O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON
Quando terminaram de rezar, Diolindo chamou a atenção de Selma para uma luz acesa na estrada a um quilômetro adiante. Ela espremeu os olhos e confirmou também a sua existência. Resolveu ir buscar ajuda. Diolindo também saiu do carro, mas não sem antes pôr o dedo na cara do seu pai.
— Se você tentar alguma coisa na nossa ausência, eu não respondo por mim quando voltar.
— Calma Lindinho – Retrucou o velho com medo das faíscas que saiam do seu olhar – Prometo que serei um bom velhinho, estilo papai noel, mas sem aquele barba branca lavada com sabão em pó – Completou com as mãos no alto.
Começaram a caminhar pelo acostamento da estrada apenas com a luz da lua como guia. De fato era uma estrada com tráfego quase inexistente, e pelo jeito, menor ainda à noite.
Ao aproximarem-se da luz logo perceberam tratar-se de uma barraca improvisada com estacas de madeira e maços de folhas dependuradas por todos os lados. Estacionado nos fundos havia um vetusto caminhão guincho. Dentro da barraca a iluminação era feita por um lampião a querosene aceso e um homem magro sem camisa deitado numa rede, roncando alto.
Bateram palmas para despertá-lo.
— Quê....como! – O homem levantou de um pulo assustado e logo sacou um revólver trinta e oito imaginando coisa ruim.
— Calma moço, viemos em paz. Estamos com dois pneus furados a menos de um quilômetro daqui e precisamos de sua ajuda – Disse Selma calmamente esperando que a arma não disparasse sem querer ou ele querendo.
— Ajuda? Eu lá tenho cara de borracheiro, caralho? – Cuspiu o homem de aparência doente e vestido com uma calça de tropeiro, se aproximando e apontando o revólver para os dois e em seguida para a estrada. – Vamos andando, quero ver a situação – Ordenou, pegando a camisa que repousava no encosto de uma cadeira sem assento.
— Vocês não fazem ideia de onde tão, né?
Com os dois balançando a cabeça negativamente, prosseguiu.
— Aqui é o caminho do epadu. Aquelas folhas que cês viram ali no meu comércio num é pra fazer chá não viu? – Afirmou dando uma risada sinistra. – Mas já tenho conhecimento que inté é remédio na cidade grande. Só se for anestesia de preibói! – E desatou a rir enquanto apressava o passo dos dois pra ver se algo no carro poderia lhe interessar, afinal no dia seguinte teria que pagar a propina da polícia que lhe visitava com mais pontualidade do que a menstruação de sua Gemima.
— Qual é a sua graça? – Falou Diolindo pela primeira vez.
— Me conhecem aqui na região por Godô, mas sou mermo é Godofredo. Puta nome feio que minha mãe me deu. Acho que era o nome de um papagaio de estimação que ela tinha e morreu de velho.
— O meu é Diolindo.
— Puta que pariu, consegue ser mais desgraçado que o meu! – E o homem armado ria mais esquisito do que uma saracura gripada.
Selma vinha preocupada com a reação que aquele bandido pudesse ter ao ver o padre e Desirée no carro. Também enxergava os lampejos de sanidade no seu homem que tentava puxar assunto com o homem para deixá-lo menos nervoso. Ela gostava daquele outro eu dele. Mas também sentia falta do homem desamparado e perdido. Do olhar de peixe morto que a deixara de quatro e sem reação. Faria de tudo pra manter os dois por perto.
Ao se aproximarem do carro o traficante ficou alerta.
— Vocês não disseram que havia mais gente no carro – Afirmou desconfiado olhando pra todos os lados. Podia ter mais alguém mijando lá dentro do mato.
— Você também não perguntou! – Bradou Selma com raiva se arrependendo em seguida.
O bandido deu uma volta completa no carro sob os olhares de Franco que logo fez o desenho da situação e juntou as mãos como um padre de verdade faria.
— Vixe Maria, um padre! – Disse o homem fazendo o sinal da cruz com o cano do revólver.
— Estamos indo a um casamento num sítio – Mentiu Selma.
— E uma...uma...boneca? Vestida de noiva? É alguma brincadeira isso? – Perguntou o homem alterando o tom de voz de respeitoso para desconfiado.
— Meu filho – Franco se esforçou para fazer uma voz calma – Estamos levando o manequim vestido para não amassar o vestido. É importante que nos ajude para poder unir duas almas apaixonadas que nos aguardam.
— E esses dois aí? São o quê?
— Padrinhos da noiva. O tempo urge. Chegue aqui perto para que eu te abençoe.
O bandido que parecia ainda ter algum apego com a religião, abaixou a cabeça e aproximou-a da janela. Com uma cabeçada seca e certeira, Franco abateu-lhe num só golpe. O homem se esparramou no chão com estrondo em tempo de pensar que hoje não ia comer o ensopado de tatu que Gemima lhe prometera pro jantar.
Franco abriu a porta do carro e pegou a arma guardando por baixo da batina sem que os outros vissem.
— E agora? – Perguntou o ex-padre sob os olhares surpresos dos dois que ainda não acreditavam na capacidade de combate do idoso. Apesar de forte já ia longe o tempo em que ele poderia se permitir tais traquinagens.
— Há um caminhão guincho do lado da barraca onde ele estava, mas acho que essa não era a sua principal atividade. Podíamos levar o carro até lá, pô-lo em cima do caminhão e chegar no sítio, deixar o carro e depois despachá-lo.
— E o homem? – Questionou Diolindo abaixando-se para fazer um rápido exame corpo de delito na criatura abatida.
— Vamos ter que levá-lo junto – Respondeu a mulata sabendo que no momento em que aquele bandido acordasse ia arrebanhar seus comparsas para ir atrás deles.
O ex-padre entendendo o recado e vendo Selma dar novo uso ao seu lenço de cabelo, e Diolindo tirar o seu cinto, tratou de sacar fora a estola para usá-la como mordaça. Com o homem empacotado, colocaram-no no porta malas e levaram o carro com cuidado até o local.
Selma entrou na barraca coberta de folhas suspeitas e viu um molho de chaves em cima de um banco ao lado da rede onde o meliante estava deitado. Viu também uma garrafa de aguardente ainda cheia e pegou sabendo a quem presentear. Voltou para o caminhão velho e não fazia idéia de como dirigir aquele aparato arcaico de transporte. Como pôr pra andar aquele trambolho em pandarecos?
— Não se preocupem, meu pai tinha oficina e também um desses. Vocês estão diante de um Mack 1951, bicho duro, aguenta pancada. Pegou as chaves nas mãos da mulata e examinou o mastodonte com apuro. Abriu o capô e ficou admirando. – Motor Cummins da década de 70, não é original, mas é o melhor.
— Se puder abreviar o namoro eu apreciarei – Pediu Diolindo impaciente, mas ao menos tempo impressionado com os conhecimentos do velho, que ligou o caminhão e fez descer a plataforma hidráulica, orientando Selma a subir o veículo nela, no que foi prontamente atendido, já que queriam sair dali o mais rápido possível.
O velho em roupas sacerdotais engatou a primeira marcha e, com Selma e Diolindo na cabine, arrancou pela estrada. Diolindo olhava pra trás com medo do bandido se desvencilhar das suas ataduras e alcançar Desirée que estava impassível olhando para ele como se a perguntar porque ele não estava ali com ela? Ele respondia com o mesmo olhar perdido. – Calma amor, não vai doer, tá perto.
— Vocês não assistiram Maximum Overdrive? Onde vocês estavam crianças? É um filme de suspense que em determinado momento há uma parada de caminhões Mack andando sozinhos em círculo tocando o terror num posto de gasolina! – Bradava o velho empolgado com outro tipo de embriaguez que não a etílica. Parecia uma criança num corpo caquético discorrendo sobre rebeldia sem causa. A todo momento sentia um impulso de puxar a cordinha da buzina estridente, mas se conteve com as mãos formigando de vontade.
Selma decidiu ligar o rádio pra ver se funcionava e, para sua surpresa, com som nítido e claro. Parecia uma rádio de notícias local e logo se ouvia a voz do locutor dando um alerta de última hora com todos aqueles jingles que logo entrava no subconsciente como algo sinistro que estaria por vir.
— ...encontradas num local ermo de uma favela, contendo imagens de crianças nuas e também uma fogueira improvisada com cinzas de ossos humanos. Esse homem, Luiz Franco Salles, padre excomungado da igreja católica por pedofilia é considerado foragido e já está sendo procurado em todo território nacional. Quem tiver alguma pista por favor entre em contato a polícia através do telefone.....
O silêncio na cabine do caminhão que seguia pela estrada noite adentro, era sepulcral.
Selma girou o botão e encontrou uma rádio que lhes causasse menos dor.
Você bem sabe
que eu não lhe prometi um mar de rosas
Nem sempre o sol brilha
Também há dias em que a chuva cai
Se você quer partir pra viver
por viver sem amouuuu
Não tenho culpa
Eu não lhe prometi um mar de rosas
Como não havia surtido muito efeito, desligou o aparelho e seguiram em silêncio com as primeiras gotas de uma chuva noturna que chegava acompanhada de muitas dúvidas. Diolindo tergiversava com a sua linha de raciocínio peculiar. O diamante. Aquele diamante iria ter uma outra finalidade. Venderia a casa e fugiria da comunidade com Selma e Desirée para sempre. Os cobradores não poderiam tomar a sua mulher por falta de pagamento por não saberem onde se encontravam.
Advogados eram caros e pra evitar que seu pai fosse pra cadeia teria que contratar alguns. Ele sabia que sem flagrante ele poderia responder em liberdade, a menos que aquelas cinzas de ossos significassem uma encrenca maior do que imaginava. Mas porque ele queria ver o velho fora da cadeia? A resposta era.... ele era... a única pessoa que tinha o seu sangue. Podre, bem verdade, mas era o seu pai. Olhava o semblante do velho ao volante do caminhão e pela primeira vez teve uma centelha de orgulho dele que logo se esvaiu com o ribombar da sua voz.
— Imagino que essa garrafa aí seja pra mim.
— Não beba se for dirigir – Ironizou Selma entregando a bebida ao ex-padre.
— Já fiz coisas que exigissem mais da minha atenção.
— Por exemplo?
— Uma suruba com mendigas.
— Seu libertino duma figa.
— Mas o meu cérebro ainda está a altura do meu fígado.
Ela fez uma careta com ojeriza a toda aquela conversa de sexo tabu, mas sabendo que ela própria era uma transgressão para muitas cabecinhas ditas normais. Sabia que de perto, bem de pertinho mesmo, ninguém era normal.
— Êi mulata, já rezei missa com substância nocivas trafegando no meu sangue e no meu cérebro. Láudano, peiote, corydrane, mescalina, benzedrina, semoxydrine, eukodol, isso daí fora as best sellers. Mas o que faz a minha cabeça mesmo é a birita. É uma forma de suicídio lento. É como morrer todo dia e ter uma nova chance no dia seguinte. Essa aqui! – Ralhou sacudindo o líquido.
E seguiram envoltos cada qual em seus pensamentos, absorvendo os sacolejos da estrada que ficava cada vez mais revolta, até a porteira do sítio de Clarice, irmã de Selma, que não sabia que a sua irmã adotiva chegaria na sua porta com uma história pitoresca pra contar, e todos os seus personagens vivos para provar que nada era fruto da sua imaginação.
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