O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 43
Capítulo 43




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Se no enterro da sua mãe não havia ninguém, exceto ele, no do seu pai não havia onde se aboletar mais ninguém. O padre tornou-se querido num curto espaço de tempo em toda a comunidade e bairros vizinhos pela ausência de papas na língua, transformando o linguajar arcaico dos discursos em algo acessível ao povo que mal sabia ler, que dirá compreender tantos termos difíceis que lhe fugia a compreensão. Ainda se comentava a boca miúda os boatos sobre o seu passado, mas quando se conhecia a figura pessoalmente, e o viam em ação atrás do altar, todas as dúvidas se dissipavam como fumaça ao vento.

A igreja enviou um padre para fazer as orações durante o féretro e encerrar de vez a curta existência da Paróquia de Santa Meredite, que no entender da cúpula, só funcionava com Franco à sua frente. Assustaram-se com as quantias que estavam guardadas no cofre da paróquia, resultado das doações massivas dos seus fiéis, resultado direto do carisma que o homem emanava, trazendo gente rica dos extremos da cidade para conhecer os seus sermões. Fora de bom tom perdoá-lo. Pena que essa alegria durasse tão pouco. A cúpula só não aceitaria pressões populares caso começasse um movimento popular querendo canonizá-lo, aí seria um pouco demais. - Um padre suicida feito santo! Não, não – Pensava o Padre Geraldo com uma pontada de inveja lhe cutucando o juízo, o que por si só já era um pecado capital.

Sob apupos e gritos de ordem, arrematados com aplausos vindos da multidão, os coveiros desceram a corda para repousar Franco no seu descanso final.

— Foi lindo! Só não queria que fosse o meu coroa ali dentro. Agora não tenho mais nada nessa vida! – Lamentava Gemima entre soluços de choro, que perdera tudo no incêndio da sua casa e fora abrigada por Selma e Diolindo.

— Calma mulher, você é muito nova. Já viveu muita coisa mas ainda têm muito pela frente –Selma procurava acalmá-la, abraçando-a e encaminhando-se para a saída do cemitério, com Dolindo ao seu lado, calado e olhando o povo se dispersar.

Muitos vieram cumprimentar a sua mão, e nunca em toda a sua vida fora tão popular. Tratavam-no como se fosse filho de um santo. Senhoras de idade beijavam as suas mãos e, até uma criança chegou-lhe a pedir a sua bênção. Algumas pessoas queriam apenas tocá-lo, outras diziam palavras de conforto esperando que ele agradecesse de volta, apenas para ouvir a sua voz, ou ter um segundo da sua atenção. Levaram bem mais que uma hora para conseguiram alcançar o alto do morro, onde ficava o seu novo lar.

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Mediante o pagamento de uma soma bem acima do razoável, Plínio convenceu o Padre Geraldo a levar a imagem de Santa Meredite para sua casa. Com a promessa de que ele não a tornasse objeto de culto e nunca a tirasse de casa, tendo em mente que se tratava de um objeto de arte e nada mais. Acomodaram a imagem no banco de trás do táxi, passaram o cinto de segurança neles e na santa, e rumaram para a sua cobertura felizes da vida. Ainda não sabiam se seria de bom tom lavá-la para limpar os miolos do Padre Franco, pois aquilo dava mais autenticidade a sua fé.

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Depois de se recuperar do choque do suicídio de Franco, Almeida andava mais animado do que nunca. Passara no boticão e encomendara uma fórmula nova que dava uma animada em pessoas de sua idade. Uma chacoalhada necessária para dar conta do cio de Florinda que se acentuava cada dia mais. Depois de uns dias começou a sentir o efeito positivo da poção mágica e logo encomendou-a em quantidade. Sentia-se como um garoto novamente, com a diferença que evitava fazer alguns malabarismos na cama devido a sua coluna doente.

O sexo substituía os exercício que o seu médico sempre o mandara fazer, quando sua vida se resumia a encostar a barriga num balcão. Emagreceu uns quilos, passou a vestir-se melhor e, depois de muita insistência, aparou o bigode deixando-o rente a boca. Seu sentimento era que estava cortando as asas de um passarinho, mas depois de ter sentido o gosto da genitália de sua mulher, percebeu que o sexo oral ficaria melhor sem tanto pelo para atrapalhar, já que até a bacurinha de Florinda era raspada.

Mas a melhor notícia de todas veio três meses depois, quando soube por uma Florinda radiante que ela estava esperando um filho dele. Pensou que ia infartar de tanta alegria. Já não se imaginava fértil naquela idade, mas se andava orgulhoso de si, desfilando com uma mulher quase trinta anos mais jovem que ele, agora mesmo era que queria sair até em capa de revista. Enquanto os pés de acerola não davam fruto, encomendou um caminhão da fruta para fazer seus experimentos. Florinda ficava alisando a barriga já acentuada, sentada numa cadeira de balanço no quintal, admirando o seu marido brincar de fazer a poção mágica da vida dele. Pensava muito em Babi, mas preferia acreditar que a sua filha reencarnaria naquela que estava esperando.

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Quando já namoravam por dois meses, Fredson teve certeza daquilo, depois de vários pequenos detalhes salpicarem na sua consciência aqui e ali. Fuçando a biblioteca de David, durante uma curta ausência dele, deparou-se com um livro que lhe chamara por demais a atenção... RECEITAS DE CARNE HUMANA PARA CHURRASCOS DE FIM DE SEMANA...Enquanto folheava a obra macabra fora pego em flagrante.

— Vejo que encontrou o meu segredinho – Disse David numa entonação de voz até então desconhecida para ele.

— Não é possível. Você também? – Respondeu assustado, deixando o livro cair no chão.

— Eu entendo quando diz...você também...acredite. Deixe-me apresentar novamente. Sou meio irmão de Helena e Alice, que estão presas por canibalismo entre outras coisinhas mais, exatamente por sua culpa. Estava atrás de você, mas até então não sabia que eu e você já nós conhecíamos intimamente e há tanto tempo.

— Meio irmão?

— Meu pai teve dezoito filhos com oito mulheres diferentes. Comeu doze dos filhos e sete esposas, pois a última não deu tempo.

— Porque?

— Nós o comemos antes! – Disse numa calma alarmante, enquanto desembainhava uma faca de pesca da parte de trás do cós da calça.

— O que você pretende fazer?

— Que tal jantarmos o João hoje? Com isso posso te manter como amante o resto da vida, desde que você se comporte, é claro.

— Não. Você pode me comer, da maneira que você quiser, mas para isso terá que entregar o João a uma pessoa, no endereço que vou te dar. Caso contrário me jogo daqui agora – Disse abrindo a janela do nono andar de um prédio de apartamentos, no centro da cidade.

— Não! Não faça isso. Mas quero uma prova de que o que você está falando é verdade.

— Coma um dedo meu – Retrucou mostrando o mindinho da mão direita.

— Quero o bife da sua batata.

— Tudo bem. Você vai arrancá-la, mas só vai comer quando voltar.

— Negócio fechado.

— Quero ver o João antes.

— Só ver. Não deixarei pegá-lo.

— Traga a assinatura dessa moça no papel, como uma prova que você entregou o bebê. Aliás, leve a sua máquina polaróide e tire uma foto com ela nos braços de Selma. Diga que é o filho de Clarice que você está entregando e não precisa dizer mais nada.

— Vou fazer melhor. Você vai amarrado no meu carro e vai testemunhar a cena, já que não acredita em mim.

 

A incisão fora rápida e certeira como se um açougueiro estivesse cortando um bife de contra filé. Na hora não sentiu nada, mas em seguida era como se sua carne estivesse pegando fogo. David providenciou estancar o sangramento com um pano embebido em álcool para evitar infecções e fez uma atadura improvisada. Colocou-o no banco de trás amarrado e amordaçado, e a cestinha com João no banco do carona e, saíram.

 

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— Gente eu não quero incomodar. Eu posso voltar pra minha casinha lá no interior – Dizia uma Gemima destroçada por dentro, ainda sem acreditar nas tragédias seguidas que abalaram os seus alicerces.

— De jeito nenhum, já conversei com Diolindo e ele quer você aqui com a gente, minha flor. Ele me conta tudo Gemima. Tudinho. Eu sei o que aconteceu lá no acampamento entre vocês dois.

A gordinha tomou um susto e se afastou instintivamente achando que a mulata iria lhe dar uma coça. Ao invés disso, Selma a puxou para perto de si e tascou-lhe um beijo na boca digno de filmes de putaria. Ela molhou a calçola na mesma hora.

— Ai, ai, ai – Disse ainda sem fôlego e vendo que Diolindo assistia tudo na porta do quarto com um sorriso no rosto.

— Mas você só fica se quiser – Disse ele finalmente se aproximando e também dando-lhe um beijo pra acabar de vez com qualquer desconfiança.

— É tudo o que mais quero agora, ficar com vocês pra sempre.

 

Os três se levantaram e ficaram abraçados, sabendo que o momento de fazerem amor juntos não tardaria. Como saindo de um devaneio Gemima lembrou.

— Vixe que por causa de tanta coisa, a morte do meu coroa, o incêndio lá de casa e o enterro, eu esqueci de entregar a Diolindo um envelope.

— Envelope? – Perguntaram Selma e o filho do homem ao mesmo tempo.

— É. Ele disse que só podia te entregar se alguma coisa ruim acontecesse a ele. Como coisa pior que a morte não têm, então eu tenho que cumprir o último desejo dele agora – E saiu pra buscar a carta lacrada, que guardava como a sua própria vida, dentro da bolsa.

Quando entregou o envelope em mãos dele, alguém batia à porta.

 

Selma se antecipou e a abriu para ver um homem másculo, bem vestido e perfumado, com um cabelo ensopado de gomalina e um jeito de que não gostava muito da fruta, carregando um cestinho de vime com um bebê lindo dentro. A criança estava desperta e, tinha o dedão do pé enfiado dentro da boca fazendo as vezes de chupeta.

— Dona Selma?

— Sim. E quem é o senhor?

— Isso é pouco relevante. Uma pessoa pediu que viesse lhe entregar essa criança, e avisar que se trata de João, filho da sua irmã Clarice – E levantou a cesta para entregá-la, junto com uma bolsa azul com detalhes infantis.

 

Selma ainda sem acreditar no que ouvira, com Gemima atrás de si começando a suar frio, estendeu a mão e segurou a cesta.

— Quem te enviou?

— Não posso dar mais nenhuma informação, esse era o combinado – E deu-lhe as costas para voltar ao veículo estacionado a boa distância da porta, o que por si só era estranho.

Ela virou-se para dentro de casa com o cesto na mão e viu Gemima cair desmaiada no chão da sala. Diolindo correu para acudi-la ao vê-la caindo, e sem entender o que ocorria, levou-a para a cama de casal, enquanto Selma procurava na bolsa do bebê uma mamadeira para dar-lhe água.

 

Com a gordinha recuperada e o bebê hidratado, ambos em cima da cama, sob a vigília do seu casal, ela teve coragem de perguntar.

— Selma, me faça um favor. Veja se o bebê têm uma manchinha de nascença atrás do pescoço e me tire dessa angústia!

Ela tirou o bebê com cuidado do cesto e, levantou um pouco a sua cabecinha para que Gemima mesma respondesse a sua pergunta. Lá estava o sinal passado de mãe pra filho há tantas gerações. Para fazer o casal entender o que se passava, ela própria levantou o seu cabelo e mostrou a sua. Ainda assim, com a falta da compreensão do quadro como um todo pairando no ar, ela pôs-se a explicar a origem daquela criança com todos os detalhes sórdidos, para horror dos dois que escutavam sem interrompê-la. Por fim, já mais calmos, entregaram João aos braços da sua mãe verdadeira.

— Agora somos uma família! – Declarou Selma já se debulhando em lágrimas, sabendo que já não tinha obrigação de engravidar, pois agora tinham um filho para criarem juntos.

 

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David desceu o carro pela garagem, estacionou, e desamarrou Fredson, que vira o seu namorado cumprir a sua parte na promessa. Subiram pelo elevador de serviço sem trocarem uma palavra. Já não era mais necessário. Chegara a sua vez de cumprir a sua parte no trato, e o faria com gosto, literalmente. Estava perdidamente apaixonado por aquele homem, e se alguém tinha o direito de comê-lo, em qualquer sentido que fosse, seria ele. O sexo era algo transcendental. Não havia uivos animalescos, nem movimentos rápidos ou tapas, ou qualquer coisa de coitos convencionais. Eram cúmplices, moviam-se como répteis um dentro do outro, entrelaçados, de olhos abertos para aproveitarem cada expressão facial de prazer do outro. Agora ele quase queria ser comido para conhecer de perto as entranhas do homem que desejava com ardor.

 

— Pronto meu amor, agora estamos livres para saborear a vida a sós. Não se preocupe que não vou fazer você sentir dor, nem quero você morto hoje. Quero muito que comamos a sua carne juntos.

— Não compreendi essa parte.

— Vou te degustar aos poucos, com vagar, e se você quiser até pode fazê-lo também. Será uma experiência gastronômica ímpar. Para acompanhar a iguaria, venho estocando os melhores vinhos que pude achar.

— Faça isso. Eu também quero muito que você aproveite o que puder de mim, até o fim.

E se perderam num longo beijo que culminou com a placidez de uma trepada de despedida. Despedida de como Fredson viera ao mundo. Inteiro.

 

Primeiro foi a metade da perna esquerda, do joelho pra baixo. Lhe foi aplicado um anestésico que não influenciaria no gosto da carne e tampouco o deixaria desmaiar de dor. Dali, o canibal preparou nos dias seguintes... bouef bourguignon, tournedor rossini e penne a bolonhesa. A cada membro amputado os pratos ganhavam ar de uma sofisticação maior e, Fredson se encantava com a alquimia que o seu amor bruxo fazia com os temperos. Quando passaram para os braços, David passou a alimentá-lo. O gran finale fora deixado por último. Dos seus glúteos seriam feitos torresmos para acompanhar a carne do seu peito que seria servida com um molho de ervas frescas. A única coisa que David lamentava era que o seu grande amor não poderia degustar as suas próprias vísceras, coisa que faria só, não sem antes dissolver os seus restos com ácido na banheira.

A última coisa que Fredson viu no apagar da consciência, foi a sua avó Geruza lhe esperando no céu com um rolo de massa na mão. Não sabia se ela estava fazendo a massa dos pastéis de goiabada que tanto gostava na infância, ou se era pra lhe dar umas porretadas por alguma malcriação que ele fizera.

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No afã da chegada de Joãzinho, Diollindo esquecera por completo do envelope que Gemima tinha lhe dado. Catou-o no chão e abriu, aprumando as vistas para traduzir os garranchos de bêbado.

 

Lindinho,

 

Se você estiver lendo essa missiva é porque eu bati com as quatro, morri. Tenho apenas um pedido a fazer e uma informação a dar. Ambas são importantes e as peço como um último desejo.

Surrupiei uma grana do cofre da igreja e fiz um seguro para a casa em que vivi com Gemima, a que foi sua um dia. Sei como ela é desastrada e algum dia ela poderá precisar. Tomara que não, pois prefiro que o seguro morra de velho, como eu. Também deixei uma mala de dinheiro pros gastos dela dos próximos anos. A igreja é um bom negócio meu filho. Essa mala está escondida debaixo da cama do quarto de hóspedes da sua casa, aquele que você  nos abrigou enquanto tocávamos o grosso da reforma que Gemima quis fazer na sua casa velha antes de mudarmos. Se você já tivesse achado a grana eu já saberia e teria explicado.

 

A informação que tenho pra te dar é delicada, mas nunca fui de fazer muitos arrodeios, portanto lá vai. Você têm um irmão gêmeo. Quando Dirce pariu, saíram dois bacuris de dentro do bucho dela. Com o primeiro ela ficou feliz, que foi você, mas com o segundo ela fez cara de nojo. O bichinho não tinha o cérebro bem formado e tinha uma cabeça miúda como um alfinete. Eu entreguei ele para uma casa de caridade da igreja.

 

Agora tenho uma surpresa pra você. Não me xingue de filho da puta. A apólice do seguro e o endereço do seu irmão estão dentro do bolso do meu paramento novo que pedi a Gemima comprar para quando eu partisse desse mundo. Venha me visitar! Ah! Aproveite e me traga uma garrafa de pinga.

Com amor e saudades,

Papai.

 

— Fiiiiiilhooooo da puuuuuuutaaaaaaaaa!

 

FIM.


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Notas finais do capítulo

Espero realmente que tenham gostado desse primeiro rascunho de O CAMALEÃO SIDERADO. Sei que há erros e incongruências no decorrer do texto, coisas de ortografia e concordância, bem como fios soltos. Nada que comprometa a leitura. Do início ao fim foram 65 dias de escrita ininterrupta, quase 200 horas de escrita, fora pesquisa, e notas feitas no meio da madrugada. Espero ter alcançado o objetivo de entreter e ensinar algo. Agradeço aqueles que acompanharam desde o início a publicação dos capítulos e em breve retorno para contar outra estória.
Marcelo Bretton.



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