Premonição Chronicles 3 escrita por PW, VinnieCamargo, Felipe Chemim, MV, superieronic, Jamie PineTree, PornScooby


Capítulo 8
Capítulo 08: Você Acredita Em Deus?


Notas iniciais do capítulo

Escrito por Felipe Chemim.



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“A expressão ‘Espada de Dâmocles’ é uma alusão frequentemente usada para remeter a um antigo conto da mitologia grega, representando a insegurança daqueles com grande poder, visando a possibilidade deste poder lhes ser tomado repentinamente, ou, mais genericamente, a qualquer sentimento de ruína desmoronando, em sua danação.”

Premonição Chronicles 3

Capítulo 8: Você Acredita Em Deus?

–…Três... Sua respiração começa a ficar mais leve e você está voltando ao estado normal…Dois… Suas pálpebras começam a ter pequenos espasmos… - a voz da psicóloga era calma e concentrada – Um.

Renan abriu seus olhos azuis em um sobressalto no pequeno divã vermelho. Sua respiração, embora estivesse um pouco mais relaxada, continuava ofegante. Uma gotícula de suor escorreu pela sua testa e ele passou a manga de sua camisa jeans sobre o local.

Para o jovem, visitar a doutora Soave era um misto de alívio e dor. Alívio por ter conseguido achar alguém tão bom quanto ela para ajudar em sua amnésia, porém ainda mantinha a dor de não conseguir se lembrar de muita coisa.

A psicóloga era indicação da própria Ísis, uma boa jovem que ajudou Renan desde que ele acordou em frente a casa dela, há duas semanas e meia.

No começo do processo, não obtinha nenhum resultado muito grandioso. Nas últimas duas seções, Renan só conseguia trazer para si um só sentimento da sua memória: dor. Enquanto era embalado nos braços de um transe relaxante, narrava para a psicóloga sua pele ficando fria ao entrar em contato com a água gélida de um lago, talvez um mar.

O sol do outro lado da janela começava a pousar pelo horizonte, dando espaço a noite que chegava. O escritório da doutora Soave era clássico e tranquilo, com prateleiras repletas de livros, um aconchegante divã, poltronas e uma fina cortina de seda que escondia levemente o vidro da janela como um lenço em um rosto indiano.

Uma coisa que Renan percebeu durante todas as seções, era que ele parecia ser um homem cético. Mesmo fazendo tudo corretamente, ainda não acreditava muito em hipnose e regressão psíquica, mesmo que estivesse regredindo em seu próprio passado, e não em possíveis vidas anteriores. E talvez isso estivesse bloqueando a volta de sua memória.

Por fim, Renan agradeceu mais uma vez a consulta, pensando em como pagaria todas aquelas seções no futuro, depois que tudo fluísse um resultado positivo. Para sua sorte, a doutora Soave era simpática.

– Fique tranquilo, Renan. – ela disse, levantando-se de sua poltrona. Tirou uma mecha castanha que estava atrapalhando e ajeitou os óculos de armação arroxeada – Pode ter certeza que tudo irá ficar claro para você. Estamos começando a resgatar suas lembranças, pouco a pouco, e em um curto prazo você terá sua memória de volta.

– Obrigado novamente, doutora. – Renan agradeceu – Eu realmente estou muito agradecido por dedicar seu tempo ao meu caso.

– É mais comum do que você pensa. – a doutora soltou um riso suave.

Renan se despediu e saiu do escritório da psicóloga, enquanto ela o observava atentamente.

***

Maria Rita abriu os olhos, acordando.

Suas mãos ainda permaneciam juntas em sinal de oração. A senhora se espreguiçou e sentou na sua cama. Havia tomado um rápido café no meio da tarde e deitou para orar um pouco. Após o rito, acabou caindo no sono e adormecendo por algumas horas.

Observou o relógio ao lado da cama. Dezenove horas e três minutos.

Iria à igreja em algumas horas. Hoje era dia de culto. Resolveu levantar e tomar um banho. No banheiro da mansão, já nua, olhava para sua própria imagem no espelho. Passou levemente seus dedos em seu braço direito e em sua barriga, analisando um corpo que já foi mais jovem e esbelto. Dreads caíam sobre a pele negra de seus ombros, dando um pouco de juventude em seu rosto. Apesar de já ter sessenta anos, estava conservada, e pensava isso de si mesma.

No rosto, nenhuma ruga ou sinal de idade. No lado direito da sua cintura, ela observava um leve desnivelamento de uma costela perante as outras. Aconteceu há muitas décadas, no começo do casamento de Rita com Raimundo, já falecido, pelo menos fisicamente.

Durante uma discussão sobre algo que ela não lembrava ao certo, recebeu um empurrão do homem. Caiu pela escada, de péssimo jeito, e acabou com duas costelas quebradas. Enquanto era medicada, disse à todos que havia sido um acidente. Escorregou e caiu, sendo rapidamente atendida por um marido carinhoso e admirável que a levou ao hospital.

Rita ligou o chuveiro e a água começou a cair no piso gelado do banheiro. A senhora sempre gostou do toque quente em um bom banho. Lhe proporcionava lembranças de quando Raimundo, o falecido, ainda era um pouco carinhoso com ela, mesmo quando só queria ter uma noite casual com a jovem Maria Rita dos Prazeres Assunção, que casou com o homem quando tinha apenas quinze anos.

Sua mãe, Eleonora, jamais soube dos abusos que a filha sofreu para conseguir manter-se de pé financeiramente após a herança que recebeu de seu pai chegar ao fim. Rita era apenas uma adolescente de quinze anos. Nunca havia namorado ninguém, mas foi jogada nos braços de um belo militar que possuía dotes.

Rita tomou cuidado para a água não entrar em contato com seus dreads, então começou a ensaboar seu corpo. O sabonete deslizava, percorrendo a pele de ébano. A espuma começava a tomar conta de todo o corpo. Dos braços, do tórax, das pernas e da barriga, que um dia já serviu como casa para Augusto, um lindo bebê que nunca veio ao mundo com vida.

A idosa ainda lembrava de quando seu corpo sofreu o aborto instantâneo, levando o primeiro filho que ela poderia ter. Raimundo era com certeza um péssimo marido, mas poderia ser um ótimo pai e talvez tratasse Rita de um jeito melhor após o nascimento da criança, mas foi totalmente o contrário. O militar a culpou pela perda da criança e o casamento arranjado foi de mal à pior.

Você é podre.

Você não é decente nem de dar vida à uma criança.

Você é podre.

Nem um simples feto gostaria de te ter como mãe.

Você é podre.

Você tem sorte de ainda ter a mim, Rita, um homem que te faz mulher, que te impede de cavar a própria cova na solidão.

Mas você é podre.

Rita, então, começou a lavar o corpo, tirando o sabão. Sua cabeça ainda se mantinha afogada nas lembranças do passado. De alguma forma ou de outra, a senhora agora vivia sozinha. Mesmo tendo em sua vida alguma companhia boa, ruim ou outra que nem nasceu, ela sentia falta de alguém próximo.

O chuveiro foi desligado e Rita ficou mergulhada no silêncio da casa solitária.

***

Renan virou a esquina e chegou na pacata rua onde estava instalado. Há duas semanas atrás ele havia sido encontrado na frente de uma das simples casas que estavam construídas ali. O movimento quase não existia e a vida era mantida pelos risos e gritos de crianças que brincavam desviando de carros, jogando bola ou correndo uma atrás da outra.

A localização de sua moradia era um lugar simples. As casas não chegavam a ser pobres, mas estavam longe de serem mansões. Renan deu mais alguns passos pela calçada, quando parou para acariciar um pequeno beagle que se aproximou de seus pés.

– E aí, garotão? – Renan disse enquanto fazia carinho na cabeça do cachorro.

Um garoto, com aproximadamente sete anos, rapidamente seguiu o caminho do cão, parando ao lado do homem de olhos claros. Com seus olhos amendoados, observou o beagle rolar no chão, oferecendo sua barriga como alvo de carícias.

– Algodão gostou de você desde que você chegou. – o menino comentou com seu sotaque forte, segurando sua bola de futebol.

– Ele é um ótimo cãozinho, Chico. – Renan disse, ficando de pé e parando os carinhos no animal. Algodão choramingou em protesto.

– Renan, posso te perguntar uma coisa? – Chico perguntou sem esperar a resposta – Você já se lembrou de alguma coisa?

Os olhos azuis pousaram sobre o garoto e analisou a situação por alguns segundos. Então, sorriu. Ele gostava de como as crianças mantinham sempre um modo sucinto de viver, algo tão puro. Então, balançou a cabeça negativamente.

– Não, eu não lembrei de nada. – mentiu enquanto a sensação de estar afundando vinha à sua mente.

– Olha, se você quiser, eu posso pedir para minha mãe ligar para uma tia minha que entende de magia. Ela pode te ajudar de algum jeito! – Chico sorriu satisfeito, embora faltasse um dente que caiu dois dias atrás – No trabalho ela é conhecida como Bruxa Ametista!

Renan soltou uma risada franca e bagunçou o cabelo do garoto.

– Pode deixar, vou pensar na proposta.

O homem se despediu de Chico, que seguiu caminho com Algodão o seguindo. Renan entrou na pequena casa de dois andares, que possuía as paredes externas coloridas com um tom amarelado e claro. Ao passar pela porta, cheiro de comida chegou até o homem, que observou Ísis descer as escadas do segundo andar. A loira estava arrumada.

– Oi, Renan, espero que tenha dado tudo certo lá na consulta. – ela disse, parando em frente ao espelho no final da escada e passando um batom escuro em seus lábios – Hoje eu vou sair para uma festinha que me convidaram. O dia dando aulas de francês foi tão tedioso. E ah, eu assei pizza, comi um pouco e deixei para você, se quiser. Ainda está quentinha.

Ísis ajeitou suas mechas loiras e ajustou novamente a camiseta roxa sem mangas, com um avantajado decote, que combinava com sua saia. Ela caminhou até o sofá e sentou, se apoiando para colocar seus delicados pés dentro de saltos altos pretos.

– Está bem. – Renan concordou – E Ísis… Alguma novidade? Alguém procurou por mim ou…?

A loira terminou de ajeitar os saltos e parou por alguns segundos, respirando fundo. Renan já sabia o que isso significava, mas obteve ênfase pelo balanço em sentido negativo da cabeça de Ísis, que se levantou e parou em frente ao homem, colocando suas mãos nos ombros dele.

– Fica calmo, Renan. Sei que é fácil falar, mas ainda vamos descobrir tudo que aconteceu contigo. – a voz dela era serena e seus olhos castanhos estavam carregados de doçura – Fica bem, tá? Pode trancar tudo e não me espere voltar, eu tenho a chave extra.

Com a retirada, Ísis depositou um leve beijo no rosto de Renan e saiu, ecoando o som de seus saltos, deixando Renan sozinho. O rapaz gostava muito da loira e ela estava sendo uma ótima amiga. Há duas semanas e meia, ele havia acordado em frente àquela casa a qual estava hospedado, sem nenhum resquício de memória e com dores de cabeça.

Ísis, ao contrário da maioria das pessoas que passavam por perto com olhares tortos e julgadores, acabou o acolhendo como um velho amigo, mesmo sem conhecer nada sobre o homem. A loira logo o ajudou. Primeiro, lhe deu alguns remédios para dor de cabeça e cuidou de alguns pequenos ferimentos que ele tinha.

Juntos, eles analisaram toda a situação. As únicas peças de roupas que Renan possuía, que eram as que vestia naquele momento, não diziam muito sobre ele. Eram uma simples camiseta branca e uma calça moletom. No bolso dessa última peça, jazia um pequeno papel, mas que estava muito desgastado e quase ilegível. Parecia ser um recorte de uma certidão de nascimento, provavelmente a dele, que mostrava apenas um nome: Renan.

Renan se encaminhou para a cozinha e abriu o forno do fogão, que permanecia aceso em fogo baixo. Com a ajuda de um pano, ele retirou a pizza, colocando-a em cima da mesa. Procurou por um prato e talheres. Achou rapidamente e sentou-se.

Com a mente distraída, permanecia tentando se agarrar a qualquer fino fio de lembrança que poderia passar pela sua cabeça, enquanto jantava.

***

A sala estava arejada. Hórus conduzia o governador Valdemir e seu irmão, Yuri, para sua sala de reuniões, dentro de seus ternos e gravatas. Há quase um mês atrás, havia assumido o posto de secretário do governador após o antecessor ser assassinado misteriosamente. Ao entrarem no cômodo, sentaram-se nas cadeiras giratórias, em volta da mesa. No canto, um pequeno balcão guardava alguns porta-retratos, meia dúzia de copos e uma garrafa de whisky.

– Aceita, governador? – Hórus ofereceu.

– Não, Hórus, obrigado. – a oferta foi recusada – Me conte mais sobre o caso da favela.

Hórus concordou com a cabeça e depositou a bebida alcoólica em dois copos. Tomou um para si e esticou seu braço, depositando-o nas mãos de Yuri, que não trabalhava para o governo, mas era um nome importante entre as agências de mídia.

– Bom, é até meio complicado dizer. – Hórus carregou a frase de cinismo, sentando-se – Há uma certa região que seria até uma espécie de cracolândia. Há tantos mendigos e muitos deles partem pra roubos e prostituição. Creio eu que um novo sistema de drogas está nascendo por lá.

Bebericou um gole do whisky.

– Já colhi diversas informações e descobri que uma sociallitezinha metida está fazendo certo projeto por lá. Parece que está querendo tirar alguns, ou ajudar com doações, eu não sei. – Hórus revirou os olhos sutilmente.

– E o que isso tem de ruim? – o governador perguntou intrigado.

– Estava esperando por essa pergunta. Quando assumi o posto em que estou, já recebi em mãos um novo projeto de financioadores para aumentar o lucro. – Hórus deslizou uma pasta preta pela mesa, até ela chegar ao alcance do homem – O lugar onde aqueles mendigos, viciados em pó e prostitutas moram é uma fábrica abandonada. Lá é cheio de gente fraca, a verdadeira escória da sociedade. Este projeto nada mais é do que um empurrãozinho para melhorarmos. Se limparmos aquela fábrica, teremos um grande espaço para nossa economia, construindo algo que nos mantesse no topo. Talvez um shopping, ou um parque.

– E para onde essas pessoas iriam? – a pergunta foi levantada por Valdemir.

– Para a favela, oras. – Hórus respondeu sorrindo. Como um bom homem com o dom de persuadir, ele olhava sempre nos olhos do governador e de seu irmão, com seu belo sorriso no rosto – O subúrbio é sempre saturado de gente pobre e inútil, algumas a mais não fará diferença. Joga o grupo em algum barracão e temos o espaço para a gente.

Valdemir pareceu pensativo. Então concordou com a cabeça.

– Marque uma reunião com os demais membros importantes do conselho superior. Não quero montar uma grande assembléia. – levantou-se da cadeira – Mas não se apresse com isso. Tire o resto do seu dia de folga, já está quase de noite. Eu já irei para casa. Boa noite, rapazes.

O governador obteve uma resposta em uníssono de Hórus e Yuri e então saiu da sala. O secretário acabou trancando a porta, disfarçadamente.

– Seu irmão é um pouco reservado, não é? – Hórus perguntou, terminando de beber o whisky de seu copo.

– Ele é. Geralmente eu sempre fui mais extrovertido e comunicativo, o que explica muita coisa. – Yuri comentou, rindo – Ele até esqueceu que tínhamos feito uma reserva para dois no restaurante Lamounier.

– Poxa, que pena. Lá é um ótimo local. Adoro os frutos do mar de lá. – Hórus respondeu pretencioso, mordendo levemente seu lábio inferior.

– Sério? Sabe, você não gostaria de me acompanhar? – Yuri perguntou sorrindo esperançoso – Só peço que não fale sobre política.

Hórus se aproximou e então olhou para a porta trancada. Encarou Yuri, que parecia hipnotizado nos olhos claros do outro, esperando uma resposta.

– Que tal já partirmos para a sobremesa? – o secretário sorriu malicioso.

Hórus depositou sua mão na nuca de Yuri e o puxou para um beijo quente, que logo foi correspondido e aumentou as chamas da lúxuria. O secretário colocou as mãos na cintura do outro e puxou, assim colando seus corpos. Em alguns segundos, Yuri já estava sendo levado para cima da mesa, enquanto as agéis mãos do outro abriam seu cinto e adentravam sua calça.

O secretário até sentia atração naquele momento, mas sabia o tipo de homem que Yuri era. E para Hórus, manter uma relação próxima, literalmente, com o irmão do governador era uma tacada certa para seus planos. E claro, ele podia se divertir no meio disso tudo.

Os beijos se tornavam intensos a cada segundo, enquanto botões eram abertos. Rapidamente, gravatas e outras peças já estavam no chão.

***

Rita vestia um leve vestido branco, se encaminhando para adentrar na igreja, combinando com a Lua que brilhava no céu. Ela sabia que lá dentro, o pastor terminava de arrumar os últimos detalhes para o culto. Algumas pessoas terminavam de andar, se ajustando nos diversos bancos de madeira da capela. Na frente, como de costume, estava o GJC, sigla para “Grupo de Jovens Cristãos”, sorridentes e felizes, prontos para espalhar sua animação durante a celebração.

Quadros de aquarela e pequenas cruzes estavam espalhados em grande número pelas paredes ou qualquer espaço vazio. As janelas eram coloridas e mantinham certo brilho ao entrarem em contato com as velas que eram acesas para reforçar a iluminação vinda das lâmpadas. O teto abobadado mantinha uma pintura um pouco desgastada de um céu com anjinhos espalhados entre as nuvens. Nos quatro cantos do salão paroquial, haviam ventiladores para manter os fiéis salvos do calor.

Um grupo de senhoras estava reunido em um canto do local e uma delas parecia nervosa, com os olhos marejados e bastante aflita. As outras três, que estavam em volta, diziam várias coisas. Às vezes, as falas se misturavam. As expressões delas também pareciam aflitas, com os cenhos franzidos.

– Lourdes, há algo errado? – Rita adentrou no assunto, com sua voz carregada de ternura, se direcionando à mulher que aparentava estar muito nervosa. A negra sempre foi tratada com muito carinho por todos da paróquia e muitos a tratavam como uma mãe.

Lourdes, uma mulher que estava chegando aos quarenta e tantos anos e usava um vestido brega florido com margaridas, olhou para as outras e então encarou Rita.

– É sobre meu filho.

– O Marcos? – Rita perguntou.

– O Márcio. – Lourdes corrigiu – Hoje eu cheguei em casa um pouco mais cedo do trabalho. Como de costume, me dirigi até o quarto dele para lhe dar um oi e um beijo. Ele deveria estar jogando video game com Lucas, o filho do pastor, como sempre fazia. Mas… Mas… - o rosto da mulher ficou vermelho e os olhos marejados. Lágrimas começavam a rolar pela sua face – Eu não sei nem como dizer isso… Márcio e o filho do pastor estavam se beijando.

O rosto de Rita foi tomado por uma expressão de susto e desprezo.

– Meu Senhor Jeová! – ela exclamou – E o que você fez? Deu umas belas palmadas, não é?

– Não tive coragem. – Lourdes confessou – Eu expulsei Lucas de casa. Disse para ele nunca mais aparecer em minha casa e muito menos contatar meu filho. Depois, tive uma briga feia com meu filho, tanto que ele nem veio hoje.

– Entendo, você deveria estar nervosa. – Rita disse com uma ponta de compaixão – Mas não se preocupe, vamos todos orar por ele, não é mesmo, senhoras? Deus vai curar a alma de seu filho e do filho do pastor. Deve ser apenas uma fase, uma tentação do Diabo! Vai ficar tudo bem.

Rita se aproximou e depositou um abraço em volta de Lourdes, que tentava controlar o choro. As outras que estavam em volta acompanhavam com frases de soliedariedade e carinhos.

– Peço que me deem licença, vou conversar com o grupo de jovens. – Rita disse, saindo de perto das amigas e contornando os bancos.

A senhora andou até a frente, se aproximando do grupo de pessoas que ensaiavam cantos e exalavam animação. Dentre deles, Tobias, um jovem de quase trinta anos, sorriu para ela.

– Olá, jovens! – Rita sorriu animada.

O grupo respondeu ainda mais animado.

– Hoje vocês estão a todo favor. Está me dando tanto orgulho! – Rita incentivou – Só espero que não tentem cantar “Oh Happy Day” de novo. A última vez, voltei rouca para casa de tanto cantar.

– Mas assim que é bom. – Tobias se aproximou, sorrindo.

Apesar de ter entrado no seu fanatismo religioso há apenas três meses, Rita era muito popular entre os fiéis e muitos a adotaram como mãe. Em um certo sábado ensolarado, a senhora estava trancafiada em sua casa, como nos últimos trinta e cinco anos, quando recebeu a visita de dois jovens, testemunhas de Jeová. Como achou que não tinha nada melhor para fazer, os acolheu e ouviu atentamente cada palavra que proferiam ou liam na Bíblia.

Enquanto ouvia, sentiu crescer dentro de si um grande poder. Primeiramente não sabia se era fé, mas resolveu iniciar sua frequência a cultos. Cantar todas aquelas músicas, ter regras estabelecidas e a ideia de conseguir manter em suas mãos o poder de julgar o certo e o errado começaram a fasciná-la. Se acreditava realmente em Deus ou não, era apenas mais uma incógnita. O que importava para ela de verdade era ter encontrado um caminho estabelecido para seguir.

– A propósito, quando faremos uma nova celebração em sua mansão, Rita? – Tobias perguntou, referindo-se aos cultos religiosos que a senhora proporcionava em sua mansão, com diversos fiéis.

– Temos que ver, caro Tobias. – Rita respondeu, passando carinhosamente a palma de sua mão pelo rosto do jovem, cujo qual possuía grande afinidade e conexão, talvez até mesmo mais do que uma ligação “maternal” – Espero que a caixa de preces ainda não esteja fechada.

– Claro que não, Rita! – uma jovem loira e sorridente respondeu, lhe apontando uma caixa cheia de papéis cortados. Rita sorriu novamente, embora ainda lembrava do dia em que brigou com aquela moça porque ela usava uma saia na altura das coxas, que de acordo com a senhora, era inapropriada e parecia uma vagabunda.

Rita se encaminhou até ela e escreveu diversas palavras em um papelzinho, depositando-o na caixa. Depois, olhou para o palco onde o pastor costumava ficar. Se encaminhou para os bancos do fundo e esperou o culto começar.

Rapidamente, um homem alto, robusto e bem arrumado surgiu, com um microfone nas mãos. Subiu no palco e cumprimentou todas as pessoas, chamando-os de “irmãos e irmãs”. Depois de jogar um pouco o papo fora, pegou a caixinha de orações e leu uma a uma, com gritos de “aleluia!” em coro.

Estava tão animado, que lia rapidamente todas os papéis, sem nem mesmo ver direito do que cada um se tratava.

– “Peço orações pela alma de Janira, que infelizmente faleceu na noite de ontem, vítima de uma virose.” – o pastor leu e todos responderam como sempre – “Peço que Deus ilumine a alma de Márcio, filha de Lourdes, e Lucas, filho do pastor,” – o homem deu uma leve engasgada – “que estão sendo guiados pela trilha do mal. Peço que a comunidade ore para que não continuem nesse caminho pecador da homossexualidade.”

O pastor largou o microfone, catatônico. As pessoas começavam a causar confusão, visivelmente desconfortáveis. Algumas pessoas ainda ousaram gritar um “aleluia” para a prece, sendo Rita uma delas.

A senhora dos dreads virou seu rosto. Lourdes encarava, descrente, com fúria em seu olhar.

***

Hórus fechou o zíper de sua calça e começou a abotoar sua camisa branca. Yuri já estava vestido e se preparava para ir embora. Ajustou mais uma vez seu cinto, para parecer que nada aconteceu.

– Curti você. – Yuri disse – Podemos nos encontrarmos mais vezes?

– Por quê não? – Hórus disse sedutor, soltando um sorriso torto que era considerado uma de suas armas fatais.

Yuri se aproximou e depositou mais um beijo nos lábios do secretário.

– Eu amei te conhecer. – Hórus falou, exagerando na falsa doçura de sua voz.

– E eu amei cada pedacinho seu. – Yuri correspondeu, perto do ouvido do outro, apertando levemente o membro de Hórus por cima da calça – Principalmente sua língua.

Yuri se despediu definitivamente e saiu da sala, sorrindo. Hórus terminou de se vestir e soltou uma risada vitoriosa. Deu alguns passos para o lado e pegou mais uma dose de whisky. Com o copo em uma mão e seu celular em outro, começou a passar pelos contatos de sua agenda.

– Nossa, saudades dessa ruiva gostosa. – ele comentou enquanto passava pelo nome de uma mulher que havia morrido no ano anterior. Então, contatou quem desejava – Alô? Sim, tenho tudo sobre controle. É, é… Governador já está praticamente aceitando a falsa proposta e pode deixar que a mídia também está comendo nas minhas mãos. Ou sendo comida, no caso. Mas enfim, está tudo pronto?

Recebendo uma resposta positiva do outro lado da linha, prosseguiu:

– Ótimo, fico feliz. Cabo da Praga jamais será a mesma.

***

Renan terminou o último pedaço de pizza e subiu para o quarto que Ísis havia providenciado para ele. Não era muito espaçoso, mas era confortável o bastante e na verdade era o sótão da casa. Dois dias depois que o rapaz apareceu desacordado, a dupla buscou colchões doados e alguma cama. Por sorte, conseguiram encontrar coisas em bom estado. A loira também o ajudou comprando algumas roupas.

Deitou-se na cama, fitando o teto. Era um pouco hiperativo e não conseguia ficar parado muito tempo se não estivesse cansado. Virou de bruços e afastou um pouco seu travesseiro do lugar de costume, pegando um pequeno pedaço de papel que sempre ficava ali.

Virou o papel de um lado, do outro, tentando achar qualquer mínimo detalhe que pudesse ajudar. Era o pedaço de sua possível certidão de nascimento. Mas por quê tudo foi tirado dele e isso havia ficado? Ele não conseguia entender nem sequer conseguir imaginar respostas para sua pergunta.

Saiu do sótão com uma toalha em mãos, se encaminhando ao banheiro. Tirou toda sua roupa e ligou o chuveiro. O cabelo, molhado, ficava colado em seu rosto. Sua mente, inquieta, processa vários pensamentos ao mesmo tempo, enquanto lavava seu corpo.

Possuía algumas tatuagens. Assim que estabeleceu sua vida naquela casa, procurou o significado de todas, tentando achar alguma pista que o levasse ao passado. Em cada panturrilha, havia uma flecha, que apontava para cima. Na mitologia greco-romana, este símbolo representa o planeta Marte, um deus que é o protetor dos soldados e que indica a ordem e direção. Também é uma lança e simboliza tanto uma arma como um símbolo da justiça.

Em suas costas, outra tatuagem retrata a Orbis Epsilon, um círculo dividido em duas partes iguais, com quatro setas apontando para fora. Era um desenho inspirado na mitologia germânica. Este símbolo era usado na época dos Vikings, em uma linguagem chamadas Runas e acreditava-se que as elas tinham poderes místicos e poderiam realizar grandes truques.

No antebraço havia um desenho de um “X” junto com um círculo. Renan descobriu que o desenho era chamado de Gebõ, sempre sendo referência a um símbolo que representava um certo carma e equilíbrio, o recíproco. Tudo que você faz de bom ou ruim volta para você. Era também usado na antiguidade para simbolizar uma união de troca mútua.

E para finalizar, em seu peito havia uma frase escrita em latim: “Provehito in altum” que significava “Alcançar as alturas, lançar-se às profundezas”, provérbio para simbolizar a buscar de seus ideais, lançando-se em seus objetivos e metas.

Renan passou um dia inteiro pesquisando mais sobre esse assunto, tentando ligar os pontos e criar uma conexão entre alguma coisa. Mas, para sua infelicidade, não conseguiu, e as simbologias místicas não o ajudavam em nada.

Terminou seu banho, se enxugou e vestiu. Desceu para a sala, pegando o notebook de Ísis e colocando em seu colo. A loira havia lhe dado acesso para fazer qualquer procura. Os dois já haviam anunciado e procurado por algum homem desaparecido na região ou lugares vizinhos. O resultado era totalmente frustrante. O rapaz sentia-se indignado. Como alguém sumiria assim e aparecia em outro local, com amnésia, sem deixar rastros?

Quase sem esperanças, resolveu voltar para seu quarto e tentou dormir.

***

Rita saía apressada do culto, tentando fugir da ira que caía sobre ela. Lourdes gritava, tomada pela raiva e descontrole. Pessoas a seguiam, assustadas, prontas para impedir caso a discussão partisse para violência física.

– Você não tinha o direito de fazer isso! – Lourdes gritou.

– O seu filho é um pecador! – Rita respondeu – Você devia dar uma surra para ele aprender e virar homem!

– Ele é um bom menino… - Lourdes chorava.

– Se fosse um bom menino não seguia os passos do Demônio! – Rita escandalizava – Deus não criou Adão e Ivo para seu filho ser uma pessoa abençoada. Ele não passa de uma coisa, de um servo das trevas e do pecado!

– Ele não é nada disso. Ele é uma ótima pessoa, tenho certeza que isso é apenas uma fase…

– Você não pensava assim quando pichou o muro daquele viado que morava na rua de cima, não é? Você mesma sugeriu a frase: “Deus te odeia, você é um pecado na terra, não merece viver.” E quando quebrou a janela de outro com pedradas, Lourdes? – Rita cuspiu – Você só está com medo que aconteça o mesmo com o Márcio, mas não se preocupe, a justiça de Deus pode tardar, mas não falha!

– Olha aqui, Rita, você não deveria dizer como criar meu filho! Eu o amo muito e…

– Eu digo o que bem entender. – Rita interrompeu – E fique sabendo…

– Não, você não diz. – Lourdes interrompeu dessa vez – Porque você não tem filhos e nunca terá. Você não passa de uma casca putrificada, então, não tente me dizer o que fazer com um filho, quando você mesma nem conseguiu dar vida à um.

O silêncio se instalou pelo local. Pela primeira vez, apenas a tensão e o ar cortante como um faca afiada permaneciam ali. Rita virava para os lados, séria, com pesar em seu olhar. O sangue de Lourdes fervilhava, com raiva. As pessoas permaneciam chocadas com o diálogo das duas.

Lourdes foi a primeira a começar a dispersão, se encaminhando para casa. Outras pessoas a acompanharam. Rita permanecia sozinha, paralisada, ainda absorvendo as palavras que seus ouvidos acolheram. Tobias tentou se aproximar e mostrar afeto, mas a senhora recusou. Deu a volta e começou a caminhar em direção à sua casa.

Uma fina garoa começou a cair do céu.

***

Renan acordou no meio da noite com uma chuva batendo contra o vidro da janela. Já devia se passar dar três da manhã, ou talvez quatro, ele não saberia. Virou de um lado para o outro. Fechava os olhos. Abria. Fechava. Mentalizava sonhos e pensamentos positivos. Imagina um carneirinho pulando uma cerca. Dois carneirinhos. Três carneirinhos. Quatro…

Garganta seca e uma repentina onda de calor tomou conta do corpo de Renan. O homem resolveu levantar e buscar um copo d’água na cozinha. Caminhou silenciosamente, com cuidado, enquanto uma leve dor de cabeça começava a latejar na parte de trás. Com dois dedos, ele massageou levemente a origem da dor, tentando aliviá-la.

Ao chegar na cozinha, acionou o interruptor e ligou a luz, se assustando.

– Oh, me desculpe! – Renan disse, corando levemente.

Ísis estava sentada em cima da mesa, com parte de sua blusa abaixada. As pernas se cruzavam em volta do corpo de um homem ruivo, que estava com a camisa xadrez desabotoada e aberta, mostrando seu corpo. As unhas da loira passeavam pelas costas do rapaz, amassando sua roupa.

– Renan?! – Ísis exclamou parando os amassos, estava um pouco alcoolizada – Nossa, nos desculpe, não queríamos te acordar…

– Calma, relaxa. – Renan disse – Só vim pegar um pouco de água.

O homem se apressou em pegar o que queria e subiu para o sótão. A dor de começou a ficar mais forte. Sentia um ponto na parte de trás da sua cabeça ficar mais dolorido a cada segundo. O sofrimento desceu para a nuca e logo descia por toda a coluna espinhal como em um carrinho de montanha-russa.

Renan arquejou e seu corpo perdeu a força. Esticou a mão, procurando apoio na parede de seu quarto. A visão havia escurecido e sentia seu equilíbrio se esvaindo como água pelo ralo. O copo despencou de suas mãos, transformando-se em cacos ao atingir o chão. O líquido se espalhou pelo chão de madeira do sótão.

Os joelhos hesitavam, mas fraquejaram, e Renan foi ao chão, enquanto lembrava-se de um homem colocando um saco plástico em seu rosto.

***

Rita estava sentada no sofá de sua mansão, vestida com um pijama de algodão, assistindo um filme na televisão que envolvia uma cantora de rock que se escondia como freira em um convento. Em seu colo, jazia um pote com um pouco de pipoca e na mão, uma xícara de café.

Já era de madrugada, mas ela não conseguia pegar no sono. A chuva lá fora parecia aumentar gradativamente. A discussão com Lourdes sobrevoava em volta de sua cabeça, assombrando-a e afundando a senhora no passado. Não era só Raimundo que a via como uma casca podre e inútil.

– Todos veem… - Rita pensou alto, terminando de comer sua pipoca.

Apenas a luz provinda da televisão iluminava o local, que era decorado com bom gosto. Mesinhas decorativas suportavam vasos bonitos com flores. Em alguns, ainda tinha um abajur para fortalecer o clareamento do ambiente. Mas as luzes estavam apagadas.

Depois de alguns minutos, Rita desligou o televisor e resolveu subir para seu quarto, tentaria descansar. Ela gostava de sua casa, construída com a herança deixada pelo falecido marido e com a produtividade da fazenda que sua mãe deixou para ela, no interior de Minas Gerais, após sua morte devido a um câncer, há muitos anos.

Com a mão apoiada no corrimão, Rita desviou de um pequeno balcão que suportava quatro vasos de flores, e começou a subir lentamente, degrau por degrau. Quando faltava cinco ou seis degraus para alcançar o topo da escada, a luz do corredor do segundo andar acendeu-se.

A senhora piscou por alguns breves segundos, para se acostumar com a iluminação repentina que lhe encheu os olhos. Continuou a subir. Quando faltava dois degraus, ouviu a voz mais conhecida e temida de sua vida.

– Olá, Rita.

As pernas dela ficaram bambas e o sangue começou a esquentar. Não podia ser. De novo, não. Como se não bastasse assombrá-la em seus sonhos, Rita agora observava Raimundo surgir em sua frente, com seus passos rígidos de um homem que serviu a pátria por anos.

Vestia uma calça camuflada, que combinava com seus coturnos, mas que tinha a formalidade totalmente quebrada por um moletom cinza. A barba, um pouco grisalha e por fazer, lhes dava alguns anos a mais do que aparentava ter. Os cabelos fugiam do estilo raspado e militar. Eram um pouco ondulados e alguns fios brancos chamavam atenção.

– Me deixa em paz, pelo amor de Deus! – Rita gritou descendo um degrau.

– Ah, não use o nome do Senhor em vão. Esse não é um dos principais mandamentos? – Raimundo ironizou, descendo um degrau.

– Volte para seu inferno, seu demônio! – Rita esbravejou, descendo mais dois degraus.

– Meu corpo pode ter sido enterrado, Rita, mas eu jamais morrerei, até você morrer. Eu sempre estarei dentro da sua cabeça. – Raimundo disse, batendo o dedo indicador levemente no lado de sua própria cabeça. Ele então começou a deslizar sua mão pelo corrimão, descendo mais alguns degraus – Lembra de quando eu te joguei de uma escada parecida com essa?

– Pelo sangue de Jesus, me deixa em paz! – Rita falou, fechando os olhos e descendo mais três degraus.

Raimundo se aproximava cada vez mais.

– Preciso te perguntar algo: você acredita em Deus? Mesmo? – Raimundo perguntou – Ou apenas acha que sua vida insignificante será poupada no “juízo final”? Você segue ensinamentos de um livro milenar porque realmente acredita neles ou porque quer criar um poder dentro de si mesma ao mesmo tempo em que teme arder no fogo do inferno? Uma fiél por medo?

– Saia daqui! – Rita gritou mais uma vez e tentou descer rapidamente.

Nos últimos degraus, seus pés se confundiram e Rita quase caiu no chão, se não fosse o pequeno balcão que serviu como seu apoio. Um dos vasos se espatifou no chão, criando uma poça de água, cacos e flores.

Batidas na porta.

Agitada, Rita olhou para onde o som provinha e depois olhou para a escada. Não havia nada, nem ninguém. A luz do corredor estava apagada novamente.

A senhora se encaminhou para a porta e abriu-a.

– Tobias? – ela perguntou, confusa.

– Oi, Rita. – ele cumprimentou olhando para dentro da casa – Eu fiquei preocupado com você depois daquilo que aconteceu. Estava passando pela sua casa e ouvi alguns barulhos. Está tudo bem?

– Claro, claro. – Rita mentiu, mas sua voz aparentava nervosismo – Eu só me assustei com uma… ahn, barata, e acabei derrubando um dos meus vasos.

Tobias a encarava por alguns segundos, ainda desconfiado.

– Nossa, você está encharcado! – Rita disse – Entre, vou buscar uma toalha para você se secar. Tem algumas roupas antigas, do meu falecido marido.

Depois de alguns minutos, Tobias já se encontrava acomodado no grande sofá da mansão, com uma coberta de lã e roupas usadas. Rita o olhava, com compaixão.

Depois de acomodar bem o rapaz, que a ajudou a limpar a bagunça do vaso, Rita lhe deu um beijo na testa e subiu para seu quarto, sentindo-se um pouco mais segura, mas ao mesmo tempo apreensiva, pois ainda existia a hipótese de Raimundo aparecer novamente e devorar o resto de sua sanidade.

***

Renan acordou com os raios de sol invadindo seu rosto. Colocou a mão direita sobre os olhos claros, protegendo-os. Ainda sentia uma leve dor de cabeça, mas era menor do que a anterior. Ao seu lado, alguns cacos do copo estavam espalhados e havia uma mancha úmida que fora absorvida pela madeira do chão.

Com cuidado, ele desceu até a cozinha, procurando algo para se alimentar. Ísis não estava em casa. Possivelmente foi dar alguma aula particular de frânces ou no cursinho, motivo de seu sustento. Com um copo de suco em mãos, Renan sentou-se no sofá da sala. Na mesinha de centro, uma pequena moldura exibia uma fotografia da loira dona da casa na Torre Eiffel, em Paris, há muito tempo atrás.

Como lembrava-se de afundar em algum lago, Renan tentava afundar no seu passado. Ele conseguiu se lembrar de alguma coisa. Uma figura masculina o sufocando com um saco plástico. O rosto ainda estava desfocado, mas ele sabia que já era algo. Será que alguém havia tentado assassiná-lo?

Terminou de comer e subiu para trocar de roupa. Apesar de tudo, havia conseguido um trabalho uma semana depois de chegar ali. Precisava ajudar Ísis nas custas e se manter de alguma maneira. Rapidamente obteve em mãos o capacete que guardava em baixo da cama.

Desceu as escadas apressado e subiu na moto, que foi disponibilizada pelo seu chefe para ajudá-lo na locomoção e no seu trabalho, após Renan descobrir que sabia dirigir tanto moto quanto carro. Mas como a primeira opção era mais acessível, ágil e prática, foi a escolhida. Enquanto saía da rua, avistou Chico e Algodão brincando juntos. Ele era um bom garoto e passava a maior parte do tempo sozinho, pois sua mãe trabalhava de manhã e a tarde como garçonete e a noite, se obrigava a entrar no mundo da prostituição para conseguir dinheiro e criar o menino. De vez em quando, ele ficava com sua tia, mas não melhorava muito a solidão.

Algumas quadras depois, Renan estacionou e desceu. O estabelecimento estava recém-pintado de amarelo-mostarda, o que era bem sugestivo para uma lanchonete, perto da favela. O rapaz passou rapidamente pelo balcão, desviando de clientes que lanchavam em bancos ou cadeiras.

Guardando o capacete dentro de um dos armários, Renan já se preparou para o atendimento. Não demorou para dois rapazes se aproximarem. Aparentavam ser mais dois filhinhos de papai, com tanta semelhança que o atendente julgou serem gêmeos.

– Boa tarde, rapazes. – Renan sorriu simpático.

– Oi. – um deles falou secamente.

– O quê desejam?

– Nós temos uma encomenda. – o outro respondeu, um pouco mais simpático.

Renan olhou para os lados, observando coxinhas, pastéis, doces e outros tipos de comida. Nenhum parecia ter algum bilhete de encomenda. Entendendo o recado, ele pediu licença aos rapazes e adentrou os fundos da lanchonete pela porta que se encontrava atrás dele.

Seguindo por um corredor mal iluminado, Renan chegou até o cômodo onde se escondiam os produtos que não poderiam ser exibidos nas vitrines. Em diversas prateleiras de metal, armas e pacotes com drogas eram guardadas. Senhor Darlli, o chefe e dono do estabelecimento, terminava de arrumar algumas coisas e colocava pacotes em seus devidos lugares. Era barbudo, parrudo e tinha traços indígenas, embora jurasse ter sangue europeu.

– Bom dia, Renan. – ele cumprimentou bem humorado, embora tivesse uma voz extremamente grave.

– Fala, chefe. – Renan devolveu simpático – Tem uma dupla aí dizendo que tem uma certa encomenda para eles.

– Ah, são os irmãos Rios. – o homem respondeu, então pegou uma maleta, conferiu seu interior e entregou para Renan – Eles tiveram sorte, Ed trouxe isso aqui hoje de manhã.

Ed era um senhor que já foi agente da polícia federal, mas hoje ajudava nesse mundo submerso das armas ilícitas. Era gente boa.

– Pode entregar a eles. E não se preocupe, eles já efetuaram o pagamento. – Darlli avisou – E ah, mais tarde você precisa fazer uma entrega. Te passo as informações mais tarde.

Renan concordou e voltou para a frente da lanchonete, deslizando a maleta pelo balcão e entregando aos dois homens, que saíram sem dizer mais nada nem olhar para trás. Na televisão, que estava no topo de um dos cantos, passavam-se notícias de alguma confusão em um aeroporto.

***

Já se passava da hora do almoço e Renan acelerava, montado em sua motocicleta. Trazia consigo uma maleta, a nova entrega do momento. O local marcado era em um beco atrás do restaurante Lamonieur.

Enquanto deslizava pelas ruas de modo dinâmigo e rápido, tentava manter conexão entre todas as informações que conseguia colher. Mesmo estando plantado em um mundo um pouco ilegal, – inclusive, Darlli era velho amigo de Ísis, então, Renan devia mais essa a ela – o rapaz havia tentado procurar pistas de alguém desaparecido em fichas criminais ou boletins de ocorrência.

Que conexão ele conseguiria achar entre tatuagens com signifcados de “tudo que vai volta” ou “Marte deus protetor da ordem e dos soldados” com lembranças dele mesmo afundando em um lago ou sendo sufocado por um saco plástico?

Não demorou muito para ele chegar até seu destino. Quando estacionou a motocicleta no beco, a mulher já o esperava. De acordo com as informações de Darlli, ela se chamava Marcela e era editora chefe de uma grande revista midiática. Mas Renan jamais deveria chamá-la pelo nome ou deixá-la tomar conhecimento que eles sabiam sobre sua vida.

Sem tirar o capacete, Renan entregou-lhe a maleta.

– Aqui está.

– Obrigada. – ela agradeceu, tirando um pacote de sua bolsa e entregando de volta – Aqui está o pagamento.

Renan concordou, conferindo a quantia. Subindo na moto, veio repentinamente em sua cabeça sua tatuagem que significava o equilíbrio do bem e do mal, do carma.

– Tenha certeza de que o que irá fazer é certo. Tudo tem um preço.

– Eu sei, eu já paguei o meu. – ela respondeu.

Renan saiu do beco, passando por uma mulher loira que parecia ser a dona do local, e voltou para a estrada, em direção à lanchonete. Geralmente não se importava com o que os clientes fariam. Se iriam morrer de overdose injetando litros de drogas na veia ou se fariam uma chacina com uma pistola. Mas algo incomodava-o em relação àquela mulher.

Distraído, Renan acabou se envolvendo em um acidente. Por muito pouco, quase foi atropelado por um táxi. Sua moto deslizou pelo asfalto, até bater em um poste e parar. Já o homem, rolou pelo capô do veículo. Levantou-se apressado.

– O sinal estava vermelho! – Renan disse apontando para o sinal, mas parou ao olhar para o motorista do carro.

O senhor parecia estar fora de mundo. Babava muito e seus olhos mantinham uma cor arroxeada. Renan achou aquilo muito estranho e resolveu ignorar o incidente. Sendo o mais rápido possível, montou novamente na motocicleta e continuo pela estrada.

***

Renan chegou à lanchonete no final da tarde. O trânsito estava uma loucura e não havia ninguém no estabelecimento, além de Darlli, que olhava fixamente para a televisão. O outro acompanhou seus olhos e via o noticiário, em que mostrava uma repórter aflita e preocupada.

– O que aconteceu? – Renan perguntou, nervoso.

– Parece que fedeu a merda toda. – Darlli respondeu – Esse trânsito todo que você tá vendo é a galera vazando daqui. Parece que está rolando uma virose por aí.

– O quê? – Renan perguntou indignado.

A população começava a evacuar Cabo da Praga. Renan lembrou-se do motorista de táxi e em como ele parecia descontrolado e fora do normal. Se ficassem, podia ser praticamente suicídio da ilha toda. Darlli aconselhou o outro a voltar para casa, juntar o máximo que conseguia e ir embora também, com a companhia de Ísis. Ele também iria embora.

Renan, sem muitas opções, dirigiu-se em cima de sua moto para casa. Mesmo com sorte por estar com um veículo rápido e não muito espaçoso, demorou mais do que o costume para chegar em casa.

Quando chegou, Ísis já corria apressada, colocando coisas em uma pequena mala. Sua expressão aflita e exasperada deixaram Renan ainda mais nervoso.

– Oi, Renan. Acho que já viu o que aconteceu não? – ela disse, colocando algumas blusas na mala – Temos que ir embora, tipo, agora!

O rapaz ruivo que Renan avistou de madrugada desceu as escadas, com coisas em suas mãos.

– Sei que não é o melhor momento, mas, Renan, este é Valentim. – Ísis apontou com a cabeça, enquando colocava as coisas dentro da mala, fechava e sentava em cima da mesma para tentar fechá-la – Valentim, este é Renan. Ele vai poder levar nossas coisas e você vai de moto.

Renan, entendendo o recado, cumprimentou rapidamente o ruivo e começou a subir as escadas. Ísis deixou cair algumas coisas da mala, como um papel pequeno e verde, – possivelmente sua identidade – alguns sapatos e um colar.

– Droga! – ela exclamou se agachando, pegando os objetos e jogando tudo na mala.

Renan não tinha muita coisa para levar, então pegou as poucas roupas que comprou há pouco tempo e colocou em uma mochila que estava jogada pelos cantos. Em poucos minutos, ele já estava na frente da casa, com Ísis e Valentim.

A mochila foi jogada no banco traseiro do carro, junto com outras malas. Ísis se acomodou no banco de carona, enquanto Valentim já estava pronto no volante. Renan subiu em sua moto e começava a colocar o capacete, quando viu Chico sentado e confuso, sentado na calçada em frente à sua casa.

– Esperem aí. – Renan disse.

Largando o capacete, Renan correu até Chico. Lágrimas escorriam de sua face e Algodão esfregava sua cabeça na perna do garoto, tentando animá-lo.

– Ei, garotão, o que houve? – Renan perguntou, se agachando.

Chico levantou sua cabeça e com a voz engasgada entre soluços, disse:

– Mi-minha mãe… Ligaram do trabalho dela… - ele soluçou mais um pouco – Diss-sseram que ela estava f-fora do co-controle… Disseram q-que ela tá mo… Morta…

Um estalo atingiu o cérebro de Renan. Descontrole. Vírus. Morte.

Sentiu uma enorme compaixão crescer dentro de si, então levantou Chico e disse:

– Vem com a gente, precisamos ir embora daqui.

Mesmo em soluço, o garoto acatou a ordem e seguiu Renan, que o guiou até o carro. Abriu a porta traseira, onde Chico entrou e se acomodou entre as malas. Algodão, o beagle, saltou para dentro, entre as pernas do dono. Ísis olhou para Renan, que mantinha uma expressão apreensiva. Entendo o recado, a loira sorriu para o novo integrante da fuga.

Um pouco abalado, Renan colocou seu capacete e montou na motocicleta, partindo pela rua, seguindo o carro.

***

Rita estava apavorada, dentro do fusca de Tobias. O rapaz havia passado a manhã na casa da senhora e a ajudado com alguns tópicos religiosos. No final da tarde, voltou extremamente preocupado em relação ao vírus. Sem outro tipo de ajuda ou locomoção, a senhora aceitou ajuda do rapaz para sair de Cabo da Praga. Para onde quer que fosse, acharia um hotel e ficaria lá até se estabelecer. Na teoria.

– Por quê Deus está fazendo isso? – Tobias se perguntava enquanto segurava no volante – Será que são novas pragas que a humanidade está merecendo?

Rita olhou meio torto e então virou a cabeça. Lourdes chorava como nunca, nos braços do marido. A negra pediu para Tobias parar o carro e assim o fez. Mesmo guardando rancor e mágoa, a senhora saiu do carro e foi até a outra. O rapaz tentou pará-la, mas foi em vão.

– Lourdes, temos que ir embora. Está aconte…

– Não chegue perto de mim, maldita! – Lourdes retrucou irritada – Eu quero que você arda no fogo do inferno!

Rita, em choque, paralisou.

– Ele era um bom menino, eu amava meu filho!

A negra ficou sem entender, então olhou para Tobias, que sinalizava para saírem dali. As peças se encaixaram na cabeça de Rita, e antes de ir embora, disse:

– Você sabe que tem culpa nisso por não orar o bastante pela cura dele. – fez uma breve pausa – Espero que Deus perdoe a alma dele e o guie para o paraíso.

Tobias e Rita voltaram para o veículo e seguiram caminho. Durante o trajeto, o rapaz contou para a senhora que no começo da tarde o filho de Lourdes havia se trancado no banheiro. Enchendo a banheira de água, uma lâmina começou a passear pelos braços e pulsos do rapaz, transformando o líquido transparente em um pequeno rio rubro. Antes de terminar o suicídio, ele escreveu com seu próprio sangue no espelho: “eu só queria ser feliz”.

***

Hórus estava perto da janela de sua sala, tendo um visão esplêndida de Cabo da Praga. Olhou ao redor, para verificar se estava realmente sozinho e discou um número em seu celular.

O governador acabava de sair totalmente furioso daquela sala, devido ao vazamento do vírus que se espalhava. Como se não bastasse os índices crescentes de morte, tráfico e roubos, uma doença que se originou ali seria o ápice do caos.

O motivo da fúria, na verdade, era que todos os habitantes corriam para a saída de Cabo da Praga, o que alastraria totalmente uma nova dimensão caótica e vergonhosa para a cidade. Hórus, como sempre, disse que daria um jeito. Seu jeito.

A chamada foi atendida no terceiro toque.

– Alô? Espero que você ainda tenha aquele seu caminhão e mantenha a lembrança que me deve uma.

***

Renan seguia o carro de Valentim, enquanto começavam a adentrar no túnel do viaduto Teodoro Kaulfuss. A cada segundo, desde que encontrou Chico desolado, um sentimento e energia ruim cresciam dentro do homem, que tentava ao máximo negar tudo aquilo e pensar que era apenas algo passageiro.

Enquanto andavam pelas ruas até o túnel, viram algumas pessoas que passavam muito mal, com dores de cabeça, que era um dos primeiros sinais da virose, que estava se espalhando por Cabo da Praga, de acordo com os boatos.

Durante todo o trajeto, muitas vezes Renan se perdeu do casal de amigos, por conta de carros que queria cortar caminho, apressados, ou por pura distração. Certa vez, ficou tão perdido em seus próprios sentimentos que só voltou a si quando um enorme caminhão passou de seu lado, buzinando.

Olhou para os lados, tentando achar novamente o carro de Valentim, mas não conseguia. Andou mais algumas vezes em cima da sua motocicleta, desviando diversos veículos. Passou por uma camionete com materiais de construção. Um segundo caminhão abriu passagem, seguindo para o mesmo caminho do terceiro. Renan virou a cabeça e viu que no começo do túnel, um caminhão-pipa também adentrava.

– Que ótimo, adoro caminhões.

Uma página de jornal velho foi carregada pelo vento, quase ficando presa no capacete de Renan, mas acabou parando em uma placa de sinalização perto das grades verdes, que ficavam nas laterais. Renan passou mais uns dois minutos observando entre os carros, a fim de procurar seus amigos.

O túnel do viaduto parecia mais escuro que o normal naquele momento, causando certa apreensão e calafrios na espinha de Renan. Uma moça montada em uma bicicleta amarela passou do seu lado, encarando-o por alguns segundos, mas logo retomando seu rumo.

Diversos veículos estavam espalhados pelas faixas, dentro do túnel. Carros buzinavam quando tudo ficava parado. Motos e bicicletas costuravam entre os vãos livres, na esperança que agilizarem sua saída de Cabo da Praga.

Renan retirou seu capacete, com o pensamento de que este atrapalhava sua visão. Colocou uma touca que gostava, embora achasse que parecia ter mais cabelo do que tinha quando a usava. Após terminar de arrumar, conseguiu avistar o carro que procurava. Mas então parou.

Ouviu alguns grunhidos em volta. Parou para observar melhor e viu pessoas andando entre os carros, impacientes com o trânsito. Mas algumas delas tinham algo errado. Pareciam estar em modo zumbi. Estavam… contaminadas.

Ao longe, uma senhora parecia estar com o corpo pegando fogo. Renan se via assustado com toda aquela confusão. O quê tinha acontecido para tudo estar daquele jeito? O túnel pareceu se tornar mais escuro nesse momento, com os fios de energia no alto ficando cada vez mais fracos, como se um manto negro caísse sobre ele.

Vindo da frente, um estrondo ecoou pelo túnel. Renan virou-se assustado e viu um dos caminhões tombarem para o lado, ao ser chocado com outro. Do seu interior, um líquido começou a vazar. Gasolina

O caminhão havia caído em cima de um carro, que ficou totalmente amassado. A pessoa dentro dele tentava sair, aterrorizada, mas sem sucesso. Perto de onde o líquido escorria, outra pessoa pegava fogo. Em pouco tempo, tudo estaria dando errado.

– Não… - Renan falou baixo, mas era tarde demais.

Uma trilha de fogo ergueu-se no meio da situação caótica. Em alguns segundos, já atingiu o tanque de origem. A explosão foi como vários fogos de artíficios em meio a bolas de fogo. O caminhão inteiro explodiu, levando consigo o carro que estava preso e o outro caminhão. Pessoas gritaram e começaram a correr na direção oposta em que estavam indo, desesperadas.

Renan tentou dar partida com a motocicleta, mas um grupo que passava apressado o derrubou do veículo. Para não correr o risco de ser pisoteado, resolveu correr a pé.

Enquanto deu uma olhada para trás, avistou Ísis e Valentim. Parou e correu até eles, pulando por cima dos carros e desviando das pessoas na agilidade de um gato.

– Vamos, precisamos correr! – ele disse, vendo a explosão tomar cada vez mais força – Onde está Chico?

– Eu não sei! – Ísis respondeu, começando a correr.

Renan olhou para a grande cortina de fogo que se aproximava, se alimentando de pequenas explosões de outros veículos. Uma grande picape preta foi lançada pelos ares em uma dessas explosões. Pegando fogo, o veículo destruído acabou atingindo uma moça loira de vestido verde, que tentava correr. Apenas suas pernas ficaram vísiveis dentro da mistura de sangue e metal carbonizado.

O moreno corria atrás do casal, constantemente olhando para os lados, a procura da criança. Mais a frente, avistou um homem mais velho que parecia familiar. Olhou com mais atenção e percebeu que se tratava de Ed. Ele corria apressado, até que tropeçou nos próprios pés e caiu de cara no asfalto gélido. Tentou se levantar rapidamente, mas a multidão começou a passar por cima dele. Passos esmagavam sua coluna. Pés pesados iam de encontro no seu rosto, que sangrava com dentes quebrados. A parte fina de um salto alto quase perfurou seu olho. Renan correu para tentar ajudá-lo, mas já estava sem vida.

Os gritos aumentavam degrativamente, assim como a massa de fogo que iluminava o escuro túnel. Uma mulher com traços indianos levou o azar de torcer seu pé. Parou perto de um carro que levava materiais de construção, para observar o ferimento. Outra explosão causou o capotamento desse veículo, lançando tudo que carregava. Um recipiente com cimento virou sobre a moça indiana, que ficou completamente suja e encharcada. Com os olhos atingidos, ficou cega momentaneamente, sem ver a pá que voava em sua direção. Renan teve que segurar o estômago quando o rosto da mulher se dividiu em dois e o corpo caiu no chão.

Uma jovem com olhos claros e botas estilo cowgirl acabou ficando para trás na multidão, e foi engolida pela massa de fogo. Sua pele ficou escura e derreteu. Seu grito de horror ecoou pelo túnel. Um pouco para trás, uma senhora de dreads parecia perdida, a procura de alguém. Renan pensou em voltar para ajudar, mas foi tarde demais. Uma moto disparou na direção dela, devido a mais uma explosão. O veículo a atingiu em cheio e deixou seu corpo jogado no chão, sem vida. O pescoço foi torcido, deixando a cabeça para um lado e o corpo para o outro, de uma maneira macabra.

Ísis e Valentim corriam acelerados, sem olhar para trás. Veículos eram lançados a todo momento pelos ares, enquanto os gritos aumentavam. A parte de cima do túnel começava a desmoronar, trazendo consigo mais veículos e pessoas, que eram engolidas pelas chamas. Uma mulher loira, que Renan lembrava ter visto no restaurante mais cedo, estava dentro de um carro, assustada, aprenssiva com a confusão. Uma camionete foi lançada contra a parede do viaduto, chicoteando na direção do carro em que ela estava. O som do metal e de uma pessoa sendo esmagada chegou aos ouvidos do moreno.

Uma mulher negra parecia gritar por alguém. Quando Renan ficou um pouco mais perto, pode ouvir.

– Max?! Max?! – ela gritava.

A pobre coitada não teve muito tempo a mais para gritar. Um dos fios de energia se soltou do alto e caiu em sua direção. O som de carne sendo eletrocudada acompanhou a fumaça que saía de seu corpo, que caiu no chão, com os olhos esbugalhados.

Renan, Ísis e Valentim passaram por uma kombi. Dentro dela, um rapaz vestido com roupas brancas estava encolhido, abraçando seus próprios joelhos. O moreno parou e tentou ajudá-lo.

– Venha, vamos sair daqui! – ele disse.

– Eu preciso me proteger, me proteger. – o homem repetiu, com um surto de olhar em seu rosto.

– Vamos, não podemos fazer nada por ele. – Valentim disse.

Embora fosse cruel, Renan sabia que era verdade, então correu. A cortina de fumaça atingiu a kombi e o rapaz dentro dela foi carbonizado vivo, como um pedaço qualquer de comida dentro de um micro-ondas.

Um jovem com topete passou rápido pelo trio, correndo em grande velocidade, mas foi atingido com força por outro cabo que se soltou. Seu corpo explodiu em massa e sangue e caiu com um baque surdo no asfalto. Alguns infectados andavam na direção oposta a multidão, no sentido da massa de fogo.

Renan encontrou com Marcela, a mulher que encomendara a arma mais cedo. Ela pareceu reconhecê-lo, mas continuava a corre, ao lado de dois homens. Enquanto passava entre os carros, a cortina de fogo causou um impacto na fila de veículos. As pernas e o quadril dela foram espremidos e ela soltou um grito abafado de agonia, enquanto seu sangue era jorrado para fora. A metade de cima de seu corpo deslizou pelo capô do carro. Estava morta.

A bicicleta amarela foi avistada novamente por Renan. A dona dela pedalava agitada, tentando se apressar. Um carro perto dela explodiu, lançando ela e sua bike no ar. A moça morena caiu primeiro, de costas no asfalto. Sua bicicleta desmontou-se no ar. A coroa – uma parte perto do pedal que é cheia de pontas, rodopiou até parar na garganta da moça, que arregalou os olhos e ficou ali, sem vida.

Renan paralisou-se por alguns segundos quando viu mais um caminhão vindo na direção do fogo. Dentro dele, o motorista estava infectado pelo vírus e gritava loucamente. Uma loira com roupas extravagantes não foi rápida ao bastante como os outros que estavam em volta e não conseguiu desviar do caminhão, que passou por cima dela. Uma mancha de sangue formou-se no chão.

Explosões atrás de Renan o faziam ficar em alerta. Ele sabia que logo a parede de fogo alcançaria todos eles se não fossem rápidos o bastante. Uma placa de sinalização voou no ar como uma flecha, embalando um loiro no estômago. Ele soltou um breve gemido de agonia e caiu no chão.

O grupo se via agora perto da saída do túnel. O caminhão-pipa que Renan avistou antes estava estacionado, de forma lateral, obrigando as pessoas a passarem por de baixo dele, por cima ou entre os carros que trazia consigo. Ísis e seu parceiro ruivo deslizaram por baixo dele.

Um homem loiro usando um moletom tentou passar entre dois carros em uma ponta, mas o de cima se soltou e caiu sobre ele, esmagando sua perna. Renan parou e correu em sua direção.

– Renan!

– Vai indo, Ísis! – Renan respondeu – Te encontro no final.

O moreno se aproximou do homem ferido e encarou seus olhos claros. Primeiramente tentou empurrar o carro que estava em cima de sua perna, sem efeito. O carro de baixo parecia ficar amassado a cada movimento que faziam, e o de cima parecia pesar mais.

– Se apoia em mim, vou te puxar. – Renan sugeriu.

O loiro passou um dos braços pelos ombros de Renan, enquanto apertava firme sua mão. O moreno usou a força de seu corpo para tentar puxar o outro homem, mas não conseguiu. A cortina de fogo se aproximava.

– Tenho outra ideia…

Um rangido metálico. O loiro olhou pra cima.

– Corra! – ele gritou, empurrando Renan, que caiu de costas no asfalto.

Mais um carro do segundo andar do caminhão-pipa se soltou e deslizou, caindo sobre o resto do corpo de loiro. O fogo se aproximava mais rápido e mais forte. Renan retomou a corrida. Mais um pedaço da parte superior do túnel desmoronava.

O caminhão-pipa foi atingido pelo fogo e explodiu, rolando pelo acostamento, esmagando diversos outros veículos. Um pneu voou e atingiu um pequeno poste de energia, que começou a balançar. Faíscas saltavam de para todos os lados.

O poste cedeu e caiu. Pessoas correram, porém uma mulher de vestido elegante foi atingida. Depois do esmagamento, sua cabeça se soltou, rolando pelo asfalto.

Renan estava perto da saída. Ísis e Valentim já deveriam ter conseguido. Pessoas infectadas corriam em direção ao fogo. Uma adolescente morena e com roupas maltrapilhas tentava fugir, mas um homem com o olhar arroxeado a segurava pelo braço, perto de uma das laterais do túnel.

Vendo a parede de fogo se aproximar, a mendiga o mordeu, em uma última esperança de se salvar. Por um breve momento, em que ele a soltou, pensou que poderia ter conseguido. Mas apenas havia o provocado. O infectado a segurou pelos cabelos, dando um chute em suas costelas.

– Ai!

Sem muita força, a mendiga foi arrastada pelo infectado até a pequena grade da lateral. Usando as duas mãos, ele começou a pressionar a cabeça dela para baixo. Ela arquejou e tentou lutar contra novamente, mas não era forte o suficiente.

O louco pressionou sua cabeça mais uma vez, penetrando-a na grade. O corpo da mendiga ficou mole e uma parte da estaca da grade podia ser vista saindo pela sua nuca, totalmente suja de sangue.

Renan sentiu seu corpo ficar fraco e o estômago embrulhar. Quando estava prestes a sair do túnel, caiu no chão. Olhou para seu pé e o viu retorcido de um jeito totalmente estranho. Clamou por ajuda mas parecia que ninguém iria fazer tal feito.

– Ei, me dá sua mão! – um jovem de roupas largas e cabelo comprido disse parando ao seu lado, esticando sua mão.

Quando Renan começou a esticar a sua, um carro de churrascaria explodiu ao longe. Quilos de carne voaram para os lados. O rapaz de cabelo comprido foi atingido por diversos espetos. Um deles atravessa suas costas e saía pelo abdômen, um segundo atingiu sua perna. Um terceiro estava alojado em seu ombro e o último atravessa sua cabeça.

Sangue respingou em Renan e o corpo do outro caiu ao seu lado.

O fogo se aproximava, assim como a parte de cima do túnel, que caía gradativamente, trazendo consigo outras pequenas explosões. Ele não tinha mas tempo para correr. Seu passado não existia e seu futuro seria destruído naquele momento. Renan fechou os olhos e sentiu a onda de calor se aproximando.

***

Um caminhão passou do lado de Renan, despertando de seu transe. Ele piscou algumas vezes e olhou para todos os lados. Suava frio e estava pálido como papel. O que foi tudo aquilo que tinha visto? Será que foram delírios criados pela sua cabeça?

O ceticismo dele parecia vencer seus pensamentos, até que ele observou uma folha de jornal voar perto dele. Ao virar o rosto, mantendo na mente a imagem da folha presa na placa de sinalização, obteve exatamente essa visão.

– Um outro caminhão e um caminhão-pipa… - ele disse para si mesmo.

Virou no momento em que o segundo caminhão passava. No começo do túnel, o outro chegava, carregando diversos carros.

– Vai mesmo acontecer um acidente.

Renan deu a volta com sua motocicleta. Foi até a entrada do túnel, tentando achar uma maneira de bloquear a entrada de veículos. Enquanto se afastava da mesma, quase bateu em um carro.

A motorista era a moça loira que era esmagada dentro de um carro. Ela furiosa olhou para ele, como um general, e começaria a discutir.

– Você! Eu vi você… lá! – Renan apontou para o túnel, e então viu a expressão confusa tomar conta do rosto raivoso.

– Olha… Eu não sei o que você andou fumando, ou cheirando, mas eu preciso ir embora daqui.

– Se você for, você vai morrer. Todos aqui vão morrer! – Renan gritou.

– Eu não sei o que você está fazendo, mas está me assustando! – a loira cuspiu.

– Moça, eu não sei quem é você, mas eu vi você morrer. Eu não sei como, mas eu vi a merda daquele caminhão explodindo e… - Renan respirava ofegante -…me ajude a tirar todos daqui!

A mulher o analisou por alguns instantes. Seu rosto misturava diversas dúvidas e expressões.

– Se você está mesmo dizendo a verdade, eu tenho uma ideia.

***

Com a ajuda da loira, que se chamava Thereza, Renan conseguiu achar o veículo mais alto que conseguia. Roubou um megafone de um carro que tinha materiais de construção e colocou sua touca na cabeça.

– Escutem! – ele gritou e ouviu sua voz ecoar pelo túnel – Vai haver um acidente e uma grande explosão!

As pessoas em baixo olhavam assustadas para ele. Thereza parecia insegura e apreensiva, mas algo nela parecia acreditar nas palavras de Renan. As pessoas começaram a falar coisas, questionando o que ele dizia.

– Vocês precisam correr na direção oposta! – Renan continuou – Um caminhão transportando gasolina vai bater e explodir! Vai vazar todo o líquido e vai acontecer uma explosão gigante! Voltem!

Um grupo ao longe começou a correr na direção oposta. Entre eles, Renan avistou a mulher negra que parecia ter sido eletrocutada. Algumas outras pessoas acompanharam o movimento. Rapidamente, muitas pessoas corriam para a saída do túnel.

– Corram para a porta de manutenção! – Renan gritou no megafone, instruindo pessoas perdidas.

O moreno desceu do carro e de mãos dadas com Thereza, correram. Ísis e Valentim os encontraram no meio do caminho, com confusão nos olhares. Renan e os outros adentraram o cômodo pela portinhola, onde já havia várias outras pessoas.

Em uma última olhada para fora, Renan visou a parede de fogo se aproximando. No meio da confusão, um garotinho segurava um beagle em seus braços. O homem pensou em sair para salvá-lo, mas era tarde depois. A combustão espontânea o engoliu e a porta foi fechada.

A escuridão tomou conta do lugar, e Renan sentiu uma forte dor de cabeça, enquanto via em sua mente, uma cena dele em um cemitério, ao lado de um caixão.

***

Já fazia uma hora e meia que tudo havia acontecido. Uma moça chamada Amélia havia passado entre os sobreviventes do acidente, perguntando dados. Um pequeno centro de atendimento improvisado havia sido montado ali perto. Renan se mantia um pouco afastado de todos.

Chico e Algodão morreram na explosão. Depois de algum tempo, os bombeiros achariam o resto de seus corpos. Renan via as outras pessoas em volta, que ele havia salvado. A senhora com vestido elegante estava junto a moça com traços indianos, ajudando os machucados dos outros. Eram médicas.

O jovem de topete que corria rapidamente na visão permanecia abraçado com um outro rapaz. Ísis e Valentim haviam dado um pouco de espaço para Renan, mas ele sabia que começaria um caos depois. Como ele sabia do acidente?

Todo seu ceticismo foi por água abaixo. Suas tatuagens podiam ter algum sentido e de algum jeito, ele havia previsto místicamente o futuro. Uma senhora negra de dreads se aproximou dele, tocando-lhe o braço.

– O que você fez foi um verdadeiro milagre. – ela disse – Me deixe te perguntar uma coisa: você acredita em Deus?


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Notas finais do capítulo

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