
― Agora... Quem se lembra do manifesto da Franqueza? Essa eu quero ver! ― disse, pulando empolgada, o que era estranho nela.
Karen levantou a mão, junto com Pacey, Reilly, Mischa, Todd e Steven. Nolan e Jesse levantaram os polegares para mim, éramos os únicos a não saber.
― Já estava pensando que estavam dormindo ― ela disse para Karen, Todd e Steven, divertida ― Perfeito! Então, é isso que vamos olhar hoje. Sei que pode parecer ridículo, mas não posso formar “alunos” que não saibam o manifesto da própria facção!
― Como um animal selvagem, a verdade é poderosa demais para ser mantida aprisionada ― citou Mischa.
― Apropriado para uma antiga membra da Audácia ― brincou Nolan.
― O manifesto é cheio de frases ― dizia Trudie, quando Holden bateu na porta ― Esperem um momento!
Ela afastou-se, indo para a direção dele. O homem sussurrou em seu ouvido, e seu rosto parecia mais animado, se é que isso era possível.
― Parece que teremos de adiar nossa revisão de manifestos ― ela disse, aproximando-se de nós ― Lembram-se da quarta fase? Daremos início a ela agora, mas não se tratará de uma simulação. Será um julgamento real! Dois sem facção foram capturados.
― A justiça nunca falha ― murmurou Karen, satisfeita.
Entretanto, não me senti feliz com aquilo. Por que precisariam ser presos?
Meus pensamentos não saíam de Eleonore, Austin, Rachel e Evan.
Algum deles teria sido capturado?
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