Pais e Filhos escrita por Luh Castellan


Capítulo 1
Hanna – Os fios


Notas iniciais do capítulo

Seja bem vindo! Tenho grandes planos para essa fic e me diverti bastante escrevendo-a, então espero fortemente que goste.
Cada personagem possui uma música tema, na qual a história é baseada. A da Hanna é a mesma que envolve toda a fic, ou seja, Pais e Filhos – Legião Urbana.
Se ainda não a conhece, pode ouvi-la clicando no link que deixarei no início do capítulo e/ou ver a letra aqui http://www.vagalume.com.br/legiao-urbana/pais-e-filhos.html
Boa leitura :)

PS: Tori é o apelido da Victória e Lipe é o apelido do Felipe, caso haja dúvidas.



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Hanna

“Nada é fácil de entender” — Pais e Filhos

A realidade pode ser dura, às vezes. Não como acordar as cinco da matina, no meio de um sonho maravilhoso, ou deixar seu sorvete cair no chão depois de ter gastado suas últimas moedas para compra-lo. Não é desse tipo de “vida cruel” que estou falando.

Esta noite tive um pesadelo terrível. Sonhei que meus pais haviam me abandonado e meu namorado terminou comigo. Também sonhei que minhas notas no colégio iam de mal a pior, e eu precisaria tirar pelo menos um 100 nas próximas provas se eu não quisesse reprovar. E eu não tinha tempo para estudar, pois como eu estava sozinha, precisava trabalhar para me sustentar. No meu sonho, meu chefe era um velho barbudo que soltava comentários nojentos para mim durante o expediente, e tentava me tocar em todas as ocasiões nas quais estávamos a sós. E eu não podia reclamar, senão poderia perder o emprego e morreria de fome.

Na parte em que ele me trancou na sua sala e estava levantando a minha blusa, eu finalmente acordei. Mas minha situação não melhorou por causa disso. Na verdade, era bem pior, porque tudo aquilo era real.

Pais e Filhos

Levantei da cama com relutância e segui para o banheiro, tomando o cuidado para não pisar em nenhum dos cacos das garrafas quebradas espalhadas pelo quarto. Fiquei pensando o que meu pai diria se visse aquilo. Era um costume meu, ficar imaginando suas reações diante das variadas situações do dia a dia. Eu levava esse costume desde pequena, talvez para tampar o buraco que ele deixara na nossa família.

Meu pai abortou assim que soube da minha existência, quando eu era apenas um feijãozinho pulsante no útero da minha mãe. Mas ela não fez o mesmo, resolveu me criar sozinha, com todas as dificuldades do mundo. Isso é uma das coisas que mais admiro em Dona Rosa, apesar de tudo. Nunca conheci meu progenitor, sequer sei seu nome. De qualquer forma, isso não faz mais diferença.

Minha mãe fez o papel de “pãe” por muito tempo até que, dois anos atrás, conheceu outro homem. Alejandro era seu nome. Descendente hispânico, galã, boa pinta... Não demorou até Dona Rosa cair de amores por ele. A partir daí nossa pacata vida começou a desmoronar.

O cara tinha um emprego misterioso que rendia bons frutos, por isso convenceu minha mãe a deixar o trabalho. Trazia mimos e presentes para nós duas, me tratava como se fosse uma filha. De repente, Rosa começou a ficar estranha, chegando tarde em casa, andando desconfiada e falando pouco. Seu marido (que me recusei a chamar de “padrasto”) já costumava fazer isso, mas estranhei o comportamento, vindo dela. Alejandro estava mostrando a verdadeira face, explodindo por qualquer besteira, gritando e brigando com minha mãe quase 24h por dia.

Eu preferia não me meter, mas às vezes a ouvia chorando de noite. Aquilo doía bastante, vê-la sofrer sem poder fazer nada.

Um dia, recebi uma ligação desesperada dela, afirmando em prantos que “deu tudo errado” e que eu deveria encontra-la na delegacia. Quando cheguei lá, o delegado me contou tudo. Foi revelado o “emprego misterioso” de Alejandro, que era um dos chefes internacionais de narcotráfico da região. Ele foi preso, junto com Rosa, acusada de compactuar e ser cúmplice dele. Grande parte do meu respeito por essa mulher esvaiu-se naquele dia.

E eu, com apenas dezessete anos, tive que carregar sozinha muito mais peso do que meus ombros podiam suportar.

Balancei a cabeça para afugentar esses pensamentos “otimistas” matinais e apressei-me em fazer minha higiene. Tentei dar um jeito nos meus desgrenhados fios castanhos, mas acabei desistindo, amarrando-os num rabo de cavalo desleixado. Quem visse meu cabelo atualmente não diria que já fora o longo, liso e brilhoso de outrora. Eu nem me dava ao trabalho de tentar cobrir as grandes manchas arroxeadas que cercavam meus olhos. Não aguentei mais olhar para o meu reflexo deplorável no espelho e deixei o cômodo.

A sala fedia a álcool, cigarro e comida velha. Afastei algumas caixas de pizza do meu caminho até chegar à porta, onde estava cheio de correspondência espalhada pelo tapete. A maioria eram contas de água e luz. Já haviam cortado a internet. Entretanto, um envelope em especial chamou minha atenção. O abri e não me surpreendi em ver uma carta do síndico. Ele avisava que eu deveria deixar o prédio em dois dias, senão ele mesmo mandaria desocupá-lo. Eu sabia que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Meu pouco salário ganhado na loja de autopeças não era o suficiente para pagar o aluguel.

Praguejando, amassei todos os papéis que segurava e os atirei pela sala, contribuindo com o pandemônio já instaurado ali. Bati a porta com força e deixei tudo para trás. Desci as escadas na esperança de que pior aquilo não poderia ficar. Porém, mais uma vez, a vida me passou a perna.

***

A escola estava o mesmo inferno de sempre. Os mesmos bonecos, vivendo suas vidas de mentira como se fossem reis do mundo. Eu estava tão cansada que cheguei a cochilar durante a prova de matemática. Ah... Foda-se, eu já estava ferrada mesmo.

A única parte boa foi rever meus amigos. O rosto sorridente das gêmeas, as brincadeiras de Lipe, as loucuras de Tori e muitas outras coisas foram a minha válvula de escape, a única razão de eu ter aguentado até ali. Mas eles não sabiam dos meus problemas. Sim, sabiam que eu tinha uma relação conturbada em casa, mas eu não os atualizei sobre as novidades da prisão da minha mãe e do meu padrasto traficante, além de tudo que isso ocasionou. Não sabia se era vergonha, mas eu preferia guardar aquela parte para mim. Não queria envolver meus amigos e meu namorado nisso.

E tinha Erik, aquele projeto de delinquente juvenil. Dentro dos seus braços era o único lugar no mundo onde eu me sentia verdadeiramente segura, onde todos os problemas desapareciam e só existia nós dois. Eu estava meio receosa de que os acontecimentos do meu sonho fossem algum tipo de “premonição”, mas afastei esse pensamento da minha cabeça. Minha vida já estava obscura o bastante para retirarem meu último raio de sol.

Tão sombrio quanto minha vida estava o pátio do colégio naquela manhã. Estava frio e chuvoso naquela manhã, diferente do clima quente da região. As várias árvores projetavam sombras nas mesas e bancos de pedra. Até mesmo o ânimo dos alunos com a aproximação das férias foi suprimido pelo maçante céu cinzento. Reconheci meu namorado apoiado desleixadamente numa árvore, não muito distante, conversando com alguns meninos. Me aproximei do grupo.

Erik foi o primeiro a me notar. Seus olhos pequenos apertaram-se quando ele sorriu para mim. A fina barba que contornava o maxilar estava por fazer, dando-lhe um ar mais maduro. Ele vestia uma jaqueta cinza sobre a camiseta branca do uniforme, e seu típico boné virado para trás, cobrindo seus cabelos escuros.

— Hanna!

Seu cumprimento foi sufocado quando me joguei em seus braços. Braços estes que estavam mais fortes ultimamente, devido aos trabalhos pesados na construtora. Inspirei profundamente e deliciei-me quando seu cheiro invadiu minhas narinas. Era de uns toques amadeirados, talvez pela combinação do sabonete com o perfume.

A sensação de estar com ele era inexplicável, como se sua simples presença fosse o sol que iluminasse meus dias nublados.

Depois que me soltei do abraço, os outros me saudaram com Oi’s e acenos de cabeça. Erik analisou-me.

— Como está?

Dei de ombros.

— Bem.

Ele franziu o cenho, incrédulo.

— Sei. — É claro que ele sabia que eu estava mentindo. — O que houve?

Há alguns meses, desde o incidente, ele vinha notando como eu estava diferente e sempre me questionava, mas eu desviava das suas perguntas.

— Nada — respondi mecanicamente.

Desviei os olhos para o chão. Temia que a mentira estivesse estampada neles, mais do que já estava.

Erik me puxou para um lugar mais afastado e segurou os meus ombros. Dessa vez ele não iria desistir.

— Fala sério — Pegou uma mecha do meu cabelo entre os dedos. — O que aconteceu com seu cabelo? O que aconteceu com você?

Eu estava tão deplorável assim? Seus olhos negros pareciam infiltrar no meu corpo e querer sugar de mim qualquer resistência. Lutei para permanecer firme.

— É... Complicado — suspirei.

— Então me explique — rebateu — Estou acostumado com complicações.

E ele estava certo. A vida dele era tão ferrada quanto a minha. Erik enfrentava problemas desde... O seu nascimento. Mas mesmo assim, eu não queria me abrir. Talvez por insegurança. Talvez por egoísmo, até. Talvez porque eu não queria começar a chorar em pleno pátio da escola. Ou talvez por causa de um orgulho idiota que não queria envolve-lo nisso, pois eu sabia que ele faria de tudo para me ajudar, e ele já tinha problemas suficientes para cuidar. Não queria me tornar mais um fardo.

Dado o meu silêncio, ele prosseguiu:

— Você tem medo, é isso? Escute, não irei te machucar, só quero te ajudar.

Neguei, balançando a cabeça.

— Você não entende...

Só percebi o que eu havia dito depois que as palavras saíram da minha boca. Ótimo, Hanna.

O rosto dele transformou-se em um misto de indignação, raiva e mágoa.

— Entenderia se você me contasse — As emoções listadas anteriormente eram visíveis no seu tom de voz. — Eu sempre te falei tudo sobre mim, todos os meus problemas e alegrias. Até se eu espirrar, você é a primeira a saber. Mas eu esperava que houvesse recíproca.

Dito isso, ele me deu as costas e começou a se afastar. O medo instaurou-se em mim.

— Erik, espere! — gritei, já correndo para alcançá-lo.

O garoto virou uma última vez. Seu olhar foi como uma lâmina atravessando meu coração.

— Eu não te reconheço mais, Hanna — cuspiu. — Você não é a garota que conheci. Não é a minha Hanna, nem a minha namorada.

Caí de joelhos no gramado, sentindo meu peito contrair-se num pequeno nó ao ver o meu sol ir embora.

***

Matei as últimas duas aulas. Ficar trancada numa das cabines do banheiro feminino, desmanchando-me em lágrimas, pareceu uma proposta mais interessante. Dessa vez, não as reprimi. Deixei os fios de água salgada trilharem caminho pelo meu rosto e pingarem no chão encardido, como se minha tristeza fosse levada pela correnteza.

Num dado momento, resolvi parar de chorar. Percebi que isso não traria minha mãe de volta, nem o Erik, nem um cartão de crédito sem limites. Ah, mamãe... Como eu queria seu colo agora...

Aproximei-me da pia e lavei meu rosto, tentando apaziguar os olhos vermelhos e o nariz inchado. O sinal estridente ecoou pelas paredes da escola, anunciando o fim das aulas. Tomei coragem para sair daquela “caverna” e ir procurar os meus amigos.

Encontrei-os numa das mesas perto da cantina. O cheiro de salgados fez o meu estômago roncar, e lembrei que não havia comido nada naquele dia.

Luana, como sempre, estava com o nariz enfiado no seu exemplar de O Código da Vinci. Sua irmã gêmea, Amanda, discutia com Felipe, provavelmente sobre algum jogo de futebol. O garoto parecia discordar do que ela dizia, gesticulando negativamente e fazendo seus cachos castanhos balançarem e baterem no rosto. Caio estava alheio a tudo, concentrado no seu Playstation portátil. Ele franzia as sobrancelhas grossas e mordia o lábio, enquanto movia os polegares fervorosamente.

— Hey — cumprimentei, quando me aproximei o suficiente.

— Oi, Hanna — Caio respondeu, sem erguer o olhar do jogo.

Luana e Felipe acenaram para mim, mas Amanda analisou-me com ar preocupado.

— O que houve?

Ótimo, essa era a pergunta do dia?

Eu abri a boca para negar novamente, dizer que eu estava bem e não tinha acontecido nada, porém minha barreira desabou, dessa vez. E eu desabei junto com ela, em cima da primeira pessoa que estava na minha frente. E essa pessoa era Amanda, que me amparou enquanto eu chorava no seu ombro e murmurava entre soluços.

— Erik... Terminou... Comigo.

Isso atraiu a atenção dos outros, que pararam tudo que estavam fazendo e formaram um semicírculo a minha volta.

— Okay, sente-se aqui — Luana abriu espaço ao seu lado, no banco.

Felipe estendeu-me seu copo de suco e eu tomei alguns goles, descobrindo em seguida que era de maracujá.

Quando eu finalmente parecia ter me acalmado, Amanda colocou as mãos na cintura e falou:

— Agora, desembucha.

O casaco azul do time de futebol da escola era um pouco grande para ela, mas de certa forma, combinava com seus cabelos loiros repicados, que caíam-lhe sobre os ombros. Suas sobrancelhas arqueadas sobre os olhos verde azulados me incitavam a falar.

— Eu...

Estava prestes a inventar uma desculpa, mas Tori me salvou.

— Muito bem, o que tá rolando? O que eu perdi? Por que estão todos nessa bad’? — Ela chegou, já com sua enxurrada de perguntas.

— Erik e Hanna terminaram — Luana passou o braço ao redor dos meus ombros de forma protetora.

— Uau — Victória levou a mão à boca, surpresa. — Sinto muito por vocês.

Dei de ombros. Victória era do tipo que não se apegava, nem levava relacionamentos a sério. Apesar disso, era a melhor pessoa para procurar quando se precisava de conselhos sobre esse assunto.

— Hey, mas não fica assim não — Ela ergueu meu queixo e me fez encarar suas íris de jabuticaba. — Não quero te ver triste. Nem imagino o que tenha acontecido para vocês terminarem, mas não deu certo, tudo bem, em breve você estará em outra e ele também... Erik não é o único cara do mundo.

Suspirei. Erik não era o único cara do mundo. Ele era o único cara do meu mundo.

— Sabe o que você precisa? — A morena rodopiou pela rodinha. — Sabe o que vocês todos precisam? De uma festa. Urgente.

— M-mas temos prova amanhã — Luana protestou.

— E eu? Meus pais nunca vão me deixar ir pra uma festa no meio da semana — Lipe emendou.

Tori apenas fez um gesto com a mão, dispensando o assunto.

— Você já sabe todo o assunto decorado — Apontou para a loirinha. — E você — Voltou-se para Felipe. — Pode dar um jeito. Vamos, gente! Vai ter uma balada incrível no Pepper's Hall.

Ela fez aquela carinha do gatinho do Shrek, impossível de resistir.

— Pepper’s Hall? Onde é isso? — Caio manifestou-se sobre o assunto pela primeira vez.

Victória revirou os olhos, como se ele tivesse perguntado se a Terra era redonda, ou quanto era 2 + 2.

Isso é apenas a casa noturna mais badalada de Natal. Fica em Ponta Negra. Mas acho que posso levar vocês no meu carro.

— Eu tô dentro — Amanda animou-se.

— Tori, o carro nem é seu, é do seu pai e você ainda não tem 18 anos, muito menos habilitação — Expus os fatos. — E nós estamos em seis.

— Mas vocês, hein? Complicam tudo... Eu já tenho praticamente 18. E eu tomo cuidado, prometo.

Os outros concordaram. Dei de ombros. É, parece que eu iria sair da reclusão do meu habitat naquela noite.

***

Inventei a desculpa de uma doença qualquer para faltar ao trabalho. Estava sem ânimo nenhum para me arrumar. Nem a mim, nem a bagunça da minha casa, e muito menos a minha vida. Porém, quando Tori ligou para mim e disse que me arrastaria de casa, eu querendo ou não, fui praticamente obrigada a tomar um banho e colocar uma roupa decente (dentre as poucas que estavam limpas). Peguei um vestido preto qualquer e me esforcei para tirar os nós do meu cabelo. Olhei-me no espelho e eu ainda estava horrível. Estava prestes a desistir e atirar aqueles malditos produtos de maquiagem pela janela, mas lembrei-me que, se eu não descesse, Victória em pessoa subiria até ali para me levar, e de jeito nenhum eu queria explicar o pandemônio em que se encontrava o meu apartamento. Suspirei e recomecei o trabalho.

Tivemos que nos apertar no 4x4 dos pais de Tori. As meninas disseram que eu estava linda, mas eu sabia que era só uma tentativa de melhorar meu astral. Era um milagre que Caio não estivesse com os olhos grudados numa tela digital. Estava até bonitinho, com uma camisa xadrez em tons de vermelho e azul, aberta sobre uma camiseta vermelha, e os cabelos escuros penteados para trás. Lipe estava sentado no banco da frente, narrando em detalhes como foi sua incrível proeza para fugir de casa sem que seus pais percebessem. Os pais dele eram do tipo superprotetores, o tratavam como se ele tivesse sete anos, e não 17. Bom, pelo menos ele tinha pais.

O Pepper’s Hall estava lotado de gente. Pessoas formavam fila na entrada, onde via-se um letreiro grande em vermelho, com o nome da casa noturna. O pânico invadiu-me quando lembrei que não eu tinha nem um centavo, muito menos os 150 reais da entrada, mas Amanda passou tudo no cartão de crédito dos pais dela.

Lá dentro poderia ser descrito basicamente em três palavras: música, luzes e aglomeração. Um DJ estrangeiro estava presente naquela noite, um dos motivos para a lotação. Ele alternava entre músicas do David Guetta, Skrillex e outras que eu desconhecia. O ambiente escuro, combinado com os lasers coloridos, criava um clima meio psicodélico. O espaço central era amplo, e estava completamente entupido de corpos em movimento. O cheiro de álcool e “algo mais” era bastante forte no ar.

Eu já havia frequentado baladas antes. O cenário daquela era bastante convidativo, até. Mas, por algum motivo, eu estava sem a mínima animação.

Tori reparou em nós, parados como estátuas na entrada, e nos lançou um olhar de reprovação. Seus cachos volumosos estavam presos com finas tranças dos dois lados da cabeça, e caindo em cascatas pelas suas costas.

— Pelo amor de Deus, será que eu sempre tenho que fazer tudo?

Amanda se aproximou, vinda da direção do bar (eu nem havia reparado que ela estava lá), com várias latinhas de Skol Beats, que distribuiu entre nós. Felipe e Caio viraram as suas sem hesitação. Luana ficou encarando o objeto azul em suas mãos, como se fosse um animal peçonhento, enquanto Amanda e Tori já haviam se misturado a massa de pessoas pulando ao som de Titanium.

Tomei alguns goles da minha bebida. Diferente dos outros tipos de cerveja, esta possuía uns toques cítricos e um sabor mais adocicado. Me lembrava refrigerante. A minha lata esvaziou-se rapidamente, mas eu ainda queria mais. Fui mergulhando no meio da multidão para abrir caminho até o bar. Desviei de vários casais se engolindo, empurrei um cara gordo que quase me atropelou e chutei a perna de um menino que passou a mão na minha bunda. Passei ao lado de um grupo envolto numa fumaça estranha e tossi com o forte odor de maconha.

Finalmente concluí minha odisseia até o bar. Apoiei-me no balcão e fitei por um momento as luzes arroxeadas e rosas que iluminavam o espaço, do chão ao teto. Mostrei minha pulseira de identificação ao Barman e pedi mais uma bebida.

Notei que uma garota estava me observando, do banco ao lado. Ela possuía cabelos pretos e curtos, cortados num repicado moderno. Havia abusado do delineador preto, o que de certa forma contribuiu para o brilho enigmático que seus olhos transmitiam. Suas mãos estavam escondidas nos bolsos laterais de sua jaqueta de couro. Ela parecia ter saído de um filme de motoqueiras góticas.

Desviei o olhar dela quando o rapaz do bar depositou a latinha azul na minha frente.

— Vida difícil? — A moça perguntou, com uma voz aveludada.

Encarei-a, sem entender. Ela gesticulou para minha Skol com sua mão comprida, de unhas pintadas elegantemente de preto.

— Ah — Suspirei, balançando a cabeça negativamente. — “Na merda” é um eufemismo para minha situação.

A Gótica Motoqueira quase parecia divertir-se com minha desgraça.

— Então suponho que precise de algo mais forte, sabe, para “fugir” um pouco da realidade. — Ela tirou do outro bolso um punhado de comprimidos coloridos. — A droga do amor.

Eu já tinha ouvido falar sobre ecstasy, um alucinógeno bastante conhecido por aumentar os níveis de dopamina e serotonina no corpo, substâncias que provocam bem-estar e prazer. Porém, não sabia se estava pronta para tomar.

A garota estendeu a mão, em estímulo.

— Vai, pegue uma bala. Vai te deixar mais leve, relaxada... Você está muito presa, precisa se soltar mais.

Hesitante, peguei um dos comprimidos.

— Isso não vai me fazer mal?

— Tch — Fez um som de deboche. — A mídia inventa isso para tentar diminuir as vendas, porque a merda do Estado não tem como roubar o lucro da venda de entorpecentes e alucinógenos. Mas é tudo mentira. Tomo essa e outras piores e veja — Gesticulou para si mesma. — Estou em perfeito estado.

Não tenho tanta certeza disso, pensei, mas não tive coragem de dizer em voz alta. Olhei para o objeto diminuto na minha mão e ponderei sobre a minha decisão. Acabei "tacando o foda-se" e jogando a bala na boca.

Quando eu ia tomar um gole da minha Skol para ajudar a descer, a menina misteriosa me interrompeu.

— Não, não — Segurou meu braço, roubando a lata em seguida. — Não é bom misturar. Já fiz isso e, acredite, no outro dia eu estava literalmente fodida.

Deixei escapar um sorriso.

— A propósito, qual é o seu nome? — perguntei.

— Pode me chamar de K.

Franzi o cenho.

— K?

— Sim — Ela respondeu, como se uma pessoa ter o nome de uma letra fosse a coisa mais natural do mundo. — E você...

— Sou Hanna. E, K... Preciso te pagar? Porque, se for o caso, não tenho nenhum centavo.

Mordi o lábio. Você deveria ter perguntado isso antes de ingerir a droga, sua tonta.

A outra riu.

— Não. Considere como um presente de amiga — Ela piscou. — Acho que está perto de fazer efeito, venha.

K me puxou para o centro da pista de dança. A música da vez era Shot Me Down, e estava prestes a chegar ao refrão.

— Sinta a música — A garota falou próxima ao meu ouvido, para se sobrepor ao barulho.

Uma súbita onda de energia estava tomando conta de mim. Minha respiração acelerou-se, e eu me sentia pronta para correr numa maratona. Comecei a perceber as luzes e as cores com maior intensidade, flutuando pelo ambiente, nos rostos das pessoas. A batida da música não era mais uma coisa distante, e sim parte de mim. Eu sentia cada uma das minhas células pulsarem no mesmo ritmo.

Pela primeira vez em meses, eu me sentia verdadeiramente bem. Nem os braços de Erik eram capazes de tamanha façanha. Eu estava quente. Sentia vontade de dançar, pular, rir, beijar. E foi isso que fiz. Uma, duas, três vezes. Perdi a conta de quantos caras fiquei. O tempo estava fluido. Não sei se era mais um dos efeitos do alucinógeno, mas no meio da pulsante mistura de flashes e cores, vislumbrei Erik, meio distante, encarando-me fixamente. Seu olhar era de desaprovação. Em seguida, não me lembrava mais de nada.

***

Não fazia de ideia de como havia conseguido chegar em casa. Só me recordava de estar apoiada na beirada da privada, vomitando minhas tripas. Minhas pernas pareciam gelatina, e cada centímetro do meu corpo doía. Além de tudo, havia um estranho “tilt” na minha pálpebra esquerda, que a fazia ficar tremendo constantemente.

Esgueirei-me, meio cambaleante, para fora do banheiro. Pela janela, pude ver que ainda estava escuro lá fora. Levantei o vidro, em busca de ar. A brisa noturna atingiu meu rosto e brincou com meus cabelos. Sentei-me no beiral, pois acreditava que não poderia ficar nem mais um segundo de pé.

A janela era uma das coisas boas daquele apartamento: grande o bastante para o tamanho de uma pessoa, com uma vista excepcional da avenida, cinco andares abaixo.

Eu ainda estava quente, mas dessa vez não era bom. Estava mais para um estado febril. Um aperto sufocante tomava conta do meu peito, uma sensação parecida de quando eu ia para entrevistas de empregos, ou precisava apresentar um trabalho importante na escola. Minha boca estava seca, mas não fiz qualquer menção de me levantar para beber água.

Preferia ficar ali, observando o pouco movimento que restara na avenida. Coloquei os pés para fora do beiral, sentindo-os balançar livremente, sem nada abaixo deles. Era quase como... Voar.

Fiquei imaginando qual seria o destino daqueles carros que cortavam a noite abaixo de mim. Do outro lado da rua, uma mulher andava apressada. Não muito distante dela, um grupo de rapazes caminhava na mesma direção. Ocasionalmente, a moça olhava para trás e apertava o passo. Será que eles estavam seguindo-a? O que uma jovem mulher estava fazendo sozinha na perigosa Natal àquela hora da noite?

Olhei para o relógio que estava na minha mesa de cabeceira para conferir. Depois de alguns instantes tentando distinguir os números, notei que os dígitos marcavam 3:30. Ao lado dele estava o meu exemplar de Cidades de Papel, a minha mais recente leitura. Não fazia ideia de quando foi a última vez que tive tempo para ler.

Assim como a Margo, eu acreditava que as pessoas possuem dentro de si milhares de fios. Esses fios sustentam o frágil elo que chamamos de vida. Porém, não duram para sempre. Aos poucos, vão se arrebentando, a cada desilusão, a cada desventura. Até que não sobra mais nenhum, e despencamos no abismo sem fim. Meus fios começaram a arrebentar-se desde o aborto do meu pai. Desgastaram-se na pré-escola, quando todos riam de mim por não ter alguém para levar no dia dos pais. Romperam-se mais na quinta série, quando todas as garotas me excluíram dos grupos pelo simples fato de eu ser gordinha. E assim foram se quebrando, pouco a pouco, com o bullying dos colegas, a cada rejeição de um garoto e a cada vez que eu enfiava o dedo na garganta para colocar para fora o que comi, além de outra sucessão de desventuras que se seguiram na minha vida.

Naquela dia, senti que meus últimos fios estavam se rompendo. Recordei-me de todos os acontecimentos, um a um, como num filme. Me demorei um pouco no rosto dos meus amigos. O que eles fariam se, de repente, eu sumisse? Estava nas minhas mãos a decisão de acabar com todos os meus problemas e sofrimento, eles entenderiam.

Inexplicavelmente, me peguei pensando em estátuas, cofres e paredes. Certamente, ainda eram resquícios das reações do ecstasy. Estátuas que são reformadas em túmulos e mausoléus, cofres que são trocados e descobertos seus segredos e paredes que são pintadas, mudam, mas o mistério continua: Ninguém saberá o que aconteceu.

Fechei os olhos, senti o vento acariciar meu rosto e o toque frio do parapeito sob as minhas mãos. Naquele momento, meu último fio se rompia.


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Notas finais do capítulo

Se leu até aqui, interessou-se pela história e está ansioso pelos próximos capítulos, comente! Se não gostou da fic, encontrou erros ou tem sugestões a fazer, comente também! Estou sempre aberta a críticas construtivas.

Aqui vão algumas questões para ajudá-lo, se tem vergonha ou não faz ideia do que comentar.
O que achou do início da fic? Gostou?
Encontrou algum erro? Se sim, por favor, indique o trecho para que eu possa corrigi-lo.
E sobre a personagem desse capítulo, o que achou sobre ela?
Sei que ainda é um pouco cedo, mas já tem algum personagem favorito? Está ansioso para saber o que acontecerá com algum deles?
O que poderia ser melhorado? Tem sugestões?

Pronto! A fic não é movida a comentários, mas me anima bastante saber se tem alguém lendo e suas opiniões sobre o meu trabalho.
PS: Os sabores e efeitos do ecstasy e da bebida descritos nesse capítulo foram fruto de pesquisas, ou seja, eu nunca provei nenhum dos dois, então desconsidere qualquer incoerência.

Espero você no próximo capítulo! Beijos ♥