Natural Selection escrita por Paper Wings


Capítulo 2
Cap. 1: Brave New World


Notas iniciais do capítulo

Gente, voltei. Juro que fiquei super triste que ninguém comentou o primeiro capítulo e, por isso, agradeço de coração a LBHanemann, a Sweet Dreamer e a RoXy por favoritarem a fic!!! Especialmente por causa de vocês três, não decidi desistir dessa história, mesmo estando super ansiosa pelo desenrolar dela. ~tenho vários planos para NS~
Então, muito obrigada. Esse capítulo é dedicado a vocês.
Boa leitura a todos.



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''Lost my love, lost my life

In this garden of fear

I have seen many things

In a lifetime alone''

Brave New World - Iron Maiden

 

Eu paralisei. Fazia tanto tempo que alguém não dirigia a palavra a mim que ao ouvir o homem falar comigo eu não sabia ao certo o que fazer. O cara segurava uma besta, então, provavelmente era o culpado pela flechada em meu ombro, algo que estava mais do que disposta a relevar se eles me deixassem ir.

Permaneci em silêncio, fitando-os com ódio para esclarecer o quanto tinha vontade de responder à pergunta. Eu não devia qualquer satisfação a eles. As chances de nos encontrarmos algum dia eram mínimas... Por que me apresentar a estranhos?

Segurei o facão com mais força, apontando-o para os dois homens, desconfiada. Qualquer precaução nos dias atuais era necessária. Se a própria família era capaz de abandonar a pessoa, o que ambos, gente completamente desconhecida, poderiam fazer comigo, não é?

— Me perdoe, querida.

Engoli em seco, lembrando-me do passado, e dei um passo instintivo para trás, quebrando um galho seco, fazendo-me pular de susto. Praguejei mentalmente e ajeitei meu corpo para mostrar mais valentia, talvez...

— Qual é o seu nome? — O de chapéu indagou desta vez, olhando ao nosso redor, alarmado. — Está sozinha?

Estreitei os olhos, quieta, mantendo minha posição defensiva com o maxilar travado, decidida a não falar sobre mim. Quanto menos eu revelasse sobre mim, menos laços a serem feitos e, como consequência, menos laços a serem desfeitos no futuro. Afinal, descartar pessoas como tralha inútil era fácil demais.

Ao perceber que eu não diria coisa alguma, o último — o qual trajava o acessório de xerife — suspirou, abaixando levemente o revólver e colocando-o no coldre. Com uma expressão um pouco mais pacífica, porém, séria demais, levantou os braços, indicando rendição, e virou um pouco o rosto para trás, provavelmente para pedir ao companheiro que fizesse o mesmo. O outro não pestanejou, abaixou a besta, analisando-me friamente.

— Eu sou Rick... — O xerife apontou para si mesmo. — Aquele ali é Daryl. Não vamos nos precipitar aqui... — Alertou com um sotaque tipicamente sulista, encarando o amigo e a mim. — Vamos conversar de maneira civilizada. Agora, qual é o seu nome?

Quase me permiti a dar um riso anasalado, irônica. Não era com um gesto mais bonzinho que eles conquistariam confiança suficiente para eu dar respostas. Idiotas, imaginei.

Ele suspirou novamente, acenando com a cabeça para cima e para baixo algumas vezes. Aparentemente, estava pensando como era óbvio que eu continuaria fiel às escolhas que fizera de não falar.

— Nós demos nossos nomes... — Revezou o olhar entre o tal Daryl e eu. — Não acha injusto não sabermos o seu?

Entortei levemente a cabeça, cética sobre o que acabara de ouvir. Fazia tanto tempo que não discutia sobre os pilares do mundo perdido: igualdade, justiça, democracia... Era engraçado como alguns continuavam a se agarrar futilmente à esperança de reaver tudo que fora jogado pelo caminho. A vida que tivemos nunca mais voltaria, essa era a verdade não dita.

— O mundo é uma bosta. — Deixei as palavras saírem pelos meus lábios rachados. — Injustiça já virou o justo de antigamente... Estamos cercados pela morte. Não tente achar justiça por aqui, é o mesmo que procurar agulha em um palheiro.

O homem da besta arqueou a sobrancelha, surpreso pela minha frieza e maturidade, considerando minha idade, enquanto Rick assentiu, absorvendo as únicas sentenças que lhes dei. Sim, eu era a doçura em pessoa. Peçam a conta à família do ano, a qual fizera o favor de me transformar nesse ser distante...

— É nova... — O xerife analisou-me. — Está sozinha?

Meus olhos quase marejaram, porém, decidi passar apenas coragem por meio de minha postura. Se eu acabasse mostrando um pingo de fraqueza sequer, seria capturada por eles, taxada como descartável e abandonada em um momento oportuno, por exemplo, em um ataque de errantes. E desse quesito eu era especialista.

— Preocupado com sua fazenda? — Supus, ciente de que a mata rodeava de um lado a estrada e do outro, mais para o interior, apenas grandes lotes de terras. — Estão vestidos muito bem, não parecem sofrer de falta de água ou alimento... Têm armas também, ou seja, estão protegidos, e devem ter mais uma galera por lá, certo?

Rick e Daryl trocaram uma fitada cúmplice e eu dei um sorriso maldoso, algo que, há alguns anos atrás, estaria longe de me reconhecer. Com certeza, o mundo conseguia nos mudar de dentro para fora, assim como aconteceu com...

— Não se preocupem. — Dei de ombros. — Me deixem ir e não procurarei a preciosa fazenda que vocês possuem. Meus planos não são me fixar, apenas sobreviver.

— Então, está sozinha?

Encarei o complexo de caçador chamado Daryl, o qual se manifestara, e sorri. Ele continuava lá, afastado, só observando, praticamente um fantasma.

— Talvez... — Respondi a ele, misteriosa.

— Você está lá fora há quanto tempo? — Rick franziu a testa. — Esteve sozinha há quanto tempo?

Pisquei duas vezes, tentando esquivar da pergunta por meio do silêncio, mas dessa maneira, só ficaria mais visível como aquele assunto era delicado e, mais uma vez, demonstraria fraqueza... Fraqueza levava à morte. Não poderia ser fraca, não poderia...

— Shh, já vai parar...

— Perdi minha família por causa de um bando... — Menti parcialmente, recebendo olhares mais caridosos, pois todos perderam pessoas. — Desde então estou sozinha. Acho que já fazem três anos mais ou menos...

— Três anos?! — O xerife ficou surpreso. — Tudo isso?

— Acho que sim.

Contar os dias era difícil, ainda mais quando você não tem muito propósito para tal ato. Meus pais costumavam riscar palitinhos, indicando o tempo decorrido, em uma folha do meu bloco de papel de desenhos, o qual usei até o final e acabei deixando junto com os pertences de minha família bem naquela data, que me dava pesadelos sofridos até hoje. Por isso, eu sabia que passaram cincos meses até o dia D, quando fui abandonada, deixada para trás para morrer. E, infelizmente, minhas artes ficaram para trás, com eles...

— Não encontrou outros remanescentes nesse meio tempo?

— Encontrei... — Revelei, deixando o xerife desorientado. — Só mantive distância deles.

— Então você permaneceu sozinha por...

— ... opção. — Completei. — Escolha própria.

Usei o tempo em que Rick passou refletindo para planejar minha fuga. Estava certa de que os homens não me deixariam ir, quando havia o risco de uma desconhecida atacar a fazenda deles, porém, pensando melhor... Eu até poderia ter me virado bem no tempo em que estive por conta própria, mas como eu tomaria um lote de terra inteiro sozinha? Ficaria até lisonjeada se fosse o que me imaginavam fazendo. Não... Eles ainda desconfiavam de que eu tinha um grupo... E um grupo ou me procuraria se eu fosse levada, ou eu os encontraria e falaria da segurança e estabilidade do refúgio seguro do xerife.

Talvez voltar para a estrada fosse uma boa, talvez eu conseguisse despistá-los e talvez desse sorte de encontrar tudo que precisava até o cair da noite, porém, eram muitos "talvez"... Em um mundo como aquele, viver de "talvez" era uma sentença para morrer.

Despertei de minhas divagações pelo provável caçador.

— Eu fiz um belo estrago no seu ombro... — O da besta fez uma careta, mantendo a pose de machão. — Foi mal.

Mantendo o facão em riste, dei uma rápida olhada no escarlate grudento, o qual manchava minha blusa. O tecido estava empapado com sangue e, por arrancar violentamente a flecha, deixei a ferida pior do que deveria.

— Estou acostumada com cicatrizes... — Dispensei suas desculpas rapidamente. — Temos um trato aqui? Vocês me deixam ir e não têm que me ver mais em suas vidas?

Meu comportamento deixou-os meio transtornados, pude perceber notoriamente. Eu queria mudar da atual questão em discussão... Falar do passado não era nada mais, nada menos que uma maneira de despertar um rancor mesquinho em relação a minha própria família. E acho que meu ódio era multiplicado pelo simples fato de ainda ter tido momentaneamente falsas esperanças, lá no fundo, de minha mãe e meu pai retornarem para me salvar naquele dia... Só que não era somente isso que me deixava mal: nosso último encontro, o definitivo há alguns meses atrás, fora mil vezes pior... Quase cortante, eu diria.

— Não posso arriscar, entende? — Rick fez sinal de negação. — Não posso...

Segurei o facão com força de novo, resultando em um olhar furtivo do xerife, o qual expressava arrependimento por provar rápido demais sua desconfiança. Na tentativa de suavizar o ambiente, para retornar ao quase pacífico ar há alguns minutos atrás, ele engoliu em seco, respirando fundo.

— Olha, você mesma disse que não há mais justiça... — O homem encarou o nosso redor mais uma vez com uma voz serena. — Entende que não posso cegamente acreditar que uma adolescente que diz ter sobrevivido sozinha por três anos lá fora não vá trazer confusão... Você compreende, não é?

Estalei o pescoço, sentindo um desconforto maior pelo corte. Eu estava perdendo tempo, precisava estancar o sangramento e dar um jeito de despistar os dois caras. Talvez eu conseguisse derrubá-los com um golpe, nada muito sério, apenas para desnorteá-los... Eles estavam armados, isso não era muito bom, mesmo tendo certeza que não atirariam em mim. Bom, pelo menos era o que eu esperava.

— É claro que sim... — Pausei, molhando os lábios secos, decidindo-me se diria ou não seu nome. — ... Rick! O sentimento é recíproco, acredite. Não confio em vocês dois. — Simplifiquei. — Não podemos confiar nas pessoas, elas passarão a perna em você mais cedo do que imagina. — Sibilei, mostrando mais sentimentos do que deveria. — Nós chegamos em um ponto onde não há outra escolha senão lutar. Isso é evolução. — Absorvi o peso da minha fala. — É o preço que pagamos para sobreviver. Isso não é uma democracia. Essa é a nossa vida...

Um silêncio reinou e só pude ouvir alguns grunhidos e galhos quebrando ao longe. Errantes solitários... Em breve estariam ali e, por sorte, esperava já estar bem longe, tanto da região em si como dos dois homens. Se eles me levassem para a possível fazenda, ficaria em desvantagem, afinal, não sabia quantos deles haveria lá.

Daryl deu uma olhada para trás, verificando o perímetro e voltou a prestar atenção em nós.

— Ótimo... — O xerife acenou em veemência. — Então, você vem conosco e...

— De maneira alguma. — Cortei-o. — Não vou viver meus últimos dias encarcerada em uma fazenda qualquer.

O xerife engoliu em seco pelos meus protestos, ao voltarmos à estaca zero, com uma expressão perdida, e provavelmente imaginando se havia perdido algo no meio da conversa, o qual indicava que fui atacada. Ele virou para o amigo, que deu de ombros, também confuso.

— Últimos dias? — Rangeu os dentes. — Você foi mordida?

Dei um mínimo sorriso.

— Me diz uma coisa: você tem certeza que ainda tem uma longa vida pela frente? — Ergui as sobrancelhas. — Sabe, porque eu não. Eu nunca sei se hoje mesmo não serei mordida, ou amanhã... Se em uma semana vocês dois não vão atirar em mim e me levar para o abate, cheio de zumbis famintos... Eu não sei! Então, eu vivo meus dias como se eles fossem os últimos, e vocês deveriam fazer o mesmo.

— Não parece um jeito muito saudável de se viver. — Rick protelou. — Acabamos fazendo as escolhas erradas...

— Ah, pelo contrário... É revigorante e, na verdade, somos incitados a fazer as certas. Você vê... — Suspirei. — O ser humano sempre tenta prolongar seu tempo de vida ao máximo, comigo não é diferente. Vocês, sua turma e eu somos sobreviventes. Convenhamos, eu passei por muita coisa até chegar aqui, vocês também... O que tivemos que fazer para estarmos vivos? Fizemos escolhas certas, no final, mesmo perdendo nossa humanidade aos poucos pelo caminho.

— Você sempre tem alguma resposta na ponta da língua, não é?

Era inevitável depois de tanto tempo sozinha. Lembro de ter visto atrocidades, sempre nos bastidores, vendo até que ponto as pessoas estavam dispostas a chegar em nome da sobrevivência. Presenciei o inferno; chegara ao fundo do poço e usei minhas unhas para escalar até a saída; descobri que ninguém estava a salvo, mesmo morrendo naturalmente; assisti sacrifícios e vivi o meu próprio no dia em que fui deixada para trás.

Com o passar dos anos, adquirimos conhecimento, e a dor de ter que levantar e seguir, pisando em cima de corpos, os quais não foram capazes de continuar, tornava-se algo suportável, só uma pontinha de desconforto que vinha com a bagagem...

Era um ambiente selvagem. O que era aplicado a nós era a "lei do mais forte": os mais aptos vivem e os fracos perecem. Bom, era o caso com os zumbis e os seres humanos... Seleção natural. O porém? Deixamos essa lei atingir o homem também, e era o momento em que a humanidade se encontrava na linha tênue entre o passado e o futuro, entrelaçados pela miséria do presente.

— Depende de aonde quero chegar. — Repliquei. — Deixe-me ir, Rick...

Meus olhos estavam teimando em querer se fechar, mas eu lutava para isso não acontecer. Eu não seria levada sem lutar, eu faria de tudo para não ter que conviver com outros. Se eu precisava dormir praticamente com um olho aberto por causa dos errantes, como seria ter que temer não só os mortos como também os vivos?

— Olha, por favor... — Arquejei, sendo obrigada a colocar o facão no suporte, e apertar a ferida em meu ombro. — Eu... Eu não consigo, entendeu? Vocês nunca mais terão que me ver na vida, e eu sei que é difícil de acreditar, porque eu sou uma completa estranha, mas... Não vou com vocês, de jeito algum.

Eu me preparei para correr, dando passos lentos para trás, mantendo contato visual com eles para não fazer muito alarde sobre meus planos e, de repente, saí em disparada, seguindo para o lado oposto, onde havíamos matado os zumbis. Notei, muito satisfeita e aliviada, que eles de fato não atiraram em mim, talvez por eu parecer uma mocinha inocente, apesar das armas enfeitando meu corpo como acessórios pós-apocalípticos e minha carranca desconfiada estampada em meu rosto.

Tive plena consciência de que estavam ao meu encalço e precisava urgentemente achar algum lugar seguro para enfaixar o corte e, depois, tentar encontrar um equipamento de sutura em alguma farmácia pela estrada. Desviei de árvores, pulei troncos, sentindo raiva do machado preso à cintura, que teimava em bater em minha perna e, enfim, chegara ao espaço cheio de mortos-vivos... Mortos definitivamente.

Não esperei para tirar uma selfie, continuei a correr. Se minha memória ainda estivesse boa, eu precisava virar a esquerda e seguir mais ou menos uns duzentos metros e, em breve, estaria à beira da estrada, perto do guard-rail todo danificado. Dali, era só despistá-los em meio aos vários carros abandonados e pronto.

Eu não ouvia o som do farfalhar de folhas e passos por uns minutos, além do meu próprio. Assim que cheguei na pista congestionada, andei apressadamente, com o coração na garganta. Como era impossível se esconder lá, caso eles aparecessem a tempo de ver um fio de cabelo meu sequer tentando se ocultar, decidi escorar imediatamente na traseira de uma van, aproveitando para rasgar a barra da minha blusa. Atentei para não errar o rasgão, a ponto de de expor minha cicatriz, e enrolei o tecido ao redor da ferida em meu ombro, amarrando com um nó bem forte.

Talvez eles já tivessem chegado, pois tive a impressão de escutar um leve ruído. Eu tinha que andar abaixada, contornando os carros até mais à frente, onde escorregaria pelo leve relevo gramíneo e entraria na mata novamente. A seguir... Bom, os detalhes eu pensaria depois, porque ainda teria que procurar o equipamento de sutura.

Respirei fundo e corri agachada até uma picape. Eles já estavam lá: Rick e Daryl, tinha certeza. Vasculhavam o interior dos veículos e embaixo também.

Passei para o próximo carro, apressada, atentando-me mais para onde não deveria, no caso, se os homens estavam muito próximos, então, nem percebi os três errantes aproveitando uma refeição ensanguentada e vestida com roupas, os quais estavam atrás do meu esconderijo, até que fora tarde demais.

Pisei em algo flácido e, ao olhar para o asfalto, reconheci o líquido melecado e com cheiro metálico. Ergui a cabeça, ao mesmo tempo em que os mortos-vivos fizeram o mesmo, notando que o corpo aberto no chão não era tão interessante quanto eu, que além de estar respirando, o que dava um ar mais esportivo à caça, ainda tinha um aroma férreo de "Aproveite: almoço grátis de inauguração!" saindo de meu ombro.

Bufei e saquei o facão. Cada grunhido dos errantes era como se representasse um sino dando as doze badaladas, chamando a atenção dos caras que me procuravam. Eu tinha o impulso de fechar os olhos sempre que os zumbis faziam barulho e agradecia mentalmente ao sentir o crânio desfazendo-se pela apunhalada cortante.

Foi até simples acabar com os três, mesmo ciente de que meu rosto fora coberto por respingos do sangue quase negro e putrefato e fizemos barulho demais. A sensação era horrível, considerando que havia tomado um banho no dia anterior mesmo, em uma lojinha de conveniência. Eu morria de curiosidade de saber como era o banheiro do dono daquelas lojas, antes do inferno povoar a Terra, e a resposta? Decepcionante... As diferenças do toilet dos funcionários e clientes eram: o chuveiro; o papel higiênico — não a falta dele; a melhor higienização e as revistas pornô, escondidas no armário abaixo da pia.

Eu precisava sair logo, antes que o xerife e o provável caçador me achassem ao lado dos cadáveres. Infelizmente, ao me erguer e desviar de uma moto largada no chão como um brinquedo velho, um zumbi atrasado e solitário tentou me agarrar.

Antes que eu pudesse atacá-lo, uma flecha fez o errante cair sem vida aos meus pés. Por instinto, virei para trás, deparando-me com um Rick cercado por uns quinze zumbis, a uns dez metros, e com Daryl, o qual se aproximou a passos largos, após o xerife assegurar que dava conta do recado, prestes a me agarrar pela cintura e me jogar por seus ombros, carregando-me como se eu fosse um mísero saco de batatas. Não deixaria isso acontecer, nem ferrando, afinal, não aprendera como me defender à toa, algo que tinha que admitir: não fora uma herança de família tão ruim...

Expressei não ter saída, perdida, sem saber o que fazer. Até encenei algumas passadas trôpegas e ergui os braços em sinal de rendição, tentando me afastar de sua presença e me preparar para o que viria a seguir. Fazia anos que não treinava e, ali, era a hora da verdade. Sobrevivência em jogo. Assim que o caçador postou-se a menos de um metro de mim, abaixei e girei o corpo, dando-lhe uma rasteira. Pegara-o de surpresa.

— Mas que diabos...

Interrompi suas pragas, vendo-o se levantar, e dei um chute alto, atingindo a lateral de seu rosto. Eu não queria machucá-lo, na verdade, rezava para ele simplesmente desistir para eu poder parar. Só que, em resposta, ele segurou meu pé, que ainda estava no ar, e jogou-me violentamente contra a janela de um carro, imobilizando-me. Não por muito tempo, entretanto. Dei uma cotovelada na altura de suas costelas e aproveitei seu momentâneo choque para empurrá-lo com toda a minha força, ainda de costas contra seu tórax, para trás. Usei esse impulso para jogá-lo no asfalto e dei um mortal ao contrário e, sem dar a ele a oportunidade de se levantar, andei até seu corpo dolorido e apoiei meu coturno em sua garganta.

— Já avisei que...

Ouvi um pigarro e parei de falar. Ao virar me rosto, confusa, arquejei. Deveria ter prestado atenção: Rick, de fato, tinha dado conta do recado e, já cansado de mais surpresas vindas de mim, deu-me uma coronhada e caí para a frente, amparada por seus braços. Vi de relance um veículo com uma mensagem no para-brisa, algo com o nome Sophia, seja lá quem a menina fosse, antes de apagar completamente.


 

Levantei de um ímpeto, sentindo a cabeça latejar, e as lembranças foram voltando aos poucos e comecei a me amaldiçoar mentalmente. Eu não sabia aonde estava. Parecia uma barraca, porém, eu imaginava que eles tivessem uma fazenda segura, não um acampamento no meio da mata... Deixaram-me deitada em uma espécie de colchonete e um banquinho na extremidade, perto da abertura, depositava-se, vazio, como se apenas a presença dele já tivesse como propósito me vigiar. Como eu fora tão estúpida? Agora eu fora sequestrada e corria o risco de ter meus pesadelos sendo concretizados mais uma vez. E não estava ansiosa para isso.

No exterior, ocorria uma árdua discussão, a qual tentava ser abafada por Rick, ao que parecia. Minhas mãos estavam presas por algo, então, as sacudi freneticamente, escutando o som metálico de algemas, presas aos meus pulsos. Minhas armas não estavam ali, é claro, pois não seriam idiotas a esse ponto... E não havia nada ao meu redor que fosse útil para eu conseguir escapar.

O barulho que fiz, entretanto, chamou atenção. As vozes do lado de fora pararam e, em um instante, o xerife surgiu. Sua cara não era das melhores, sinceramente. E, depois dele, outras pessoas foram surgindo, curiosas e insatisfeitas pela minha presença. Até estranhei se todos ficaríamos ali, em um espaço tão pequeno.

— Como está sua cabeça?

Permaneci em silêncio ante a indagação, ocupada, analisando de maneira fria cada rosto. Se eu não confiava em Rick e em Daryl, fitar os seus companheiros era mil vezes pior. Não falaria coisa alguma enquanto o recinto estivesse tão cheio de gente. Encarei o caçador com uma expressão meio culpada, pois a lateral de seu rosto encontrava-se avermelhada pelo chute que lhe dera há... Quanto tempo ao certo passara?

— Então vai ficar quieta de novo? É assim?

Engoli em seco, erguendo levemente o queixo. Sim, seria assim. Usufruí da impaciência que transpareceu por meio de seus olhos azuis, atentando-me a qualquer detalhe. Ele respirou fundo e voltou-se aos demais, ficando de costas para mim com uma mão à cintura.

Eles murmuravam coisas que não consegui compreender, portanto, passei mais um tempo estudando-os meticulosamente. Havia quatro pessoas que eu desconhecia: um bem musculoso, com um ar quase militar, o qual não tirava os olhos de mim, não por cobiça, mas por desconfiança mesmo; outro era negro e carregava uma espingarda e parecia estar frenético em acabar comigo antes que eu trouxesse problemas; um asiático estava meio desconfortável, como se não estivesse acostumado a participar de momentos como aquele; e, por fim, um mais jovem, o mais novo de todos, provavelmente da minha idade, escutava, atento, às palavras do xerife. Eu chutaria que eram parentes, mas não tinha certeza.

— Olha só, menina... — Rick voltou-se a mim e suspirou, olhando o redor, contemplativo. — Vamos tentar entrar em um acordo aqui, sim? Vamos facilitar as coisas...

De repente, o chão tornou-se estranhamente interessante, e não conseguia parar de fitá-lo. Se eu estabelecesse um acordo, poderia tentar incluir minha posse permanente de todas as minhas coisas que trazia — lê-se armas como foco principal — e uma data de soltura, a mais próxima do dia atual possível. Só que não discutiria sobre isso na presença de todos aqueles, considerando especialmente que me sentia muito incomodada com o cara musculoso, beirando... Medo.

— Não vou falar se seus amigos continuarem aqui. — Rangi os dentes, com raiva. — Você e o caçador podem ficar... O resto? — Neguei com a cabeça. — Para fora.

Imediatamente, o homem forte, o qual me deixava com um pé atrás, adiantou-se, revoltado, tendo que ser segurado por Rick.

— Você... — Apontou diretamente para mim com uma veia saltando em sua testa. — ... não tem nada que ficar dando ordens aqui, entendeu?

Eu tentei não me deixar abalar, mesmo depois de dar um pulo de susto com a aproximação repentina dele, mas não poderia mostrar fraqueza... Fraqueza levava à morte. Não poderia ser fraca, não poderia... Eu repetia as palavras como se fossem parte de um mantra e, reunindo coragem, estreitei os olhos, cínica.

— Aparentemente, você também não. — Arqueei a sobrancelha, referindo-me ao xerife, que o barrava. — Já disse meus termos. A questão é... Vão fazer o quê a respeito?

Dei um tempo a eles para se decidirem e, por fim, constatei, aliviada, que apenas Rick e Daryl permaneceriam ali. Não sabia se era uma boa ideia, porém, deveria ser melhor que ter mais pessoas para tentar convencer. Na floresta, os dois pareciam decididos a não me machucar, mesmo estando extremamente desconfiados. Já era meio caminho andado, certo?

Os outros saíram em silêncio, apenas o encrenqueiro foi batendo em coisas, chutando o banquinho, o qual me vigiava um tempo atrás. Ele era perigoso, fazia o tipo de gente que abandonava o outro para sobreviver.

Eu estava com uma fina onda de temor percorrendo minhas veias. Meu coração palpitava, alarmado, afinal, encontrava-me em um improvisado interrogatório e, nos filmes, interrogatórios às vezes requiriam tortura. Mesmo um pouco mais tranquila com ambos, ainda me sentia muito preocupada. Ainda eram estranhos, desconhecidos...

— Você falou que estava sozinha, não é?

Travei o maxilar e assenti lentamente.

— Quantos você já matou?

— Sei lá... — Dei de ombros, irritada, porém, pelos olhares insatisfeitos, beirando teimosia, decidi reformular a frase. — Hm, desculpe. É que eu não tenho muito tempo ou paciência para contar. Nessas horas, estou ocupada tentando sobreviver!

Rick suspirou, concordando.

— Já matou pessoas por acaso?

Um arrepio percorreu minha coluna. Nunca chegara a matar humanos, mas já vira acontecendo. Vivi um praticamente, mas já havia me esgueirado por cidades em que grupos encontravam pessoas que possuíam mais suprimentos ou munição... O papo era um clique, destravando a arma, e um silvo dela sendo disparada. Por essa razão, por ter visto várias vezes esse tipo de coisa ocorrendo, tinha certeza do que acontecera com...

Neguei, mesmo considerando o fato de que poderia tê-las ajudado de alguma forma e fiquei escondida, pelo contrário. Então, será que indiretamente matei vários seres humanos? Preferi guardar isso para mim.

— Você é bem nervosinha... — O xerife entortou a cabeça. — Derrubou Daryl com facilidade...

Fitei meus próprios pés, envergonhada, porém, aliviada de que as aulas com Cameron pelo menos valeram à pena.

— Fui obrigada... — Bufei, sibilando. — Eu não queria, mas vocês não me deram escolha.

Daryl deu um riso anasalado, debochando.

— Você até fingiu ser indefesa. — O caçador anunciou com uma voz levemente de desgosto, mas parecia tentar me elogiar também. — Uma atriz...

Molhei os lábios, encarando o ambiente para não ter que falar sobre como aprendera a lutar, porque isso levaria ao quesito família e família despertava feridas. Feridas...

Olhei para meu ombro esquerdo com um sobressalto, sentindo a ausência do desconforto antes impossível de ignorar. Não doía tanto. Ele fora enfaixado, enquanto estivera inconsciente e provavelmente tratado.

— Pedimos para Hershel dar uma suturada. — Rick respondeu a pergunta que me incomodava. — Agora não há mais o risco de pegar uma infecção...

— Espera que eu agradeça? — Coloquei um sorriso irônico no rosto. — Bom... Na verdade, talvez tenhamos começado pelo lado esquerdo, não é? — Passei a tentar formular uma maneira de conseguir sua confiança para poder dar o fora de seu acampamento o mais rápido possível. — Façamos o seguinte, Rick e Daryl... — Revezei minha atenção entre ambos. — Vamos estabelecer, sei lá, uma semana. Uma semana é bastante tempo. Considerando o mundo atual, pode ser uma vida inteira. — Pausei, refletindo. — Em uma semana, vocês me libertam... Vocês vão ver que estou mesmo sozinha, poderão dormir tranquilos e eu nunca mais os vejo.

O xerife sorriu como se eu fosse idiota.

— É... Não vai rolar. — Destacou com seu sotaque sulista. — Parece que você sai ganhando demais, não acha? Provavelmente quer que deixemos você sob a posse de suas armas também, eu suponho?

Sorri, singela, em resposta.

— Vamos ter que arranjar outros meios...

Bufei, desmanchando minha postura calma e não muito convincente. Teria que aumentar o período de tempo, contanto que conseguisse permanecer com minhas armas. Não desistiria delas...

— Um mês. — Vendi, seca. — Um mês com as armas e depois eu vazo daqui. Ah, e não vale me matarem de fome! Ou me deixam sair para achar minha própria comida ou terão que dividir a de vocês. E... Se alguém do seu grupo... — Imaginei um certo alguém. — ... tentar qualquer gracinha, fique avisado que não hesitarei em machucar o indivíduo de um jeito bem feio.

Rick e Daryl trocaram alguns olhares e acenaram com a cabeça em uma conversa silenciosa. Pareciam bem incertos quanto minha posse de armamento, mas também exalavam ter outras coisas, além de mim, sobre o que se preocuparem. Depois de uns minutos mortais, no entanto, saíram da barraca.

Agucei os ouvidos para tentar escutar o veredicto antes da hora, mas os dois fizeram questão de tentar controlar o tom de voz do pessoal. Então, tentei me manter ocupada, procurando algum buraco na tenda, mesmo sabendo que nunca abandonaria minhas facas, o machado e tudo mais. Nem se conseguisse tirar as algemas prateadas.

Após o que pareceu uma eternidade, Rick entrou novamente, aproximando-se de mim, que sentara no colchonete antes que fosse vista, como se minha vida estivesse sendo pesada em uma balança e qualquer coisa seria uma frase a mais para me condenar. Só que não fui sacrificada, um clique anunciou as algemas sendo abertas e guardadas na cintura do homem.

Massageei os pulsos, respirando vagarosamente, ansiosa. Se permanecesse, teria que conviver com várias pessoas aparentemente. Pessoas desconhecidas, que não mereciam minha confiança. Por outro lado, era o mesmo para elas, mais ou menos. Eu era a intrusa, a recém-chegada, a ameaça constante... Não seriam elas quem pagariam o preço por qualquer deslize, a mais culpada sempre seria eu... Eu era tanto a presa como o predador. Um predador com uma desvantagem imensa. As chances de tudo se repetir era tão grandes...

— Me perdoe, querida.

— Terá uma escolta armada vinte e quatro horas por dia, durante um mês. — Declarou. — Poderá reaver seus pertences, exceto as armas que carregava, e terá acesso aos alimentos que possuímos. Conforme o tempo passe, quem sabe possa recebê-las de volta? Agora, dirá seu nome ou será apenas a nervosinha que deu uma surra em Daryl Dixon?

Suspirei, dando de ombros. É claro que não me deixariam ficar com as armas... Será que se eu transparecesse um pouco de confiança, mínima sequer, conseguiria recebê-las antes do término de um mês? Droga... Pensei no companheiro musculoso e em como me defenderia caso acontecesse algo.

— "Nervosinha que deu uma surra em Daryl Dixon" será...

Revirei os olhos. Trinta dias sem um nome parecia algo desagradável... Ainda mais desagradável que o conjunto inteiro.

— Katrina. — Engoli em seco, séria. — Meu nome é Katrina Wayland.


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Notas finais do capítulo

E então? O que acharam? Por favor, comentem. Eu sei que disse que a fic não é movida a reviews, mas não era tão ao pé da letra, pessoal. Desanima se ninguém comenta, ok?
Ei, vocês perceberam que coloquei a frase da capa nesse capítulo? *w*
A Kit Kat se meteu em um problemão, hein? Pelo menos é o que ela imagina...
Comentem e até o próximo capítulo!
Xxxx