Premonição Chronicles 3 escrita por PW, VinnieCamargo, Felipe Chemim, MV, superieronic, Jamie PineTree, PornScooby


Capítulo 6
Capítulo 06: Degeneração


Notas iniciais do capítulo

Escrito por PW.



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PARTE I: Alcateia

Dezembro de 2015

ANTES

O clima da tarde na cidade de Cabo da Praga estava ameno e agradável.

Cabo da Praga é uma grande ilha situada no sudeste do Brasil, conhecida como a Manhattan brasileira. Embora seja uma ilha, é supervalorizada pelas suas terras e pelas suas indústrias. Tem tudo que uma grande metrópole precisa para se desenvolver. Possui grandes suas zonas urbanas de diferentes classes (da classe A até a classe suburbana onde impera o tráfico e a violência), floresta, zonas industriais, fazendas, baía, aeroporto, acessos portuários propícios ao comércio marítimo, centros hospitalares sofisticados e tantos outros recursos que possibilitam a vida dos que ali habitam um pouco mais tranquilas. Ou não. Porque, onde há paz, sempre haverá caos.

A monotonia da rodoviária local era agitada e frenética. Ônibus iam e vinham nas plataformas, pessoas falando ao celular, esperando embarque e desembarques, crianças correndo... Tudo aparentemente comum, com exceção da presença de alguns militares circulando em pequenos grupos ao longo das plataformas e andares.

Demétrio havia acabado de chegar na estação rodoviária. Ele usava uma camisa branca com uma estampa pin-up e bermuda caqui. Nos pés, um sapato de cor neutra e na cabeça, um par de óculos escuros. Desta vez, os óculos não escondiam seus expressivos olhos azuis acinzentados. Conferia a hora no celular de dois em dois minutos, contando-os para a chegada de uma pessoa.

— Espero que ela não demore. — Comentou. — O horário de chegada está previsto para daqui alguns minutos.

Em passos metódicos, passou em frente a um conjunto de espelhos colocados ao redor de uma pilastra, e ali, analisou suas feições rapidamente.

O queixo quadrado, as sobrancelhas sisudas, os lábios finos, a barba cerrada bem cuidada e a pele corada do passeio na praia no dia anterior, principalmente em seu nariz grego reto e nos ombros. O físico atlético mostrava sua assiduidade em treinamentos e exercícios físicos. Para ele, não era algo supra vital, mas sentia-se bem com tais atividades. Tinha oitenta e dois quilos bem distribuídos em um e oitenta e cinco de altura.

Ao contrário do irmão que o acompanhava naquele momento, Alfa, como Demétrio era conhecido, tinha os cabelos em tom loiro escuro, espetados num corte baixo levemente militar. Já Ulysses, seu irmão mais velho, tinha cabelos castanho-claros mais lisos, olhos verdes e a pele mais bronzeada, além de ser um pouco mais baixo que o primeiro. Tinha físico de intensivos dias na academia, mas não era algo exagerado. Olhando mais de perto, notava-se que eles se diferenciavam bastante, logo, se concluía que não eram irmãos de sangue.

— Ela é mesmo quem estou pensando? — Ulysses perguntou, arrumando o boné sobre a cabeça. — Você falou pouco da nova contratada para seu filme, mas foi suficiente pra deduzir quem era.

— Sim, Michelle Pimenta, ela é famosa pelos filmes de gênero B atuais como "O Ataque dos Escorpiões Voadores" e "Shark Lama".

— Também é famosa por outros trabalhos e você sabe disso. Mimi Chantilly não é só um rostinho bonito numa produção brasileira quase-hollywoodiana. — A pretensão na fala de Ulysses deixou Demétrio desconfortável a ponto de querer sentar-se.

— Esqueça Mimi Chantilly, eu contratei Michelle Pimenta. Esse é o nome dela. — Alfa olhou para além da plataforma de desembarque. — Seja mais profissional, e, por favor, conheça seus limites. Não quero ter que tomar decisões chatas, Ômega. Você sabe que é essencial no novo filme...

Michelle Pimenta era o novo nome adicionado ao elenco de mais um filme de Demétrio Gama. Desta vez, a maior e mais complexa produção que ele já fizera. Buscar a atriz na rodoviária fora uma ideia surgida de última hora, já que ele deveria estar em sua produtora para a chegada de outra pessoa. Preferiu não correr o risco de que a mulher se perdesse na cidade. Logo mais, ele estaria se encontrando com Alisson, sócia na nova produção.

— Não se preocupe, mano, farei de tudo para não perder seu protagonista aqui. — O homem mostrou uma expressão de imponência e levou um soco no ombro.

Embora os irmãos fossem um pouco mimados quando pequenos, nunca precisaram explorar o dinheiro de seus pais bem-sucedidos. Sempre educados com ideologias de ética e caráter, buscaram a independência cedo, mas ainda sim, sem perder a supervisão dos pais, um arqueólogo e uma empresária do ramo de cosméticos. Ainda quando crianças foram escoteiros, e foi assim que Demétrio e Ulysses ganharam os apelidos de Alfa e Ômega, um por ser um líder nato e o outro por ser mais despreocupado. E os dois por compartilharem de um companheirismo sem tamanho. Poderiam não ser irmãos consanguíneos, mas um amava e protegia ao outro, até mais que irmãos legítimos.

A produtora de Demétrio veio tempos depois de se formar em Cinema. Com poucos recursos, ele conseguiu a ajuda do irmão e da esposa, Samara, que conheceu ainda na universidade. Sua esposa mergulhou de cabeça quando eles apenas namoravam e também desempenha papel importante dentro da empresa. Após várias lutas e sacrifícios diários, Alfa venceu diversos festivais de cinemas, municipais, regionais e até nacionais. E criou sua própria fama, se tornando um nome conhecido do gênero B no Brasil e considerado uma celebridade. Ômega já trabalhou em vários de seus projetos, atuando no papel principal.

— Ela chegou! — Ômega disse.

— Finalmente! — Um sorriso triunfante surgiu no rosto de Alfa.

Ele ergueu-se do banco rapidamente e deu passos largos na direção da plataforma 18. Após saírem do meio do caminho, as pessoas revelaram Michelle parada com suas bagagens. Era uma visão transcendental, quase como divinal.

Michelle tinha o corpo lapidado à mão, sendo parcialmente mostrado sob a blusa branca customizada e acima do umbigo. E o jeans justo, também customizado, ressaltava suas curvas. A pele branca era iluminada pelos raios de sol que entravam por vidraças laterais e seus olhos azuis, como duas safiras, brilhavam. Os lábios cheios, rosados e chamativos carregavam um sorriso de felicidade e os cabelos curtos dourados estavam levemente repicados, pouco abaixo do queixo. O pingente de pimenta no seu colar e em seus brincos chacoalhavam junto dos cabelos, enquanto ela acenava para os dois homens vindos em sua direção.

Alfa abraçou-a, dizendo:

— Seja bem-vinda, Michelle! Estava aguardando ansioso pela sua chegada.

— Mimi, pode me chamar só de Mimi.

Então, sorriram um para o outro.

Demétrio aproveitou que Ulysses conversava com a atriz e andou até a plataforma, para buscar as bagagens da mulher, que sorria deslumbrada com a beleza e a correria da rodoviária local. Era fato que o prefeito cuidava bem dos recursos que atraíam turistas, enquanto esquecia dos bairros invisíveis e intocáveis do subúrbio.

Na plataforma, Alfa olhou através do corredor de ônibus e viu a estranha imagem acenando para ele. Era uma figura particularmente assustadora, abrigada sob a sombra de um dos ônibus estacionado. Com um único braço, o vulto segurava um bebê enrolado em uma manta preta, enquanto o vestido negro, o chapéu e o véu de mesma cor, pareciam não reagir à ação da brisa. Curiosamente, em seu interior, sentiu necessidade de reconhecer quem estava atrás daquele manto, mas não conseguiu, o vulto desapareceu no momento em que ele piscou. Porém, a imagem do rosto entrecortado e dividido através do véu de renda ainda surgiu na sua mente por um instante.

Deveria ser um delírio causado pelo calor, concluiu de imediato.

XXXXX

A van de trabalho de Demétrio seguia ligeira pelo asfalto da Avenida Inês Brasil, sob o sol escaldante daquela manhã em Cabo da Praga. Aquela era uma das avenidas mais conhecida da cidade, assim como a dos Afogados, no litoral. Conhecida por suas badaladas boates, points de encontro de jovens nos principais pubs, cafeterias, bares, casas de shows e motéis. As prostitutas que atuavam em seus cruzamentos também eram bastante conhecidas.

Ao parar em um sinal vermelho, a lataria cinza da van refletiu a fachada do Motel Mon Amour, que ficava vizinho à boate Marimba, fechada para reformas desde o mês passado. Michelle olhava para fora do veículo, com a cabeça recostada no vidro, sentindo os raios de sol fazer desenhos diversos em seu rosto. Ômega admirava a beleza da mulher, que mais parecia uma escultura de alguma deusa grega, talvez Afrodite. Só de olhar para ela, o homem já sentia-se inevitavelmente atraído, assim como um ímã.

Alfa percebeu que seu meio-irmão mulherengo estava com Michelle na mira, pronto para dar o bote, então fez questão de pigarrear e dar uma tossida violenta, arrancando o carro em seguida no sinal. O pneu cantou pela avenida e a van seguiu adiante. No fundo, Demétrio só estava protegendo seu irmão de uma possível desilusão amorosa e Mimi de ser enganada por Ômega. Seu senso superprotetor ficava frenético nessas situações, e proteger a nova produção também era muito importante.

— Qual o teu problema, Alfa? — Ômega perguntou, se recompondo no bando traseiro.

— Acabei não vendo um sem-teto atravessando a rua, me perdoem.

— Tudo bem. — Mimi respondeu. — Só tenha mais atenção, eu detestaria ter a morte de um mendigo no meu currículo ou ter que recolocar meus cílios. — Riu. Alfa entendeu o recado com imediatez.

— Sei… Desatenção, né? — O muxoxo que Ômega fez o silenciou até que eles chegassem em seu destino final.

XXXXX

— Então, quando vou conhecer meus colegas de trabalho? — Michelle perguntou ansiosa, a todo momento ela brincava com as próprias unhas, como se estivesse arranhando-as na palma das mão, mania de ansiedade que possuía desde criança.

— Chegamos. — O produtor disse, retirando o cinto.

Os três desceram do automóvel e fitaram a fachada da produtora. Era um local completamente comum, a não ser pelos posteres de divulgação dos filmes produzidos pela empresa espalhados pelas paredes. A loira já estava maravilhada com tudo aquilo, era anos-luz melhor que a construção responsável por abrigar a antiga companhia de filmes pornôs na qual trabalhava, onde só pairava cheiro de suor e aquele aroma específico de sexo corrupto, que a atriz conhecia bem e passou a detestar. Toda aquela lembrança deixou-a com uma náusea repentina, queria tomar banho, parecia que ela ainda estava impura pelos maltratos sofridos. Sentiu-se enjoada, mas não falou nada, apenas acompanhou Alfa, que pedia que ela entrasse com um sorrisão no rosto.

Ao passar pela porta de vidro aberta, Mimi deu de cara com a equipe de Alfa parada na recepção.

O homem negro, alto, careca e parrudo, que mais parecia uma guarda-roupas era seu fiel escudeiro Yuri. Ele era o operador de câmera da produtora. Sempre leal e seguia cegamente o produtor em todas as suas empreitadas. Alfa depositava bastante confiança no que ele fazia e lhe deu o apelido de Beta. Já a garota mais baixa do grupo, franzina, de cabelos castanhos, curtos e repicados, se chamava Joyce. Ela era muda, mas havia conquistado espaço na empresa desde que a esposa de Alfa a indicara. As duas eram melhores amigas e a comunicação era o de menos, todos da equipe estudava linguagens de sinais constantemente. Demétrio sempre desejou mais acessibilidade em seus trabalhos.

Yuri e Joyce deram um sorriso de ponta à ponta, ao verem o trio entrando na recepção. Michelle logo tratou de acenar e dar um abraço em cada um. Para a surpresa de todos, ela sabia o básico de libras e disse que Joyce era linda. A garota olhou-a com seus olhos verdes brilhantes e retribuiu com mais um abraço. Mimi já conquistara a garota. Joyce era uma maquiadora de mão cheia e auxiliava Yuri nos efeitos visuais. Ambos eram um belo contraste físico e de personalidade.

— Pessoal, Mimi estará conosco durante esse tempo para as gravações que começarão no estúdio em Valadares Brandão. Não sei se conhece, Mimi, é uma cidade vizinha. — Disse Demétrio.

— Conheço sim, já fiz alguns trabalhos de modelo lá. Quando estava no auge dos dezesseis. O que não foi ha muito tempo, óbvio. — Ela respondeu com as mãos na cintura.

— Seja muito bem-vinda, Mimi! — Samara sorriu o sorriso mais doce e foi até ela dando-lhe um abraço. A loira também sorriu em retribuição. A tempos ela não tinha uma recepção tão calorosa.

Samara também tinha uma beleza singular e estonteante. A mulher tinha os cabelos loiros tingidos, já que um pouco da raiz estava à mostra. Os olhos escuros se escondiam tímidos atrás das lentes de contato. As madeixas caiam sobre os ombros de maneira ondulada, enquanto uma franja tapava uma parte das maçãs de seu rosto, parte que ela mais adorava no mesmo. O sorriso empolgante mostrava dentes alinhados e o nariz afilado e pontudo dava a ela uma ligeira impressão de estrangeira, mas seu sangue era mesmo do sul do Brasil.

Samara estudou cinema com Alfa, mas não chegou a se formar. A mulher tivera problemas familiares antes mesmo do fim do último semestre, coisa que ela planejava há um tempo. Era seu sonho ser roteirista ou quem sabe uma diretora de sucesso. Sonhava com ela atrás das câmeras de uma grande produção de romance policial, gênero pelo qual ela era apaixonada. Agora, ela sonhava o sonho de Demétrio. E ela e o marido dividiam as conquistas de forma mútua.

— Onde está o Gustavo? — Alfa indagou quando atentou que o rapaz não estava entre os outros. — Ele me prometeu que não sairia enquanto eu não voltasse...

— Ele fez questão de buscar a garota que fará a entrevista de emprego hoje. Aquela amiga que ele indicou. — Samara respondeu.

— A dubladora. — Yuri retrucou.

O homem apenas acenou positivamente e disse:

— Mimi, pode ficar a vontade. Tenho uma entrevista pra fazer daqui a pouco e alguns assuntos sobre a filmagem pra resolver. Aposto que ficará bem, certo?

— Claro! Me senti muito bem acolhida. Obrigada.

Joyce aproximou-se da loira e puxou-a pelo braço, pedindo que ela lhe acompanhasse. Samara pegou o celular e Yuri olhou para Alfa como se esperasse uma tarefa.

— Beta, já verificou os equipamentos na garagem?

— Duas vezes.

— Pode verificar uma terceira? Não quero que nada dê errado. Tudo precisa sair como programamos, perfeito! Uma única falha e tudo vai abaixo.

Demétrio sentiu uma sensação agourenta ao dizer aquilo.

— É pra já, chefe!

Seu pessimismo ávido não ajudaria a partir dali. A última coisa que queria era que algo desse errado. Ele tinha ciência de que contratempos sempre existiriam, mas faria tudo que estivesse ao seu alcance para que os obstáculos não se consumassem. As preocupações eram o preço por cobrar tanto de si.

Aproveitou a saída do amigo para ir até a esposa. Ele abraçou-a por trás, arrancando-lhe um riso, coisa que ele facilmente conseguia. Mas daquela vez ela parecia menos confortável. Havia alguma preocupação em seu olhar.

— Eu sei quando está preocupada, Sam. O que aconteceu?

— Iria ligar para a vizinha, deixei a Ester brincando com a amiguinha lá. Estou preocupada com o surto de virose, tenho medo que ela possa contrair a doença. — O receio estava nítido em seu voz.

— Mas tomamos as devidas precauções, correto? Nós três tomamos a vacina anteontem. Levou ela pra Dra. Raja dar uma olhada?

— Sim, hoje pela manhã.

— E o que ela disse?

— Que ela estava bem, a vacina tiraria ela da zona de risco. Mas ainda sim tenho medo, ela é só uma criança, a imunidade é menor que a nossa. — Uma lágrima ameaçou escorregar pelo rosto de Samara.

Alfa virou a esposa de frente e puxou-a para si. Com os corpos grudados e olhos olhares estáticos um no outro, Samara pode sentir uma efêmera sensação de paz novamente. O olhar de Demétrio funcionava como uma anestesia, tirando tudo que era ruim de si lentamente. Em seguida, ele beijou-a.

O cineasta poderia ter contado sobre o exército na rodoviária, já que logo associou à epidemia, mas preferiu omitir. No fundo, tudo que Alfa estava fazendo, era protegendo sua esposa de mais dores de cabeça. Se ela soubesse que o marido desconfiava que algo maior ocorria, algo que envolvesse a todos, perderia o equilíbrio.

A situação tinha tudo a ver com uma das coisas que Alfa aprendera com o pai: as pessoas sentem medo, porque não possuem nenhum controle.

E Demétrio não suportava perder o controle.

XXXXX

Ah, quase ninguém vê

Quanto mais o tempo passa

Mais aumenta a graça em te ver, êh

De braços abertos e olhos fechados, Diana sentia a brisa lamber seu rosto de maneira acalentadora. Os cabelos curtos, castanhos da cor de cacau, e repicados, se espalhavam pelo rosto num completo frenezi, cobrindo parte do sorriso de dentes alinhados e lábios rosados. A sua frente, uma pequena ladeira e ao seu lado, as imagens passavam em cortes céleres de borrões coloridos. As árvores, as casas, os raios de sol, a sinalização pintada no asfalto, tudo borrado pela velocidade da bicicleta, guiada por Gustavo.

Ah, e sai sem eu dizer

Tem mais do que te mostro

Não escondo quanto gosto de você, êh

O loiro tinha feito questão de buscar a dubladora para a entrevista de emprego na produtora de Demétrio Gama. Ela nem sequer esperava a presença do rapaz, que sugeriu um táxi. Teimosa e petulante que só ela, Diana logo descartou a ideia e fez sua sugestão final valer. Eles iriam na sua fiel e inseparável bicicleta amarela. Valeu a pena.

Ainda de olhos fechados, próxima da ladeira, a jovem gritou:

— Sinta-se honrado por estar guiando a Tina!

— Tina? Quem é essa? — Gustavo perguntou, concentrado no trajeto.

— Minha bicicleta, ora! Saiba que não deixo ninguém além de mim, tocar nela. Nem minha melhor amiga, Mariana, com quem moro há um tempão, hein!

— Então, posso saber por que deixou que eu a tocasse e guiasse, ainda por cima?

— Porque se deixar aquela maluca com ela, capaz de não vê-la mais. — Diana riu. — A Tina simpatiza com cavalheiros, assim como eu. Além disso, você passa confiança. — Olhou Gustavo por cima dos ombros.

O coração dispara

Tropeça, quase para

Encaixo no teu cheiro

E ali me deixo inteiro

Tina, como era chamada a bicicleta amarela, que mais era uma mistura de bicicleta para esportes radicais e exposição de arte contemporânea, fora reformada com o primeiro dinheiro que Diana lucrara como dubladora. Ela ganhara a bicicleta do pai, poucos dias antes de sua morte, em um fatídico acidente. E desde que vira seu caixão descer na sepultura, quando tinha apenas quatorze anos, Tina ficou esquecida. Anos mais tarde, porém, com a força de vontade de continuar vivendo pós-tragédia e ajudar a mãe recém-viúva — quem precisava de todo seu apoio para superar as dificuldades — Diana arrecadou o dinheiro para consertar Tina e mimá-la. Ao lado da mãe, da melhor amiga e da bela voz, Tina era tudo que Diana possuía de valioso e verdadeiro na vida.

A dubladora só não contava com o namorado, porque os dois não estavam na melhor das fases do namoro e ela considerava terminar com ele. Embora amoroso e muito leal, Lucas nutria em si uma imaturidade questionável, já que Diana era seu completo contrário: madura e sensata.

Diana só estava puxando papo para se desligar das borboletas em seu estômago. O nervosismo não poderia transparecer na entrevista, a presença de Gustavo estava amenizando-o gradativamente.

Eu amei te ver

Eu amei te ver

(Thiago Iorc)

O sol bateu no rosto da garota e o loiro viu a pele parda banhada em um lindo véu de luz, os olhos amendoados de Diana refletindo o enorme holofote vespertino. Seus olhos se desligaram da ladeira em que desciam por um instante e logo adiante um caminhão de combustível atravessou o cruzamento em alta velocidade.

Diana gritou e o rapaz sentiu os freios travarem por um único segundo. Mesmo assim, Gustavo foi rápido a tempo de manobrar a bicicleta e evitar o pior, mas parou em cima de uma calçada, a poucos centímetros de um poste envolto em arame farpado.

A respiração de Diana pesou e ela soltou um ar sôfrego, tentando se recuperar do susto. Verificou se estava tudo bem com a bicicleta e encarou Gustavo com um semblante nada agradável.

— Me desculpa, Di, me desculpa mesmo! E-Eu não prestei atenção e… Meu Deus! Me perdoa, tá? Prometo que fico mais de olho dessa vez. — Ele transpirava bastante. O rosto vermelho e a voz embargada, engolindo em seco.

— Não. — A jovem balbuciou.

— O que?

— Não vai ficar de olho, porque quem vai guiar a Tina agora sou eu. — Diana recompôs-se, jogou o cabelo para trás e montou na bicicleta. — Nós três estamos bem e é isso que importa. Senta aí!

Gustavo assentiu, sentindo-se um tolo. Mas foi mágico vê-la vestindo o sol. O suficiente para um pequeno e terno sorriso involuntário brotar no canto dos lábios do loiro.

XXXXX

Alfa fazia um nó num barbante que ficava em cima da mesa do seu escritório na produtora. Essa mania de fazer nós viera dos tempos de escoteiro e lhe perseguia até então. Ele nunca conseguiu parar, quase como um vício, mas ele sabia que lhe fazia bem, por distraí-lo. Ao fundo, selfies emolduradas de sua equipe em festivais de cinema e pôsteres de filmes de terror dos anos 80 — The Shining, Poltergeist, A Nightmare On Elm Street, Friday the 13th, Hellraiser, Children of the Corn e The Evil Dead — enfeitavam as paredes de cores vibrantes. Colagens de pin-ups em murais também faziam parte da colorida sala do cineasta. Mas o que chamava mesmo a atenção na decoração era o grande Tríscele celta em bronze colocado bem no centro da parede, logo atrás dele. Era um tríscele idêntico ao que Alfa tatuara nas costas, ainda na faculdade, quando enchia a cara e fazia suas loucuras. Coisa que ele não fazia há muito tempo, desde que formara uma família. Bebia casualmente com sua equipe, para comemorar algum feito, mas comumente mal tocava em álcool.

Terminou de fazer o terceiro nó no barbante, quando alguém bateu na porta. Pediu que a pessoa entrasse e assim, prontamente o fez. A jovem entrou acoada, ombros encolhidos, um semblante de desespero no rosto, estava visivelmente apavorada com a ideia de ter que fazer uma entrevista para Demétrio Gama Villa-Lobos.

Diana entrou a passos lentos, calculados, as pernas bambas, mil ideias circulando na sua mente. Suas têmporas latejavam, a saliva descia seca pela garganta áspera e ressecada. O rosto redondo, as bochechas rosadas escondendo a palidez, o nariz um tanto pontudo e os olhos pequenos e milimetricamente proporcionais ao tamanho do rosto. Diana era realmente uma figura de feições perfeitamente moldadas e que davam uma beleza à mais em seus traços latinos. A garota trajava uma jaqueta de tecido floral leve e folgado que ia até o fim de seus quadris, semelhante a um sobretudo sobre a camiseta cinza e um shorts jeans. Seu corpo era esguio e meio magricela, mas ela amava-o assim, do jeito que era.

Alfa rapidamente ergueu-se da cadeira giratória e se dirigiu até a garota. Os dois deram um aperto de mão e ele pediu que Diana sentasse. A jovem assentiu, ela estava perdida, não sabia para onde levar seu olhar. Gustavo atentara a lhe indicar que não olhasse diretamente nos "olhos de lobo Alfa", como ele denominava o chefe. Diana confessava que riu no primeiro momento, mas de frente com o homem ali, sentia-se completamente encurralada como uma presa fácil de um canino perigoso. Porém, Demétrio não parecia ser uma ameaçava, pelo contrário.

O homem aparentava ser doce e gentil, e Diana se pegou encarando aquelas íris anis acesas.

— Eu também estaria nervoso se estivesse no seu lugar. — O loiro quebrou o silêncio e sentou-se. — É uma entrevista, se comportar assim é mais comum do que você pensa.

— Imagina, não estou nervosa. — Diana respondeu dando um sorriso desconsertado.

— Ainda bem, senão arruinaria tudo. — Demétrio brincou. — Relaxa, vai ver que isso não é nenhum bicho de sete cabeças.

A morena concordou com um riso nervoso.

— Claro.

— Eu adorei seu vídeo. Parabéns pelo viral! — Alfa disse, tentando ao máximo tirá-la daquela redoma de tensão.

— O-obrigada, eu… — Pôs uma mecha da franja atrás da orelha.

— Sua voz é muito bonita e exótica.

— Obrigada. — Diana retrucou, não sabia onde por sua cabeça com tantos elogios. — Diziam que eu tinha voz de garoto só por motivos de ser mais grave que uma voz feminina comum. Mas hoje em dia não dou a mínima, não quero ser comum.

— Faz certo, é isso mesmo. — Alfa interceptou. — Essas pessoas falavam isso da sua voz porque são limitadas e não sabem reconhecer quando alguém é diferente e talentosa. Mentes vazias são oficinas de clones.

Diana abriu um largo sorriso.

— Diana Ferreira, certo? Pois bem, eu só marquei entrevista porque já estou acostumado com esse tipo de formalidade, mas a verdade é que você já está contratada. — O homem terminou a fala estendendo a mão para um aperto.

A fala do cineasta pegou Diana de surpresa. A garota pôs a mão no peito e recuou por um instante. Disse:

— O quê?

— É isso que está ouvindo, garota. Desde que vi seu primeiro viral e relevei a dublagem dos lobos… — O homem ergueu uma das sobrancelhas, dando a entender que Diana sabia do que ele falava. A garota corou e afundou na cadeira — ...Você já é a nova voz que dará vida à narradora do meu novo filme. Em breve estará mais inteirada sobre sua personagem, Cassandra. — Alfa sentiu o aperto quente da mão de Diana.

— Muito, muito, muito obrigada mesmo, Demétrio!

— Bem-vinda à alcateia! — O homem levantou, de onde estava pôde ver a tatuagem de ampulheta no pulso da dubladora. — Pode me chamar de Alfa.

XXXXX

Parte II: Êxodo

Alfa dirigia a van com certa urgência. Logo depois da entrevista, o cineasta recebeu uma ligação importante. E estava seguindo para o local marcado, que ficava na Alta Praga, bairro nobre localizado logo ao lado da Baixa Praga. Infelizmente, ele teve que ligar para Alisson, avisando que não poderia pegá-la no aeroporto, mas os dois logo acharam uma opção viável.

Poucos minutos depois, a van estacionou em frente ao IP, Instituo Pyramid para pessoas especiais. Era uma incrível construção no alto de uma colina que serpenteava entre pinheiros e alguns coqueiros. Em suma, um lindo jardim. Todo o terreno planejado pela dona do instituto. Como já conhecia o porteiro Simas, o cineasta entrou com facilidade. Mesmo assim, sua entrada já estava permitida, não foi à toa que os seguranças nem sequer tiveram o esforço de lhe encarar.

O local era monumental. A pintura de brancura super alva encandeava a vista de quem entrava. O hall de entrada revelava uma construção de teto abobado, repleto de representações pinturas egípcias e móveis também branquíssimos. Haviam dois obeliscos egípcios que representavam Hórus e Anúbis dispostos na laterais de um arco no salão. O chão era insuportavelmente alvo, o piso encerado refletia os quadros de molduras douradas, postos de maneira simétrica nas paredes laterais. E no fim do hall, a porta de vidro pela qual Alfa teria que passar para encontrá-la, a mulher que marcara o encontro.

O homem andou impaciente até lá, já que o resto do lugar ele já conhecia. Demétrio aproximou-se da porta e o sensor magnético fez o portal de vidro abrir-se. O movimento revelou a mulher parada de forma elegante do outro lado.

A postura elegante e o ar sofisticado que Bárbara Reis Velasquez transmitia somente no ato de existir era admirador. Os cabelos ruivos caiam ondulados como fios de cobre sobre seus ombros e o vestido vermelho parecia uma mancha de sangue no meio de uma montanha de neve que era a sala branca onde estava. O vestido chique vestia a mulher como uma boneca de porcelana, com uma faixa no pescoço que chamava atenção para a grande fenda no decote da mulher. As mangas longas e a barra extensa completavam a vestimenta da cientista.

Bárbara era geneticista e viróloga renomada há quinze anos. Esposa e sócia do dono da Corporação Farmacêutica Brasileira Pyramid, a indústria e multinacional do ramo farmacêutico mais famosa do Brasil e da América Latina, com intenção de expandir futuramente para todo o continente americano. Enquanto o marido tomava conta da corporação, ela cuidava do instituto de pesquisas de pessoas especiais, ideia da própria. Além de fazer parte da equipe de cientistas responsáveis pelos estudos nas Tumbas (os centros laboratoriais da Corporação Pyramid). O que Alfa notou por último foram os olhos outrora claros de Bárbara, vermelhos e a maquiagem borrada, causada provavelmente por uma crise de choro.

— Barbie! — O homem apressou o passo até ela e a abraçou forte. Bárbara afundou o rosto no ombro do loiro. — Madrinha, o que aconteceu?

A cientista conhecia os pais de Demétrio desde que ele era apenas uma criança correndo pelo quintal do casarão da família Gama Villa-Lobos. Os dois sempre se deram muito bem, então Hermes e Regina decidiram batizá-lo com Bárbara como madrinha. A partir daí, a ligação entre os dois só aumentou e os ambos ficaram tão próximos a ponto dela se tornar uma segunda mãe para ele.

A ruiva continuou aninhada nos braços fortes do homem, que segurou seu rosto e limpou as lágrimas. A mulher mantinha aquela pose para não despencar, e o afilhado sabia disso. Ele esperava uma explicação para toda aquela situação.

— Meu querido, foi tudo culpa minha!

— Do que a senhora está falando?

— Do acidente nas Tumbas, do vazamento do vírus, foi tudo culpa minha! — A mulher continuava chorando copiosamente. — Errei terrivelmente.

— Fica calma, madrinha… Explica isso direito, por favor. — Segurou seu braços com ternura.

— Não tenho tempo pra explicar tudo agora, mas esse surto de virose, meu querido, é culpa minha. — A voz trêmula dela descarregava todo seu medo. — Foi um acidente no centro laboratorial da corporação, eu não esperava que o vírus escapasse, ele não parecia reagir tanto às pesquisas, eu queria continuar e acabei exagerando, a mutação se expandiu e eu perdi o controle! — A voz deu lugar ao choro.

Perder o controle.

Alfa abraçou a madrinha o mais forte que podia.

— A mutação do vírus da Raiva com o Ebola, havíamos descoberto uma brecha possivelmente milagrosa… Tudo que Anúbis queria era desenvolver uma cura para o câncer mais eficaz, que pudesse substituir a pílula de fosfoetanolamina… Mas você não pode contar pra ninguém sobre essa incidente nas Tumbas, querido, é o futuro da empresa e da população que está em jogo, esse vírus pode atingir um potencial devastador! Por enquanto, estamos sabendo driblar a mídia, mas não sabemos até onde conseguiremos.

Era muita informação para o afilhado.

— Não há cura? Quem sabe antídoto ou vacina? — Alfa perguntou exasperado.

— Estávamos trabalhando nisso, mas uma das cobaias importantes para o processo fugiu.

— Como assim, cobaia? — O rumo da conversa estava ficando um emaranhado de informações.

— Não sabia seu nome, mas conhecia como KB-081, era uma jovem mulher que trouxeram de um manicômio de São Paulo. Depois de algumas pesquisas, descobrimos que as alterações nas suas células e no seu sistema nervoso poderia atrasar a expansão da mutação. Mas de alguma forma ela conseguiu fugir. — Bárbara tentava se recompor a cada palavra. — Era como se o corpo dela tivesse criado uma imunidade própria, mas isso não é tão importante no momento. Tem algo maior que preciso te contar, antes que seja tarde.

O loiro sentiu um medo começar em seu estômago, esmagando as borboletas de ansiedade.

— Pode falar.

— O governo planeja lacrar a cidade e colocá-la em estado de quarentena.

— Jesus! — Alfa exclamou, pondo a mão na testa.

— Acho que nem ele pode te ajudar nesse momento, querido. É por isso que eu preciso que pegue Samara, Ester e sua equipe, e saiam da cidade. Vocês tem que sair imediatamente! A ponte será bloqueada, ninguém vai poder sair ou entrar de Cabo da Praga! — Bárbara segurou os braços do afilhado e começou a sacudi-lo. — Está me ouvindo? Saia agora de Cabo, leve sua família e seus amigos!

— E você? — Alfa falou, enquanto a mulher o levava em direção à porta de vidro. Sua cabeça girava. — Você vai ficar? Você também precisa ir!

— Não, eu ficarei aqui e cuidarei da instituição, não posso deixar todos os pacientes. Aqui tem seguranças suficientes. — Bárbara abraçou-o e em seguida, empurrou-o para fora. — Vá enquanto antes! Vá!

— Madrinha! — Alfa gritou, tentando entrar novamente. Porém, a porta travou. — Barbie!

A última imagem que viu antes de sair foi sua madrinha acenando entre choros copiosos.

XXXXX

Em questão de minutos o cineasta entrou na van e voltou até a produtora. Chegou com a pele vermelha, suado e sem fôlego. Samara e Yuri estavam na recepção.

— Beta, quero que pegue Samara e os demais, coloque-os no seu carro e leve-os até minha casa! É importante!

— Calma, Alfa, diz o que tá acontecendo, parceiro? — Yuri perguntou.

— Menos perguntas e mais ações, cara, é importante, já disse! Vamos lá, confio em você. — Depois ele dirigiu-se até a mulher, que estava estática sem entender praticamente nada. — Sam, você pode pegar a Ester na casa da vizinha e levar pra lá também, eu tenho que pegar algumas coisas aqui e colocar na van, ok?

Nesse momento, Diana e Gustavo apareceram rindo com dois sorvetes em mãos. Quando percebeu o alvoroço na recepção, o loiro indagou:

— O que houve?

— Ótimo! O Guto fica aqui e me ajuda a por as coisas na van. — Demétrio retrucou e viu Diana erguer o braço timidamente.

— Posso ajudar também, estou aqui pra isso.

Michelle e Joyce chegaram logo em seguida. A baixinha arregalou os olhos, sem entender a situação. Mimi se aproximou de Alfa e não escondeu a curiosidade.

— Aconteceu alguma coisa, Alfa? Precisa de ajuda?

— Desculpa pelo transtorno Mimi, mas é que aconteceu um imprevisto barra pesada. Enfim, não posso dar muito detalhes agora, não quero deixá-los mais preocupados do que já estão. Yuri irá levá-las até minha casa e lá eu converso direito com vocês. Precisam confiar em mim, ok? — O homem ficou de frente com todo o grupo que até então permaneciam calados fitando-o.

Yuri e Diana foram os primeiros a assentir. Joyce, Mimi e Gustavo também concordaram. Samara foi a última, dizendo:

— Confio mais do que em qualquer pessoa, meu amor. — A loira depositou um beijo sereno nos lábios do marido, que abraçou-a.

— Yuri, cuide delas pra mim, por favor.

O negro assentiu prontamente, pegando a chave do seu simples veículo Gol prata.

— Até já!

XXXXX

— Aqui é Serena Rabelo, falando direto da Prefeitura Municipal, onde o prefeito pretende fazer o primeiro pronunciamento público sobre o estranho surto de virose que está levando inúmeras famílias em estados preocupantes aos postos de saúde e hospitais da região. Muitos acreditam que a doença está sendo transmitida pela água e se espalhando rapidamente. As vacinas estão se esgotando. Então, você que ainda não foi até o posto de saúde mais próximo de sua residência, vá até lá e tome a vacina. Logo mais teremos a palavra do prefeito para esclarecer sobre esse caso e tentar acalmar a população de Cabo.

Prefeito? Acho que se estivéssemos sendo governados por chimpanzés, estaríamos anos-luz em melhores condições. O pensamento veio de forma instantânea.

Thiago suspirou de maneira pesada. Mudou de canal rapidamente, mas sem resposta de programação, tombou a cabeça para trás em sinal de rendição ao ócio. Ergueu-se e fitou a casa pequena, sentindo-se sufocado em uma jaula voluntária, já que ele poderia sair a hora que quisesse, mas não tinha ideia de para onde ir. O cubículo verde de três cômodos e uma garagem era tudo que ele poderia ter por enquanto, já que seu salário de professor era considerado um dos piores da América do Sul e além de super desvalorizado, às vezes era pago atraso, o que atrasava também o aluguel do imóvel, coisa que também lhe tirava dor de cabeça.

Já não bastava as aulas de uma das escolas públicas de Cabo da Praga terem acabado de sair de uma greve geral por melhorias de salário e infraestrutura, agora o surto veio para privar os alunos de mais aulas, já que foram suspensas por riscos de contágio. E até que a situação fosse resolvida, Thiago também estaria privado de dar suas aulas de sociologia. E ele sentia muito por isso, tanto por si, como pelas crianças. Ele adorava dar aulas e expor seus pensamentos para ela, sempre com trocas de informações e interatividade.

Sem ideia do que fazer, o homem caminhou até o micro system e o ligou, pondo do volume máximo. Em seu pendrive, uma playlist de rock e grunge, gênero de ouvir e vestir pelos quais Thiago era apaixonado. A música que tocava era Coming For You, da banda The Offspring.

Time to go and get our kicks

Dropping out and getting in the mix now

Oh oh hey hey hey

Here in the backroom, nothing to do

We're not bored, we're just sick of you, yeah

Oh oh hey hey hey (Sick of you)

— Sick of you, mother fucker! — Gritou.

Aquela era a mesma banda que estampava a camiseta que o professor usava. A última coisa que Thiago se importava era com moda, mas o rapaz prezava pelos seus gostos e ter camisetas customizadas com suas bandas e quotes de séries favoritos era de extremo valor pessoal. Chacoalhava os cabelos loiros de maneira desequilibrada pela sala, fazendo movimentos com os braços. Pulou em cima do sofá e continuou acompanhando a canção e cantando junto.

— See the shadows marching on, yesterdays dreams are dead and gone! Oh oh hey hey hey!

Ele era um rapaz bastante singular e curioso. Os cabelos longos e loiros num tom escuro terminavam pouco antes dos ombros, mas eram lisos, luminosos e muito bem cuidados. A pele clara possuía algumas poucas espinhas e ele parecia muito jovem, embora já se aproximasse da casa dos trinta anos. Sua postura adolescente e sua aparência juvenil e contagiante deixavam para trás quem Thiago fora um dia, a casca falsa… Já que o verdadeiro se mantinha firme e forte ali.

Thiago era um jovem transsexual, mas de longe nem notava-se a mudança. A barba rala, o peitoral, o volume na cueca… Era difícil dizer que Thiago nascera com o sexo biológico oposto. Embora ainda existissem poucos traços femininos em suas feições, o professor de sociologia ainda era bastante criticado e marginalizado pela sociedade, sempre ferindo-se involuntariamente e desejando desaparecer a cada ato de intolerância. Esse era o dilema da sua vida: não entender os humanos que sempre estudou. Seus alunos já sabiam que ele nascera menina, mas se reconhecia menino, o que só deixava sua jornada mais difícil, já que apesar da maioria das crianças gostar dele de qualquer forma, os pais também acabavam interferindo nessa relação. Thiago nunca esqueceria da aluna apedrejada por três colegas de classe quando lhe defendeu ou do garoto que foi retirado da escola por ter um professor trans.

Esses tipos de pais achavam um absurdo terem um homem como Thiago dando aulas para criança, ainda por cima aulas de sociologia. Mas ele só se fortalecia a cada queda. Se ele despencava em sete precipícios, levantava oito voos. Lidar com a transsexualidade não era algo novo para ele, já que fazia quase dez anos que ele mudara o sexo biológico fisicamente. O que esmagava seus ombros todas as noites antes de dormir, era até onde ele resistiria.

Os olhos azuis hipnotizantes e esculpidos especialmente para parecer uma ressaca angelical eterna, os lábios cheios e rosados, os cílios chamativos, o rosto pequeno e o corpo franzino. Thiago costumava se camuflar em roupas largas e de um estilo meio desleixado, mas o que importava era saber conviver consigo mesmo e amar a si próprio da maneira que bem lhe cabia. Não adiantaria ele se martirizar e se culpar pelo ódio gratuito alheio. Thiago nunca se reprimiria. Se tinha uma coisa que ele havia aprendido com a vida e com as séries que assistia, especificamente uma de suas preferidas da Netflix era que a real violência, aquela que percebi ser imperdoável, é a que fazemos contra nós mesmos, quando temos medo de ser quem realmente somos.

Terminou o pensamento com uma voz ecoando no cômodo:

— Thiago Bernardini do Hell, o que está acontecendo aqui? Você bebeu de novo? Deveria ter me chamado, seu ingrato! Vamos adivinhar: whisky, vodka, cachaça… Skol beats?

A voz tirou ultrassônica Thiago do transe musical e o fez se assustar. O homem esbarrou no aparelho de som, que desligou. Ele se cobriu com dois travesseiros, já que usava apenas uma cueca samba canção junto com a camiseta. A mulher na sua frente colocou as mãos na cintura, jogando a bituca de cigarro que segurava em um cinzeiro na mesinha de centro. Ela era extremamente bela. A altura e o corpo esbelto eram parecidos com de modelos de passarela, tinha olhos verdes expressivos de felina, nariz reto e uma boca carnuda, vermelha e chamativa. Os cabelos negros estavam soltos e repicados nas pontas, sobre os ombros. Seu estilo pin-up das trevas de maquiagem despertava a atenção de Thiago, que sempre enalteceu a beleza da melhor amiga. Sabrina conhecia o rapaz desde a infância e os dois dividiam o aluguel da residência.

— Eu não estava bebendo. — Thiago corou.

— Thito, quantas vezes já te disse pra não ter vergonha comigo? Te conheço desde criança, já vi essas pernocas pálidas muitas vezes, ah qual é! — A morena pegou os travesseiros e os jogou no sofá.

— Você sabe que sou tímido, Capitu, nem vem com esse papo. Só me dá um minuto pra vestir minha calça, ok?

— Tá. Enquanto isso, vamos conversar sobre o que vi na TV hoje cedo. — Ela falou com tom de voz mais suave. — Eu estive prestando atenção no que está acontecendo e decidi que quero sair da cidade por uns tempos.

— O quê? — Thiago vestia a calça. Olhou-a incrédulo. — Do que está falando?

— Isso mesmo que ouviu. Esse lance de epidemia, surto de virose… Acho que devemos deixar a cidade até essa onda de infecção baixar, entendeu? — Sabrina pegou outro cigarro do maço em seu bolso e acendeu com um isqueiro.

— Quer dizer que está com medo da epidemia?

— Eu não tenho medo de nada, esqueceu? Quero respirar um pouco de ar puro, talvez da casa dos meus avós. Aquela velha louca me faz falta. — Jogou-se no sofá após um sopro de exaustão. — Ver como estão a vida dos meus parentes depois da morte da Deia…

Thiago sentiu o clima lhe prensando em seus próprios pensamentos. Ele sabia o quanto Andreia, a prima de Sabrina, fora importante na sua vida. As duas aprenderam ocultismo e flertaram com bruxaria juntas, foram unha e carne e as "meninas super góticas", como ela chamava. Quando os dois souberam da trágica e estranha morte da estudante de psicologia, Sabrina ficou desolada e fumava mais do que o comum. Thiago chegou a contar oito maços de cigarro por dia. Mais cedo ou mais tarde ela teria que parar, sendo pela insistência do amigo ou pelo grito de socorro dos seus pulmões.

Até hoje, os dois ficavam longe de ventiladores de teto ou sem algum tipo de proteção.

O professor lembrou da vez em que contou para as duas, numa rodinha dentro da casinha na árvore no sítio de seus pais, que não se sentia Talita Bernardini. Eles haviam acabado de entrar de solavanco na puberdade, mal conheciam as definições de identidade de gênero, mas souberam entender a situação de maneira tão natural. Andreia sempre com suas explicações cósmicas para o fato, falando que o signo de peixes é conhecido por conter duas almas, sendo uma delas sempre escondida pela predominante... E Sabrina com o lado mais irônico e divertido.

Então, as duas garotas resolveram dar-lhe um nome pelo qual ele pudesse se identificar melhor. "Thiago!", disse a voz de Andreia no pensamento dele. "Eu gosto desse nome, mas quero chamar de Thito, adoro apelidos!", respondeu a voz de Sabrina em sua mente. Naquele dia, a noite demorou para chegar e o trio das "Meninas e Menino Super Góticos", como passou a ser chamado, conversou sobre tudo que Thiago sentia. Desde então, souberam que levariam aquela amizade para sempre.

Mesmo assim, a amargura da morte da prima ainda era fato na vida da mulher. Thiago passara pela perda da amiga, mas superou mais rápido, talvez porque não era da família, como ela, mas fez de tudo para não desampará-la.

— Também sinto muita falta da Andreia… — Thiago retrucou, sentando ao lado de Sabrina.

A ocultista deitou lentamente a cabeça no colo do loiro e pela primeira vez, deixou que ele acariciasse seus cabelos. Thiago tinha certeza que por trás da armadura de espinhos que ela vestia, existia um lindo vestido de rosas roxas.

Após pensar por algum tempo, calados e fitando o nada, o professor quebrou o silêncio:

— Vamos sair de Cabo.

A fala surpreendeu a jovem que sorriu. Mesmo parecendo uma maníaca sorrindo, Sabrina sabia que tinha o amigo mais gentil, amável e leal que alguém poderia ter.

— Então se apresse em preparar seus trapos. A gente pega sua pick up, passa na minha loja para recolher algumas coisas e vamos direto pra fora do inferno. — Os olhos da morena brilharam.

— Avante, Constantine! — Disse Thiago, rindo.

XXXXX

Samara entrou na residência da vizinha, Lucinha, com passos apressados e desordenados. Seus olhos percorriam frenéticos por toda a casa, procurando algum sinal da filha de e da mulher que ficara tomando conta da garota. O lugar mantinha-se imerso em um silêncio perturbador e o sol das quatro invadia a residência pela janela.

A loira chamou pela filha, mas não obteve respostas. Também chamou pela senhora, mas tudo que recebeu de volta foi o silêncio e o barulho de sirene do lado de fora. O rangido de seu sapato ecoava pela casa num eco que deixava o coração da mulher mais apreensivo.

— Ester? Filha, é a mamãe, já cheguei pra lhe buscar. — Samara falou. Uma onda de eletricidade passou pela suas costas emanando desconfiança. — Lucinha?

Então um grito estridente fez seu coração pulsar ligeiro. Samara reconhecia o grito da filha a vários metros de distância. A loira correu sem pensar em mais nada, na direção do grito. Chegou nos fundos da casa e encontrou Lucinha caída e gemendo de dor. Um vidro de mel se encontrava quebrado ao seu lado e Ester agarrava seu bichinho de estimação em seus braços com força.

Ester era uma figura doce, meiga e angelical, filha de Alfa e Samara, foi como um presente na vida de ambos e o casal amava a filha mais do que tudo. A garota possuía os genes dominantes do pai: cabelos dourados, olhos azuis e bochechas rosadas.

Assim que viu a mãe, a garotinha correu para seus braços, chorando e pedindo que ela ajudasse a vizinha a levantar. Samara não pensou duas vezes e ergueu a dona de casa aposentada com certa dificuldade devido ao peso da mulher. Lucinha também já estava saindo da casa dos cinquenta. Ela tinha um galo e pequeno corte na testa.

— Oh, a senhora precisa de um curativo, deixa eu ver se encontro alguma coisa. — Samara começou a vasculhar os armários. — Onde está sua neta? O que aconteceu aqui?

— Foi uma das minhas crises de Labirintite novamente, minha querida. Eu estava procurando o mel de abelha para dar pra Léa que amanheceu tossindo e não encontrei ela. Achei que estivesse com a Esterzinha. Depois, quando virei a cabeça na direção da porta, minha visão ficou turva e escureceu de repente. — A senhora pressionava o curativo que Samara havia acabado de fazer para cobrir o corte.

— Ester, pode cuidar da senhora Lucinha, enquanto vou procurar a Léa? Pode fazer esse favor pra mim?

A garotinha loira assentiu e a chinchila em seus braços também pareceu concordar.

— Ela ficou brava comigo. — Ester disparou.

— Ela quem?

— Léa.

Samara saiu dali e subiu as escadas para o andar de cima. Chegou lá e encontrou a porta do quarto da neta de Lucinha aberta. Entrou e encontrou Léa sentada de costas para ela, fitando a janela escancarada, por onde uma brisa amena entrava. Samara chamou seu nome, mas a garota não respondeu, apenas tossiu. Resolveu aproximar-se e tocar seu braço, mas foi surpreendida por uma mordida.

A loira tirou o braço rapidamente, assustada e recuou. Léa olhou por cima dos ombros com um semblante zangado.

— Calma, Léa. Sou eu, a Sam, mãe da Ester. Você ainda está brava com ela? Pode me dizer o que ela aprontou?

A garota de cabelos longos e negros respondeu positivamente com a cabeça e cruzou os braços, passando a fitar a janela. A mulher preferiu não insistir na conversa, sabia como lidar com estresse infantil, Ester tinha às vezes. Já lidara muitas vezes com crianças, principalmente quando deu aulas para o primário, em uma das escolas particulares da cidade.

— Ok, tudo bem. Estamos indo, mas amanhã quero falar com você, tudo bem? Até mais!

Samara saiu dali sem entender nada do que aconteceu. Leandra nunca aparentou ser tão agressiva.

XXXXX

A ex-professora de primário e atual cenografista da produtora se despediu de Lucinha e voltou para casa ao lado da filha, encontrando a van de Demétrio estacionada na frente da residência. Entrou rapidamente e encontrou a equipe reunida em um pequeno escritório montado na própria sala do cineasta. Ele também trabalhava em casa.

Yuri e Gustavo se encontravam recostados em um balcão de mármore, enquanto Mimi, Diana e Joyce estavam sentadas no sofá, esta última com um notebook sobre as pernas. Todos com a preocupação escancarada em seus rostos.

— Minha filha! — Alfa abraçou a pequena assim que a criança entrou e ficou aliviado. — Ela está bem?

— Está, está sim. Agora, você precisa explicar o que está havendo, eu estou muito confusa e preciso saber! — Samara parou de frente para ele.

Alfa entreolhou-se com os demais. Yuri acenou positivamente e o produtor resolveu despejar:

— A verdade é que vamos sair hoje mesmo de Cabo e começarmos os preparativos para as gravações em Valadares Brandão. Já conversei com o responsável, ele estará nos esperando com o estúdio pronto.

— Mas por que a pressa? Ester ainda está na semana de provas. Não iríamos daqui há alguns dias? — Perguntou.

— Por causa da maldita epidemia, a cidade entrará em quarentena e será lacrada hoje à noite pelos militares. — Alfa dizia tudo sentindo o suor descer na testa. — Vi vários deles na rodoviária mais cedo e a madrinha me confirmou. Vamos ficar presos por tempo indeterminado se não deixarmos a cidade.

Samara ainda digeria todas aquelas notícias golpeando-a no estômago, quando percebeu que Joyce estava querendo lhe dizer algo. A jovem maquiadora disse que os boatos já circulavam na internet e que a população da cidade já estava em polvorosa para fugir do estado de quarentena.

— Vamos arrumar nossas coisas e partimos ainda hoje, daqui umas duas horas nos encontramos aqui, já que é inevitável que vamos pegar um trânsito caótico até a ponte. — O cineasta disse.

— Não acredito que isso está acontecendo. — Mimi retrucou. — Meu inferno astral.

— Eu preciso passar em casa primeiro mesmo, saber como minha amiga está! — Diana se levantou do sofá com pressa e saiu pela porta. Gustavo ainda tentou alcançá-la, mas seu chefe interceptou-o no meio do caminho.

— Deixa ela ir. Melhor você também arrumar suas coisas, rapaz. — Bateu no ombro de Gustavo, que olhou pela janela, vendo Diana ir embora.

XXXXX

O crepúsculo da tarde já atingia a vidraça e tingia a vitrine repleta de vestidos pretos, roxos e alguns detalhes em vermelho, pulseiras e anéis peculiares de símbolos ocultistas. A porta da loja se abriu e revelou as silhuetas de Thiago e Sabrina entrando. A Sabrinfetamine’s era uma loja de artigos góticos e bruxos que Sabrina montara há dois anos para ajudar Thiago a pagar o aluguel, além de ser outra parte da renda mensal dos dois. Thiago ofereceu o capital que daria início ao negócio, eram as únicas economias que ele mantinha, desde a cirurgia de mudança de sexo que bancou.

O investimento valera a pena. A loja tornou-se bastante conhecida e bem falada entre as tribos e grupos sociais específicos e nos quais os artigos mais interessavam. Apesar apesar Sabrina pequena, a loja de Sabrina possuía uma clientela leal e a gótica gostava de todo aquele universo sombrio do goticismo e do ocultismo. Só não se vestia de maneira mais pesada, por causa do calor. Ela não tinha paciência para vestir-se à risca, mas adorava dar dicas às clientes e entendia muito bem dos produtos que vendia. Desde às góticas à moda antiga, passando pelas gótica suaves e indo até as pirigóticas.

Ela deu uma rápida olhada e começou a recolher alguns artigos das gôndolas de vidro e colocá-los em caixas.

— Não acha que está exagerando, Capitu? Não é como se estivéssemos se mudando definitivamente. — Thiago comentou, também colocando alguns artigos nas caixas, de acordo com o que ela pedia.

— Você é tão otimista que chega a ser ingênuo demais, Thito, esse é o problema. — Mesmo sem entender nada, Thiago deixou que ela continuasse: — Só você ainda não percebeu que há algo bem maior por trás dessa epidemia? Pela sabedoria de Lilith, acorda! É óbvio que estaremos mais seguros fora daqui.

Foi aí que foram surpreendidos por batidas insistentes no vidro da vitrine. Só tiveram tempo de enxergar a silhueta do lado de fora. Rapidamente Sabrina puxou Thiago e o dois caíram no chão, atrás de uma das colunas de madeira. Agora, alguém forçava a maçaneta da porta.

XXXXX

Serena Rabelo passou a tarde no Hospital Querubins do centro de Cabo da Praga. Durante a entrevista com o prefeito, a ruiva começou as sentir os sintomas da virose e foi levada às pressas até o centro hospitalar. Agora, sentada na cama do leito, olhando para a TV portátil, via sua reportagem. O prefeito pedia que a população permanecesse dentro das suas residências e evitassem aglomerações para diminuir a propagação do vírus.

— Demagogo filho da puta! — cuspiu.

Serena estava realizando uma investigação acerca do vazamento do vírus por uma indústria farmacêutica chamada Corporação Pyramid. Infelizmente ela teria que desmascarar a empresa do marido da própria prima, Bárbara. Ela estava próxima de descobrir o que realmente houve no laboratório, seu jornalismo investigativo crescera depois dos acontecimentos de um ano atrás. Inclusive, ela lembrava, que naquele mesmo dia completava o aniversário de um ano da erupção do vulcão e da devastação da Ilha Vermelha. Feliz aniversário, Santa Muerte!

Ao seu lado, pousado na cama, o primeiro exemplar de seu best-seller, "Dezesseis Soldados — Morte e Vida de Serena Rabelo". Fora um sucesso de vendas e a ruiva ficara ainda mais conhecida pelos assuntos polêmicos sobre bruxaria, maldições e mortes contidos no livro. Tudo pelos olhos jornalísticos de Serena.

— Trouxe nossos cafés, amiga! — Serena ouviu a voz dizer na porta.

Rafaela entrou com seu sorriso maníaco, segurando dois copos de capuccino. A negra tinha um enorme curativo na testa. Havia se machucado com uma pedrada durante um livefeed para a TV. Serena presenciara tudo e deu certa assistência à jovem repórter. Sendo uma fã de carteirinha da ruiva, Rafaela estava no seu momento fangirl, tietando Serena.

A escritora pegou o livro e entregou-o à Rafaela, deixando que a negra lesse, enquanto bebia seu capuccino.

— É tudo verdade? O que aconteceu na ilha? — Ela perguntou num rompante.

— Sim. Desde o acidente, até meu resgate.

— Eu sinto muito pelas pessoas que não sobreviveram…

— Eu também. Meus quatorze soldados. — Serena retrucou.

— Não eram quinze? — Rafaela perguntou. Ela lembrava claramente do que tinha lido no livro.

— Eu acabei omitindo sobre uma das sobreviventes. O décimo quinto soldado. Seu nome é Lana Flowers e ela deve estar em algum lugar do mundo, a salvo.

Um vento gelado soprou pela janela. O copo de capuccino virou no colo da ruiva, que gritou instantaneamente com a dor. Depois de passado o susto, ela virou-se para Rafaela e disse:

— Não estou com um bom pressentimento.

XXXXX

Thiago e Sabrina permaneciam abaixados, dentro da loja. O homem tremia os braços, se apoiando no chão. Já a mulher apoiava-se no joelho e alcançava uma luminária de chão. Agarrou a base do abajur e se levantou. Thiago tentou puxá-la, mas ela interveio. Alguém continuava forçando a porta. Eles ouviam um barulho específico do lado de fora. Parecia com alguém rosnando, furioso.

— Mas que merda é essa? — Sabrina perguntou indigesta.

Thiago ligeiramente se ergueu do chão e acompanhou a amiga como uma sombra. Quando ambos estavam próximos de chegar na porta, a maçaneta parou e as batidas também cessaram. Eles se entreolharam e Thiago caminhou até a vitrine, constatando que não havia mais ninguém ali na calçada. Só via uma jovem pedalando rapidamente em uma bicicleta, vindo no final da rua.

A bicicleta amarela de Diana seguia veloz pela rua deserta. O final de tarde deixava o cenário ainda mais macabro. Não havia um pé de pessoa ali e ela sentia receio do que pudera acontecer com sua melhor amiga. Ela lembrara de telefonar para Mariana após sair da casa de Alfa, mas a outra nem atendeu. Pensava a todo momento o que poderia ter acontecido com ela, que também não respondia as mensagens no Whatsapp. Lucas também não atendia o telefone, mas talvez ele ainda estivesse brincando de ser criança. Ou talvez, eles já souberam da quarentena e saíram da cidade… Diana pensou.

Mas seus pensamentos foram interrompidos com um vulto passando diante da bicicleta. A garota tentou frear, mas o corpo se pôs na frente de Tina e a bicicleta amarela bateu o guidão contra o indivíduo, que tombou. Junto com Diana. A garota levantou com velocidade, indo na direção dele para ajudá-lo, mas o homem bem vestido com uma blusa social de botões, gravata e calça fina, agarrou seu braço e o guidão da bicicleta e disse:

— Eu quero a bicicleta, só a bicicleta! — O homem de barba bem cortada bradou.

Nem de longe o homem parecia necessitar roubar uma bicicleta. Ele vestia-se tão bem, tinha a aparência tão diferente dos esteriótipos de bandidos que roubam bicicletas, que ela estranhou e o empurrou. Ele não estava armado, comprovou. Achando que ele estava sob efeito de drogas, Diana puxou a bicicleta para si e empurrou novamente o homem. Mas ele não lhe soltou.

— Me larga! Socorro! — Gritou.

Só então ela notou com os olhos dele estavam avermelhados e a pele pálida tinha duas feridas grande nas bochechas.

— O que é is-

O homem partiu para cima da dubladora, que berrou novamente. Neste momento, duas pessoas saíram de uma loja e rapidamente seguraram o homem, que atingiria um soco no rosto da dubladora, se não tivessem intervindo. Diana olhava tudo estática, segurando a bicicleta.

— Liga pra polícia! — Disse Thiago, tentando segurar os braços do homem, enquanto Sabrina dava uma gravata.

O homem debatia-se loucamente em seus braços, tentando se desvencilhar.

— Me solta, otário! — Sua fala estava entrecortada pela própria língua.

Até que começou a babar e a espumar. Sabrina o largou sentindo ânsia. Thiago fitou tudo incrédulo.

— Ele está com raiva? — Ele perguntou, afastando-se do barbado, que agora caíra no chão e se contorcia. — Chama a carrocinha, a ambulância, os bombeiros, o exorcista!

— É o vírus! — Diana respondeu sem pensar. — Só pode ser isso!

— Espuma, olhos vermelhos, feridas pelo corpo… Você tem razão, garota. — Sabrina retrucou. — Ele está infectado.

— Não vou ficar e morrer na quarentena, preciso sair imediatamente!

Como se tivesse um insight, Diana pegou a bicicleta e saiu dali depressa. Sabrina entreolhou-se com Thiago no exato segundo.

— Quarentena? Do que ela estava falando? — Sem penar duas vezes, correu na direção da pick-up, pondo as caixas na parte traseira. Thiago observou atônito, revesando entre olhar para a pick-up e o homem contaminado no chão se retorcendo.

— Não podemos deixá-lo aqui! — Ele disparou.

— Claro que podemos! Anda, Thito, entra logo!

Hesitante, Thiago recuou atordoado e entrou no carro. Logo, Sabrina arrancou a pick-up rua abaixo.

XXXXX

Parte III: Estigma

A lua acima da van de Demétrio brilhava sobre a rodovia superlotada de veículos, prestes a entrarem no túnel da Teodoro Kaulfuss. A família e equipe toda estava dentro do veículo, com exceção de Diana que desaparecera e não dera mais notícias e de Gustavo que disse que passaria em casa e levaria a mãe para Valadares Brandão. Os equipamentos também estavam todos ali. O homem fazia um nó num barbante que havia sobre o painel do carro, enquanto o automóvel estava no meio de um engarrafamento. Ao seu lado, Samara o encarava, ele estava visivelmente atordoado com tudo o que estava acontecendo naquele dia. Sentia o peso do mundo nas costas, o peso de ter que deixar a cidade tão abruptamente estava desorganizando sua vida e seus pensamentos. Aquela desorganização estava deixando-o deslocado.

O homem olhou para o moletom preto do filme Night Of The Living Dead que usava, sendo iluminado pelos feixes de luz da sirene de uma ambulância do CAPS, e suspirou. Péssimo dia pra realidade imitar a arte. No banco traseiro, Joyce filmava a situação caótica em que se encontrava a rodovia. Eram buzinas, xingamentos, pessoas correndo, gritos, uma confusão generalizada. O lugar mais seguro e sensato a se ficar era dentro da van. E nem assim, eles poderiam confiar.

— Espero que eles voltem atrás de manter a cidade selada. Seria suicídio coletivo. — Mimi comentou e Joyce concordou.

— É isso que eles querem, fazer com que o vírus dessa tal Praga Egípcia fique apenas na cidade, querem evitar contaminar os arredores. — Yuri retrucou.

— Parece que os boatos da quarentena na internet fizeram a cidade toda querer fugir hoje à noite. — Alfa olhava para o trânsito parado.

Ao lado da van, parada no meio do engarrafamento, uma mulher ruiva discutia com uma garota em cima de uma bicicleta amarela, mas de onde estava, ele não soube dizer se era Diana. A ruiva ele deduziu como sendo Serena Rabelo, a jornalista e escritora. Ele já tinha visto seu best-seller. A van entrou lentamente no túnel, quando os carros da frente começaram a avançar. Atrás da van, uma pick-up buzinava insistentemente. Alfa pôs a cabeça para fora do veículo e buzinou de volta. A mulher atrás do volante da pick-up mostrou o dedo do meio e o homem voltou para dentro. Quando percebeu, Samara olhava para fora com uma expressão de medo.

— Amor, o que houve? — O cineasta perguntou.

A esposa apontou para alguns metros do carro e disse:

— Aquela não é a dona Lucinha?

— A vizinha? — Com o aceno positivo de Samara, que parecia pálida de susto, Alfa avistou a velha vizinha cambaleando entre os carros, pirada. Ela batia nos vidros e se jogava nos capôs dos veículos. Gritava feito uma alucinada e tentava avançar sobre alguns motociclistas.

Quando ela aproximou-se de um dos veículos, um homem apareceu e simplesmente ateou fogo na mulher. A velha senhora agonizava, enquanto o corpo tombava no asfalto. Samara gritou chocada, Joyce havia captado tudo nas filmagens e Mimi ficou estarrecida, tapando a boca. A atriz resolveu sair do veículo abruptamente, Samara olhou para trás sem entender nada. Alfa também saiu, pedindo para Mimi voltar à van.

— Ele está certo, Michelle, é mais perigoso do lado de fora! — Yuri exclamou.

— Estão queimando as pessoas vivas! — A atriz gritou apavorada. — Eu não quero ficar aqui! — A loira pegou seu casaco de pele sintética rosa e se preparou para sair apressadamente. O salto alto vermelho iria dificultar sua corrida, mas ela conseguiria sair.

De repente a pequena Ester abriu a porta do carro e correu. Desta vez, Samara olhou para trás e gritou pela filha.

As coisas estavam saindo do controle para o cineasta. Está ficando sem controle…

— Fiquem aqui, eu vou buscá-la. — Alfa disse para os demais dentro do carro, enquanto via Mimi correr entre os veículos antes dele.

Então, Alfa avistou Mimi retornar ao veículo com a filha dele de mãos dadas. As duas entraram. Foi aí que ela apareceu. Alisson Silver estava com um semblante apavorado no rosto, mesmo que forçasse para que parecesse que sua armadura estava firme. A verdade era que nem ela, nem o cineasta eram à prova de balas.

— Alfa, vocês precisam vir comigo! — Alisson falou com um nervosismo aparente na voz. — É caso de vida ou morte!

— Mas, minha filha, ela…– Samara fora interrompida.

— Está aqui! — Mimi bradou. A atriz segurava a mão de Ester. A garotinha tinha a sua chinchila inseparável nos braços.

— Ela tinha escapado pela janela. — A voz de Ester estava embargada.

Alisson olhou no fundo dos olhos do cineasta. O âmbar e o azul se permutaram por breves segundos, ao som do caos ao redor. Então o loiro assentiu e o grupo correu para longe da van. Yuri saía do carro, quando percebeu que Joyce pedia que ele ajudasse ela a retirar o cinto, que ficara preso. O negro voltou rapidamente para dentro do carro. Quando olhou para frente, não avistara mais Alfa, nem os demais.

Foi aí que ouviu um estrondo que estremeceu o asfalto e gritos estridentes de partir do coração. Conseguiu retirar o cinto da maquiadora e no mesmo instante, de dentro da van, os dois viram a parede de fogo se aproximar. O manto incandescente explodiu os vidros dianteiros e jogaram seus cacos sobre eles. Logo, todo o veículo fora engolido e abraçado pelas chamas. Nem Yuri, nem Joyce tiveram tempo de gritar por Alfa.

O cineasta havia acabado de entrar em uma porta junto de Alisson, Ômega, Samara, Ester e Mimi. O local já estava repleto de pessoas, todas espremidas e estarrecidas, e o tremor que cobriu o vão do túnel anunciou o prenúncio da morte. Alisson chegou ao pé de seu ouvido e sussurrou:

— Alguém previu o acidente.

XXXXX

Demétrio estava junto da família numa instalação ao ar livre no pátio de uma escola da cidade. Haviam várias tendas médicas e pessoas transitando, a maioria delas, bastante feridas, eram todos sobreviventes do desastre no túnel. O homem estava aliviado da filha, do irmão e da mulher estarem ali com ele. Mimi também, ela se mostrara uma mulher de força por não se deixar abater pelo acidente. Diferente dele que já havia chorado de maneira copiosa pela morte do seu melhor amigo e da jovem Joyce. Eles não mereciam…

Samara pôs a mão em seu ombro, ela também tinha os olhos vermelhos, mas Alfa não sabia se ela tinha chorado. Ao menos, não a viu chorando. Ele também notara que sua esposa estava pálida desde que a viu melhor dentro do carro. Perguntara se ela estava bem e ela disse que sim. Porém, ele sentia que ela estava diferente. Foi aí que Samara vomitou. Um enfermeiro apareceu rapidamente e pediu que ela o acompanhasse. De momento, Alfa não entendeu a situação, mas logo um insight lhe trouxe de volta à sã consciência e ele acompanhou a esposa e o enfermeiro, deixando Gustavo sozinho com uma mulher de prancheta que acabara de chegar. Antes de chegar à tenda médica da doutora Raja, Samara virou para o marido e disse:

— Me desculpa, meu amor, me desculpa por não ter avisado sobre isso. — Ela chorava e tossia muito. — Eu queria ter contado, mas fiquei com medo de como poderia reagir, eu… — Então, desmaiou nos braços do enfermeiro.

Os homens levaram a loira até a tenda da doutora Raja. A mulher estava a espera, já analisando a situação. Alfa estava perplexo demais para dizer algo e apenas olhou para a pediatra que cuidava de sua filha. Seus traços indianos estavam imersos em uma face degenerada pela tristeza. De imediato, Maria Raja prendeu os cabelos num rabo de cavalo e puxou a manga comprida da blusa da paciente. Samara revelou uma mordida profunda e inflamada no pulso.

A baba e a espuma saltaram de sua boca em jatos pútridos no mesmo instante.

— Ela está infectada!

— Alfa, me desculpa! — Samara engasgava-se na próxima baba. — Cuide da nossa Ester…

Mas é claro que o sol vai voltar amanhã

Mais uma vez, eu sei

Escuridão já vi pior, de endoidecer gente sã

Espera que o sol já vem

Então, ela perdeu a sanidade em questão de segundos e atacou Dra. Raja. A médica gritou de susto e o enfermeiro ajudou-a a retirar a vítima infectada de cima dela. Alfa chorava desolado, num canto da tenda. Raja acabou machucando o tornozelo em um equipamento e começou a mancar para fora da tenda. O enfermeiro aplicou desativo em Samara, que tombou bem próxima da Alfa. O homem continuou chorando ao ver o corpo caído da esposa. Seus olhos vermelhos exalavam a infecção. O último resquício de espuma saiu de sua boca.

Tem gente que está do mesmo lado que você

Mas deveria estar do lado de lá

Tem gente que machuca os outros

Tem gente que não sabe amar

Tem gente enganando a gente

Veja a nossa vida como está

Mas eu sei que um dia a gente aprende

Se você quiser alguém em quem confiar

Confie em si mesmo

Quem acredita sempre alcança


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Notas finais do capítulo

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