Depois de finalmente sair do meio da multidão, Soluço e eu decidimos ir para um lugar mais calmo em que pudéssemos ficar a sós; ou seja, o desfiladeiro. Não tinha mudado nada, continuava com aquele rio de águas limpas, grama verde, árvores altas e o principal, continuava sendo nosso ponto de encontro. Chegamos, nos sentamos e começamos a conversar; entretanto, só eu estava falando, Soluço parecia mais interessado na maneira como meus lábios se mexiam, tanto que me surpreendeu me dando um beijo, cheguei a ficar assustada, mas logo me deixei levar por aquele zelo que ele tem.

— Meu monologo estava tão ruim assim? – Perguntei ironicamente.

— Não, mas sua boca estava mais interessante. – Ele respondeu. Eu não consegui acreditar, onde ele escondeu aquele Soluço tímido que nem tinha o que conversar comigo? Não sei o que aconteceu naquele treinamento, mas eu acho que deu resultado.

— Quem é você e o que fez com meu Soluço? – Brinquei para disfarçar o quanto fiquei vermelha.

— Não sei... – Ele ergueu os braços se rendendo, depois me abraçou. – Ele deve ter ficado preso nos últimos cinco anos. – Aconcheguei-me nele, parecido com fizemos no nosso primeiro beijo. Foi quando comecei a me lembrar do mico que paguei e comecei a me sentir mal.

— Você... Qual foi a sua primeira impressão de mim? – Perguntei com a cabeça baixa de tanta vergonha. O garoto não entendeu no começo, mas como é muito inteligente, conseguiu perceber o que me incomodava.

— Ah, aquilo? – Soluço me abraçou mais forte. – Você não tem que se preocupar, eu já conheço você.

— Mas eu já tinha ensaiado tudo! E na hora H, eu banquei a pateta... – Bufei de raiva. Soluço riu me deixando com raiva.

— Você não foi a única, eu também fui um tremendo mané. – Me virei para ele sem entender nada. – Eu te beijei na frente do Melequento.

— Eu sabia que ele ainda gostava de mim! – Me separei do abraço sentindo vergonha por nós dois.

— Tá vendo? – Ele riu de nervoso. – Nós dois fizemos bobagem, mas só porque estávamos felizes vendo um ao outro. Você não deveria se preocupar com isso, a primeira impressão que tive de você foi a melhor possível e não é um simples tropeço que vai mudar isso.

— Que bom... – Respirei aliviada e puxei o abraço de volta. – E qual essa melhor primeira impressão?

Soluço ficou corado.

— Te falo mais tarde. – Ele sorriu e virou o rosto para que eu não visse a cor.

Enquanto o nosso reencontro corria muito bem, – Embora nenhum dos dois tenha falado muito. – Melequento estava se lamentando enquanto ajudava Olavo arrumando as coisas no quarto deles; Olavo sempre percebeu essa depressão por isso tentava fazê-lo reagir ao seu modo, o lembrando das garotas que o achavam interessante, porém ele não dava à mínima.

—... Eu vi uma garota olhando para você quando voltou, por que não tenta falar com ela? – Olavo disse com um sorriso malicioso.

— Porque eu não quero!

— Ai, meus Espíritos! Pelo menos vai lá e diz oi!

— Não, obrigado. – Melequento disse com raiva.

Olavo se acalmou e foi falar com o primo.

— Olha, você tem que esquecer a Astrid. Você ainda é amigo do Soluço, não é?

— Claro, ele sempre foi meu melhor amigo.

— Então acho que você não ia gostar se os dois terminassem porque você ficou com essa cara de cachorro pidão.

— Não... – Melequento ficou pensativo.

— Ótimo, pois os dois gostam muito de você, querem que você seja feliz. Um dia você há de encontrar uma garota que vai fazer você esquecer a Astrid assim. – Olavo estalou os dedos fazendo Melequento rir. – Pode não ser hoje ou amanhã, mas um dia ela aparece.

— Eu sei... Até lá vou tentar não ser tão segura vela. - Dito isso, os dois voltaram ao trabalho. Mesmo que tenha acreditado no que Olavo tinha dito, Melequento ainda não botava fé que podia achar uma garota especial, porém a parte da promessa era verdade, e foi quando ele viu alguma coisa pela janela perto da praia; com a sua visão de dragão ele ampliou a imagem e viu uma garota se arrastando para fora da água com dificuldade como que estivesse se afogando. Melequento pulou da janela, dando um susto em Olavo que só percebeu o que estava acontecendo quando olhou na mesma direção. Os dois foram rápido socorrer a jovem que havia desmaiado, Melequento a pôs de lado de maneira que a água que ela possa ter engolido fosse expelida. – Ei, guria, você está b...?

— Por favor, você precisa me ajudar! — Ela o interrompeu acordando de repente e segurando a mão do salvador, parecia estar desesperada. Quando se viram, deu para perceber que a garota misteriosa era muito bonita; cabelo preto, pele branca, esguia e olhos tão verdes quantos os de Soluço. – Me ajude...

— Claro... Pode deixar... – A voz o Primo-Dragão falhou assim como o coração acelerou.

“Essa foi rápida...” — Olavo pensou.

Nessa hora, foi mandada uma mensagem a partir de um tipo de telepatia de dragão para Soluço, ele se levantou e me olhou com uma expressão séria.

— O que é? – Perguntei preocupada.

— Uma garota foi achada se debatendo na praia, meu pai, Olavo e Melequento estão lá, temos que ir também.

Assenti e fomos o mais rápido que pudemos.

Chegamos ao Grande Salão onde a hospede recebera cuidados, ela estava com uma coberta feita de lã muito grossa e tremia, deve ter pegado um resfriado, Melequento estava do lado dela e não saia de perto; eu e Soluço percebemos o que podia significar, mas como a situação não era oportuna para esse assunto, simplesmente fomos falar com Stóico que já tinha feito uma pequena entrevista com a estranha.

— Pai, quem é ela? – Soluço questionou tentando lembrar se ela fazia parte da turma de dragões.

— Ela diz que o seu nome é Heather e que foi capturada por piratas até conseguir fugir. Ela também diz que veio até aqui a nado, mas não sabe quanto tempo ficou no mar. Parece traumatizada.

— Deu pena... – Falei mesmo não tendo certeza sobre essa história.

— Vou ver se consigo mais respos... – Soluço foi interrompido por um abraço tão forte do pai que deu para ouvir os ossos estalando; sim, ele ainda era aquele moleque magrelo e fraquinho, sem aquela raiva de dragão. – Ah, é...! Eu ainda não falei com o senhor... – Disse ele gemendo de dor. – Desculpa...

— Não tem problema, só diga para a minha futura nora não ser egoísta.

Fiquei vermelha assim como o Menino-Dragão.

— Pai! – Soluço disse isso num tom que parecia ser um grito.

Stóico riu, depois foi falar com as pessoas encarregadas de investigar a história da tal Heather.

Juntos, fomos fazer nossa própria entrevista com a moça. Pelo menos a doença não era mentira, ela estava mesmo um pouco febril, fungava e tremia muito, só precisávamos saber do resto.

— Oi... Heather, né? – Ela assentiu confirmando. – Você disse pro meu pai que foi capturada por piratas, onde eles estão agora?

— Não sei... – Ela limpou o nariz. – O navio é muito rápido, já devem estar longe.

— E como você conseguiu escapar? – Ele indagou querendo saber mais para ver se ela tropeçava nos fatos.

— Foi muito rápido; como sempre, um deles veio abusar de mim, ele estava com a chave, mordi a garganta dele, roubei a chave, abri as algemas, subi no deck e vi que tinha uma ilha longe, depois pulei na água e comecei a nadar... – Ela tinha mesmo um pouco de carne nos dentes e sangue na roupa.

Soluço memorizou a história para perguntar se foi isso o que ela disse ao seu pai.

— Quando foi que você foi capturada? – Perguntei para ter mais uma base.

— Desde criancinha... Minha mãe trabalhava para eles, um dia ela não foi mais útil e... Mataram-na... – Ela deixou uma lágrima cair, mas conteve as outras, a tristeza era verdadeira.

— E como, exatamente, você conseguiu usar a chave?

— Usei meus dentes.

— Depois verificamos se é verdade.— Soluço sussurrou para mim.

— Consegue lembrar-se do rosto de um dos piratas? – Olavo estava perto e entregou um pedaço de papel e carvão para Soluço; ele sempre desenhou bem, podia fazer um retrato falado do carcereiro.

— Ele usa dreads no cabelo e na barba, tem cabelo preto e comprido, tem o rosto quadrado e coberto de cicatrizes, lábios finos, nariz quadrado, é gordo, olhos fundos e não tem um dos braços.

 – Cicatrizes onde?

— Uma nos lábios, outra em baixo dos olhos e outra na sobrancelha.

— Assim? – Soluço mostrou o desenho terminado.

A garota engoliu seco.

— É... Assim mesmo... – Ela se aconchegou mais nas cobertas como quem busca abrigo. O medo e a tristeza eram verdadeiros.

Melequento, Olavo e Soluço se olharam:

— Illa videtur certum enarrans veritatem. — {Ela parece estar dizendo a verdade.} — Soluço sibilou para os dois.

— Scilicet vera es! Quare mentiuntur de aliquid tale?! — {Claro que ela está dizendo a verdade! Por que mentiria sobre uma coisa dessas?!} – Melequento disse com tom de raiva.

— Nescio! Sed hoc Habeas semper oculum super eam. Vos nunquam teneo. — {Sei lá! Mas alguém deveria ficar de olho nela. Nunca se sabe.} — Olavo Olhou para ela meio desconfiado.

— Quid me?! — {Que tal eu?!} — Melequento falou animado por um momento depois pareceu se arrepender ou não entender o que tinha feito.

— Qualiter circa no! Vos es non servare statum. Ego facio Ego facio. – {Que tal, não! Você não está em condições de vigia-la. Eu faço.} — Olavo falou por ultimo e cruzou os braços olhando de forma predatória para a convidada.

— O que eles estão falando? – Heather me perguntou assustada.

— Eu não sei, mas não foi legal. – Percebi que teria que dar uma explicação. – Eles são melhores amigos, usam um tipo de código que só eles sabem, só isso.

Heather forçou um sorriso, parece que percebeu que eu tinha mentido.

“Estou de olho em você!” — Gritei para ela em pensamento.