Premonição Chronicles 3 escrita por PW, VinnieCamargo, Felipe Chemim, MV, superieronic, Jamie PineTree, PornScooby


Capítulo 14
Capítulo 14: Boa Noite, Mamãe


Notas iniciais do capítulo

Escrito por PW.



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PARTE I: Elo

14 de Janeiro de 2016

O cheiro de carne podre dentro do Coliseum estava insuportável. Cada canto das paredes de tijolos e dos revestimentos de metal estavam empreguinados com o odor provindo dos restos de algumas carnes do frigorífico, que ficava no fundos do estabelecimento, mas próximo o bastante para que tudo não passasse de uma bolha pútrida. O quarteto acabara de abrir as principais portas duplas do local, antes trancadas por correntes, ficando de frente para os caixas, corredores bagunçados e prateleiras desorganizadas do supermercado. Um furacão chamado arrastão passara por ali.

Alisson tapou o nariz de imediato, sentindo como se aquilo fosse as ruínas de um mausoléu de cemitério. Já Alfa segurava o máximo para que a respiração não fosse afetada pelo odor, pondo o braço sobre o nariz. Max permanecia com uma blusa amarrada em volta das vias respiratórias e Natasha tirava uma máscara hospitalar do bolso, colocando prontamente.

— Puta merda! Quantas pessoas morreram aqui? — Alfa perguntou avançando pelo piso, que deveria ser branco, mas estava manchado de diversos tons de marrom e vermelho.

— Acho que centenas. — Max respondeu tossindo.

— Parece que ele foi abandonado há mais dias. — Natasha concluiu. — Mas felizmente, os saqueadores devem ter deixado esse passar.

Alisson logo se encaminhou até o espaço onde jaziam os carrinhos, fazendo um barulho irritante de ferro rangindo. Ela tirou um, enquanto a negra retirou outro, voltando até próxima de Max. O rapaz de barba pediu para ajudar e ela cedeu o carrinho para ele, olhando ao redor. Luzes piscavam ao longo dos corredores, outras pendiam sem qualquer iluminação, apenas despejavam faíscas vez ou outra. Natasha tinha razão, os supermercados da região da Mesópole ou Central — pequeno bairro que dividia a Alta da Baixa Praga — tinham sido todos saqueados, já que a pequena região ficava concentrada entre os bairros de maiores fluxos de habitantes. Era onde eles viviam. O Coliseum era o último supermercado de Mesópole que não havia sido saqueado completamente. Ainda.

Alfa largou o grande alicate sobre o carrinho, fazendo mais um barulho metálico. Andou por entre dois caixas, pegou duas cestas e entrou em um corredor. Os outros três fizeram o mesmo, seguindo-o. Max e Alisson guiavam os carrinhos logo atrás de Demétrio e Natasha. Esses dois recolhiam algumas coisas das prateleiras e colocavam em suas cestas, começando por mantimentos enlatados e de rápido preparo. Alisson recolhia mais alguns produtos, sendo estes, higiênicos. Já Max, ao fundo, conferia e contava os espaços entre cada barra que formava a cerca do carrinho. Não havia colocado nada em seu carrinho ainda.

Natasha olhou por cima dos ombros, dizendo:

— Algum problema, Max?

O homem pareceu se assustar, mas logo disfarçou, jogando um rolo de papéis higiênicos dentro do carrinho e sorrindo com os olhos. Natasha não viu, mas sabia que havia um sorriso sem graça embaixo da blusa amarrada ao rosto. A negra sorriu, ela sabia que o transtorno do namorado não tinha hora para atacar. Era maior do que ele, mas ela estava ali justamente para ajudá-lo.

— Tive uma ideia, vamos trocar. — Natasha andou até Max e ofereceu a cesta em troca do carrinho de compras. O homem não contestou e a troca foi feita rapidamente.

— Pessoal. — Alisson disse. — Vou até a farmácia. Vai ver, ainda pode ter medicação básica lá.

— Quer que eu vá com você? — Demétrio se dispôs.

— Não precisa, Alfa, eu sei me cuidar. — E sorrio, mostrando suas covinhas. — Afinal, vocês estarão ganhando mais tempo se separarem para encherem os carrinhos.

A escritora e o cineasta assentiram. Max não disse nada, estava ocupado demais procurando enfileirar de maneira perfeita frascos de óleo de côco em uma prateleira. Natasha caminhou até ele solenemente, tocando seu braço, impedindo-o de colocar o último frasco. Ele olhou-a de maneira ofendida, mas bastou um olhar para que a negra tirasse aquela expressão de seu rosto. O homem suspirou de forma pesada e caminhou pelo corredor, carregando a cesta. Natasha foi andando atrás dele, levando um dos carrinhos.

Demétrio, por sua vez, parou de frente para Alisson e proferiu:

— Tome cuidado mesmo.

A mulher concordou em um aceno de cabeça e saiu com uma sacola plástica em sua mão, desaparecendo em um dos corredores. O loiro alcançou o casal que acabara de sair e o trio seguiu por um corredor que daria na seção dos congelados. Max e Natasha conferiam os freezers e geladeiras, mas aquele espaço parecia ter sido o mais saqueado, não haviam quase nada dentro dos refrigeradores. As luzes daquela ala também piscavam sem parar, dando um tom mais sombrio ao local.

O odor de carne podre só aumentava.

— Tem mesmo gente morta aqui, não pode ser… — Alfa reclamou do odor, mas desta vez não tapou o nariz, concentrando-se em colocar algumas bandejas de presunto e queijo que encontrou dentro de um dos refrigeradores.

— SOCORRO!

O grupo arregalou os olhos assim que ouviram o grito ecoar por toda a seção de congelados. Não era o grito de Alisson, era mais infantil. Uma criança, talvez. Max olhou para o final do corredor para o qual estava de frente… Nada. Alfa correu até uma das pontas da ala, olhando para outro corredor… Vazio. Sem aviso prévio, Natasha correu dali, deixando os dois homens sem reação. A negra seguia os gritos, que se intensificavam. Os cortes borravam as prateleiras, as luzes piscavam em uma sincronia acima da cabeça da escritora. Os homens chamavam por ela, mas Natasha não ligava, ela queria chegar à fonte do grito de socorro.

Até que parou no setor de pães e outras massas, já sentindo o suor escorrer em sua têmpora. Ofegante, ela olhou para um dos balcões da padaria.

Ali, abaixada e agarrado aos próprios joelhos, havia uma garota negra de pouco mais que quinze anos. Vai ver, quinze anos fosse muito, já que tinha feições um pouco infantis. A primeira vista, o que estava exposto e rotulado na jovem era um rosto banhado em medo. Ela tremia, a pele suja e um pouco castigada, arranhões apareciam no braço e os joelhos estavam ralados. Ela usava uma touca sobre a cabeça.

— Está tudo bem? — Natasha perguntou, aproximando-se. — Olha esses machucados, Jesus! O que aconteceu?

A garota fitou-a sem dizer qualquer palavra. A escritora arriscou estender a mão em sua direção, na intenção de que ela levantasse, mas a menina olhava estática para a pulseirinha que balançava e tilintava no braço da mulher. Natasha não se surpreendeu quando ela recuou. Estava temendo que lhe pudessem fazer mal. Então, Natasha sorriu, provando que estava ali apenas para ajudá-la.

— Já está tudo bem. Quem te atacou provavelmente já foi embora, eu não vou te machucar. Vem, levanta. — Desta vez, a negra tocou o braço da menina, que rangeu os dentes.

Natasha estranhou imediatamente.

— NAT-

A escritora olhou para trás, assim que taparam a boca de Max. O homem estava levando uma gravata de um rapaz. Alfa tinha as mãos para cima, em sinal de rendição. Ambos escoltados por cinco adolescentes. Todos armados com facas, facões e barras de ferro. A cena assustou Natasha, que engoliu em seco. A menina empurrou-a e puxou a correntinha de ouro de seu pulso.

— Ei! — Natasha gritou.

Ao redor dela, além dos cinco delinquentes e da menina, haviam mais dois deles. O mais alto e aparentemente o cabeça por trás de toda a situação se aproximou:

— Mandou bem, Amanda! — Ele olhou para a correntinha na mão da garota, analisando-a.

— Valeu, Casper. Achei que seria mais difícil, mas ela caiu direitinho.

Casper estava vestido de maneira desleixada e suja, assim como a jovem mentirosa. Mas ele tinha ar de superioridade, como se comandasse o grupo.

A tal Amanda sorriu vitoriosa, pondo a mão na cintura a olhando para Natasha totalmente encurralada pela gangue. A escritora bufou. Uma emboscada, como não pensei nisso? Odiou-se por não ter sido mais cautelosa. Agora, Max e Alfa estavam sendo ameaçados.

— Falem logo o que vocês querem! — Natasha disparou.

— Calma, chocotone. — Casper retrucou em tom de sarcasmo. — Não é como se você fosse morrer daqui a pouco. — Ao fundo, Max moveu-se desconfortável com a fala.

Natasha encarava o líder com vontade de subir em seu rosto e arrebentar todos os seus dentes, mas controlou-se devido ao perigo iminente imposto sobre os dois homens cercados de armas brancas. Qualquer movimento brusco significaria ganhar ou perder. Natasha só precisava pensar…

Até que ela viu Alisson passar rapidamente no final de um dos corredores, bem atrás do líder da gangue, escondendo-se.

— O que nós queremos, nós já temos que são os carrinhos de compra. — Casper comentou. — Mas podemos negociar mais algumas coisinhas. — Ele manobrou um canivete entre os dedos, após retirá-lo de dentro da manga longa do blusão cinza que usava.

Uma das regras para ser um bom advogado é saber ganhar tempo!

— Olha quanta coisa ainda tem aqui! — A estudante de direito apontou para a ala em que estavam. — Por que vocês não pegam a merda de um carrinho de compra e recolhem seus próprios mantimentos?

— Porque queremos os de vocês, porra!

— Você tem várias pessoas, se cada um se dividir em um setor do supermercado, todo mundo sai feliz. — A escritora sabia que nada adiantaria tentar argumentar com um bando de marginais, mas ela só queria que Alisson fosse rápida.

— Vamos acabar logo com isso e sair daqui? — Amanda opinou.

— Fica na sua, Amanda! Deixa que eu resolvo isso. — Casper cuspiu, enquanto a delinquente deu de ombros, indiferente.

— Diz logo o que você quer, cara! — Alfa bradou de onde estava, recebendo um olhar fulminante de Casper.

— Cala a boca, senão vai ser pior pra sua namoradinha!

— Ela é minha namorada, não dele! — Protestou Max, tentando se desvencilhar da gravata do marginal. Ele prensou a faca rente ao pescoço do desenhista que foi obrigado a se controlar.

— Eu já sei o que eu quero.

— Até que enfim. — Natasha balbuciou, suspirando pela situação ridícula estar chegando ao fim.

— Eu quero as chaves do carro do branquelo aí. — Casper apontou para Alfa.

O cineasta olhou para todos com um semblante exasperado. Ele riu de maneira nervosa e levantou uma das sobrancelhas.

— Isso é sério? — Perguntou.

— “Vamo logo, rapá!” Joga ela pra cá! — Casper ordenou, virando-se completamente para o lado. — Acha que eu tô brincando? Paga pra ver, otário!

Na brecha entre o líder e uma das prateleiras, Natasha avistou Alisson surgindo no final do corredor. A morena vinha do departamento de ferramentas e construções. A escritora abriu um largo sorriso quando viu que Alisson empunhava uma grande motosserra. O barulho do equipamento ligando chamou a atenção de todos os membros da gangue. Isso fizeram com que eles esquecessem dos reféns. Alfa aproveitou o momento e socou um dos marginais, fazendo com que a faca voasse para debaixo de uma das prateleiras.

Max também não perdeu tempo e chutou os joelhos de um deles, que ainda tentou deferir um golpe com sua barra de ferro, mas Max segurou o objeto e retribuiu uma cabeçada contra sua testa. O delinquente bombeou e o desenhista aproveitou para tomar a barra de ferro e acertá-la em sua cabeça. Alfa sorriu e interceptou um terceiro marginal, que segurava um facão. Dois golpes foram na direção do cineasta que desviou, evitando dois ferimentos profundos na barriga. E acertou um soco certeiro no queixo dele, que tombou de imediato.

Com a motosserra empunhada, Alisson correu na direção de Casper e Amanda. A menina correu dali tão ligeira que seus calcanhares batiam na bunda. Casper e mais dois deles tentaram fazer o mesmo, mas a morena da motosserra interceptou-os.

— Vocês precisavam ver a cara de vocês. — Ela riu na frente deles, enquanto balançava a motosserra, divertindo-se com suas expressões faciais. Estavam se borrando de medo. — Acham mesmo que eu quero ou iria sujar minhas mãos com bandidos feito vocês?

— O que vai fazer, então? Eles ainda estão com nossas coisas. — Natasha perguntou e cruzou os braços, chutando o tornozelo de um deles, que tentava sair de fininho. — Fica aí!

— Eu não… O que elas vão fazer. — Alisson respondeu olhando para o final do corredor principal.

Casper também olhou para próximo dos caixas e viu o grupo de pelo menos cinco mulheres vindo no corredor.

A mulher esbelta que liderava era hipnotizante e ao mesmo tempo mantinha uma postura imponente e de completo respeito. Os cabelos loiros e finos saudavam a brisa quente do supermercado, devido aos ar-condicinados quebrados. Ela parecia não se importar com o odor de carne pútrida ou com os objetos espalhados pelo piso. Aparentava deslizar sobre um salto fino, dentro do vestido vermelho rasgado propositalmente em sua barra e do decote generoso. Usava um casaco de pele sintética, também vermelho. No rosto uma maquiagem simples, porém, com toque glam e no pescoço uma gargantilha que poderia se julgar ouro puro. As mulheres que a seguiam estavam muito bem vestidas também.

— O que você faz aqui? — Perguntou Casper indignado.

— Vamos sair daqui, Natasha. — Alisson cochichou. — Ela disse que corremos perigo. Vamos pegar os carrinhos e levar as compras para o carro.

Alfa e Max se aproximaram. O quarteto correu com os carrinhos e as cestas para fora daquele setor, indo em direção à saída do estacionamento. No último minuto, Alisson acenou positivamente com a cabeça para a loira, que assentiu de volta. Ela havia acabado de por a motosserra entre os mantimentos.

— Quem era ela? — Max perguntou, olhando por cima dos ombros para o grupo de mulheres.

— Seu nome é Debora. Ela é uma magnata das ruas e disse que esse é um dos distritos que pertencem a ela. Não se preocupem, ela vai dar um jeito nesses saqueadores. — Alisson completou.

Assim que eles terminaram de colocar os produtos no porta malas e onde mais cabiam, foram entrando no carro alugado. Assim que Alfa entrou, olhou adiante e viu um número considerável de infectados batendo enlouquecidos nas portas de vidro do Coliseum. Deu a partida no carro e todos passaram a vê-los.

Lá dentro do supermercado, Debora disparou:

— Eu mando aqui e nos meus distritos ninguém se impõe, além de mim, ok? — Sorriu e mandou um beijo no ar para Casper e os outros membros da gangue.

— Podem soltar os bichinhos famintos, meninas! — Ordenou e saiu dançando pelo corredor na companhia das suas seguidoras. O salto fino batia no chão numa melodia macabra.

Duas delas abriram as portas e Casper arregalou os olhos quando uma dúzia de infectados pelo vírus invadiram o Coliseum. Ele começou a correr, mas os infectados também tinham uma velocidade e ferocidade absurdas. A partir daquele momento, ele não soube dizer se viveria ou morreria.

Ao subir uma escada de metal lateral do supermercado, Debora chegou ao teto e fitou o carro do quarteto seguir pela rua. Seu corpo agora estava sendo amparado pelo pôr-do-sol. De onde estava, era possível ouvir os gritos de pavor dos membros da gangue e os grunhidos ensandecidos dos infectados. Embora a sensação fosse ruim, era como música para seus ouvidos.

Não era a primeira vez que Casper e os membros da gangue dos delinquentes do complexo da antiga fábrica Zonatto, na Baixa Praga, invadiam seu território. A rixa era velha e eles sempre arrumavam uma maneira de afrontar as terras de Debora. A mulher já estava cheia. Quando encontrou Alisson e soube que seus amigos precisavam de ajuda, viu neles a oportunidade de acabar com Casper e livrar a Mesópole dos marginais. A magnata das ruas não se considerava nenhuma justiceira, mas fazia de tudo para estabelecer a paz dentro de seu território. Era olho por olho, dente por dente e Debora por todos. Era um lado pelo qual ela prezava, era como uma satisfação maternal.

Atrás de si, uma de suas seguidoras apareceu, chamando-a para ir embora. Mas Debora negou com um aceno e chamou-a ao movimentar os dedos delicados. A sua garota se aproximou e Debora acariciou seu rosto. A outra entendeu o pedido de imediato.

Agora, as duas dançavam ao som dos gritos. Eles não deveriam ter invadido o território da loira, eles não deveriam ter ameaçado vidas em seu Éden. E Debora sabia que lá no fundo, ela também não se considerava uma pessoa boa, por isso, acreditava piamente que poderia oferecer-lhes o benefício da escolha.

Era uma dança para uma música lenta e trágica.

XXXXX

A noite chegou o mais depressa do que o grupo poderia imaginar. O carro alugado por Alfa — da empresa que fora atacada horas depois do aluguel do veículo — estacionou na frente da casa do cineasta. Do automóvel desceu o quarteto com as devidas “compras”. Todas em sacolas. O loiro foi na frente para abrir a porta, antes trancada com dois cadeados. Todo o cuidado possível era o mínimo. Eles entraram logo em seguida, se deparando com Michelle, Rafaela e Ester dormindo; a jornalista no sofá e as outras duas em um colchonete, ali mesmo, no chão da sala de estar. Ulysses, por sua vez, estava sentado em uma poltrona, atento a uma revista. Uma chave de roda pousada em seu colo. Quando notou que seu irmão mais novo havia acabado de chegar, o homem apressou-se em se livrar da revista, jogando-a para trás do móvel. Max e Natasha riram com o semblante de Alfa, que já sabia do que se tratava a revista. Deu de ombros. Alisson e os outros entraram com as compras, interceptados por Ômega, que vinha na direção do irmão.

— Comprou o que eu pedi?

— Claro, está tudo aqui. Inclusive o “miojo”, a feijoada enlatada e aquelas bolachas amanteigadas que tanto gosta. — Demétrio entregou a sacola para o irmão. — Obrigado por montar guarda e cuidar das garotas, você merece essa recompensa.

— Eu sou mais responsável do que você imagina, ok? Preciso cumprir meu papel de irmão mais velho alguma vez na vida. — Ômega riu e abriu a sacola, retirando suas bolachas de lá.

O ator jogou-se na poltrona e começou a comer.

Alisson, Natasha e Max levaram as sacolas até a cozinha. Foi quando a morena notou que a porta dos fundos estava aberta. Olhou para Ulysses conversando com Demétrio e suspirou. Responsável… Sei. Alisson caminhou até a soleira da porta e olhou para fora, o quintal estava escuro, ela pode ver dois lençóis brancos balançando no varal. Nada demais, a brisa soprou em seu rosto, o cheiro de grama pairou em seguida. Então, ela entrou e fechou a porta. Do lado de fora, detrás dos lençóis, surgiu um homem cambaleando. Ele tinha os olhos extremamente vermelhos, feridas saltavam do rosto, a espuma deslizava pelo canto dos lábios, a barba suja com a baba. Ele grunhiu e mexeu-se entre os tecidos, indo em direção da porta. Atrás dele, uma mulher e uma menina no mesmo estado.

Com a luz ligada, o grupo alojou-se na sala mesmo. A estação de energia ainda abastecia Cabo da Praga normalmente, sorte dos habitantes. Já bastava os hospitais e outras unidades de saúde estarem virando um caos, juntamente da estação de água que diminuiu o abastecimento por algum motivo estranho. Talvez fossem os boatos da contaminação girando em torno delas ou até mesmo que tivesse acontecido problemas maiores como alguma invasão de infectados. Do jeito que Cabo seguia, não demoraria muito até a o vírus na quarentena tomar proporções ainda mais alarmantes e transformar a epidemia em pandemia. Eles só precisavam torcer para que as companhias elétricas e hídricas não deixassem de abastecer a cidade.

— Ômega, acredita que fomos atacados no supermercado? — Alfa quebrou o silêncio. — Por uma gangue de saqueadores. — Deu uma mordida em um sanduíche que preparara para o grupo.

— Sério? — Ulysses ajeitou-se na poltrona, comendo o que seria sua penúltima bolacha do pacote.

O cineasta estava sentado no chão, recostado aos pés do sofá onde Rafaela dormia tranquilamente, sem sequer mexer-se por causa da conversa.

— Aquela safada ainda ficou com a minha pulseira. — Natasha resmungou, passando a mão no pulso.

Com a cabeça de Max em seu colo, Natasha observava a irmã ressonar tranquilamente. A escritora deu um meio sorriso, ciente de que ali a irmã estava aparentemente segura. Só de pensar que sua responsabilidade aumentara três vezes mais, tanto por Max como por ela e a irmã, sua cabeça já começava a dar voltas em pensamentos e flashs repentinos. E a negra se via novamente tendo que cuidar de Rafaela. Assim como aprendeu a cuidar de si e da irmã mais nova na escola.

Todo o bullying e a descriminação por cor sempre se fizeram presentes na vida de Natasha, e por mais que todas aquelas palavras doessem, ela aprendeu a se fazer forte. Rafaela sempre foi mais comunicativa e interativa, sabendo lidar com esse tipo de situação. Ou pelo menos, ela sabia esconder-se no sorriso perfeitamente. A irmã era querida por quase todos. Já Natasha, mais retraída, se via encurralada quando era prensada na parede e chamada de macaca nas aulas de educação física ou quando tinha os cadernos jogados e ensopados na pia do banheiro por não seguir o padrão das garotas de sua escola. A discriminação vinha de todos os lados, seja pela sua extrema inteligência, sua aparência, sua renda ou pela ocupação da mãe, que era professora na mesma escola em que estudava.

Os pais nunca deixaram faltar nada às irmãs. Agora, ela era uma mulher forte e com total controle de si. Natasha era dona da própria cor, dona da própria raça e super bem consigo mesma. Não viveria mais engolindo espinhos, rasgando sua garganta, impossibilitando-a de relatar as violências físicas e psicológicas sofridas. Ela tinha vez e voz e seguiria sendo a Natasha resistente, a fortaleza de Rafaela, que sempre considerou a irmã uma segunda mãe para ela.

— Que bom que já chegaram, eu estava ficando preocupada. — Rafaela abriu os olhos lentamente e sentou no sofá. — Tive um pesadelo terrível.

Natasha ofereceu um sanduíche para a irmã, erguendo o alimento e mostrando para ela. A jornalista negou com a cabeça.

— Graças à Debora estamos bem. — Alisson comentou.

— E a você com aquela motosserra, obviamente. — Alfa sorriu e piscou para Alisson, que retribuiu um sorriso desconcertado. — Max também fez um ótimo trabalho me ajudando a enfrentar aqueles moleques.

— Cara, que aventura hein. — Ômega comentou, empolgado. — Pareceu até aquele filme… Zumbilândia.

— Isso não poderia soar mais mórbido, sabia? — Natasha acariciou os cabelos de Max, que estava quase cochilando em seu colo.

Ômega deu de ombros e foi surpreendido com um barulho vindo dos fundos da casa.

XXXXX

Ômega saltou da poltrona. O barulho fez Alfa e Alisson erguerem-se do chão. Max e Rafaela levantaram num pulo, seguidos por Natasha. Mimi e Ester continuavam a dormir no colchonete, sem terem ideia do que acontecia ao redor. O grupo se entreolhou e Alfa fez sinal para que fizessem silêncio. Ele pegou a chave de roda na poltrona do irmão e deu alguns passos lentos na direção do corredor que levava até a cozinha. Atrás dele, Alisson sinalizava para que todos permanecessem juntos na sala.

Natasha apressou-se em despertar as duas loiras dormindo no colchonete. A mais velha, de cabelos curtos, abriu os olhos, puxando o ar com força. Assustada, olhou para a escritora, a primeira pessoa que viu. Natasha explicou para ela o que estava havendo e tratou de acordar Ester.

— Mimi… — A menina ergueu a cabeça, revelando a chinchila que descansava entre seus cabelos.

— Oi querida. Seu pai pediu que você acordasse. — A atriz respondeu, segurando na mão da garota.

— Quem são essas pessoas?

Antes que Michelle pudesse responder, Natasha sorriu para Ester, dizendo:

— Sou amiga do seu papai. Meu nome é Natasha, mas pode me chamar de Nat, e esse é o Max. — Atrás da escritora, o homem acenou, dando um meio sorriso. A intenção do casal era manter uma impressão solene para a pequena filha de Alfa.

Na cozinha, Alfa andou lentamente na direção da porta dos fundos. Aberta, ela batia com força na parede várias vezes, deixando que o vento frio da noite entrasse com força no cômodo. Alisson entreolhou-se com o loiro, com um aceno de cabeça.

— Essa porta estava destrancada? Que droga! — Alfa bateu o punho na parede. — Ômega eu pedi que tomasse todas as precauções e trancasse todas as portas!

O irmão do cineasta chegou com uma expressão de resignação, os ombros encolhidos e o cenho franzido. Ele não lembrou de trancar a porta dos fundos, vide que o quintal era protegido por um muro, ele não imaginou que alguém pudesse pudesse pulá-lo. Um infectado furioso sim, puta que pariu! Ulysses olhou para o irmão como se quisesse se defender do erro, mas Alfa não queria mais explicações.

Neste momento em que ouviram mais um barulho vindo do andar de cima.

Alfa segurou a chave de roda em suas mãos com força e voltou ao corredor, vendo a escada que daria para o primeiro andar. Ômega verificava o quintal. Alisson andou apressadamente até a cozinha e tirou uma faca do faqueiro em cima do balcão e voltou ao seu posto. Natasha e Max se entreolharam com Rafaela e Michelle. A atriz pegou na mão de Ester e pediu que ela lhe acompanhasse. Então, Mimi afastou-se dos demais, levando a menina para mais próxima da porta, puxando assunto sobre filmes infantis. A menina parecia não dar a mínima para o que a loira falava.

Max puxou a mão de Natasha para ambos irem na direção de Alfa e Alisson. O homem estava visivelmente disposto a ajudá-los, mas a escritora interceptou-o. Ela olhou-o no fundo dos olhos, o olhar mais temeroso que Max tinha visto em todo esse tempo com Natasha. A também estudante de direito só estava com receio de que Max viesse a se machucar.

— Vamos esperar a Alisson e o Alfa, eles sabem o que estão fazendo.

— Nat, eu não quero deixá-los sozinhos nessa situação, eles precisam da nossa ajuda. — O desenhista desvencilhou-se da namorada com um movimento premeditado e deu passos céleres em direção da escada.

Natasha correu e o ultrapassou, pondo a mão em seu peito. Barrou sua passagem, dizendo em tom de frustração:

— Eu posso ajudá-los, tome conta da Rafa por mim.

— O que está acontecendo, Nat? O que está tentando fazer?

— Te proteger! — A negra não tirava os olhos do olhar do namorado. — Eu não quero que se machuque! Você pode… — A escritora travou as palavras para sair da frente do homem. Baixou a cabeça e desistiu de tentar argumentar. Ela estava fazendo tudo errado.

Max aproximou-se de imediato da namorada, erguendo seu queixo com uma mão, fazendo com que os dois ficassem com os rostos frente à frente. Mesmo assim, desta vez, Natasha preferia não manter o contato visual, não conseguiria olhar Max do mesmo jeito. Ela estava sentindo-se estranha, o medo de perder seu amor era maior do que qualquer outra coisa. Seu único desejo era protegê-lo. A sensação do perigo iminente rodeando Max trazia à tona pesadelos que Natasha queria eliminar da mente. Ele é tão frágil, é tão sensível… É como um anjo de vidro… Preciso resguardá-lo das coisas que podem lhe ferir...

— Ei, Nat, eu vou ficar bem, ok? — O desenhista depositou um beijo nos lábios da negra, abraçando-a de maneira firme. Aquele gesto acalmou a escritora por alguns segundos, não foi o suficiente para livrar dela aquela aflição. Meu anjinho de vidro, eu vou te guiar, não se preocupe. Nada de ruim vai te acontecer, eu prometo!

Alisson gritou, assustando o casal, que correu de maneira frenética na direção da escada. No exato instante em que chegaram, Alisson foi arremessada na parede oposta do corredor, atingindo um quadro com força. A morena tombou para o lado, os cacos de vidro escorregaram em seus cabelos. Ela gemeu de dor na tentativa de levantar.

Natasha apressou-se para erguê-la. Max pegou a faca no chão e subiu os degraus. No meio da escada, Alfa estava sendo atacado por dois infectados. A mulher parecia estar em melhor estado que o homem barbudo. Ela tinha os cabelos desgrenhados e olhos em chamas, mas não apresentava feridas no rosto, como o outro, e rosnada feito um animal enfurecido. Avistou a presa segurando a faca e pulou imediatamente em Max. O desenhista rolou escada abaixo, segurando firme a faca. A infectada grunhiu quando bateu as costas no chão.

— Max! — Natasha gritou.

Alisson viu tudo de onde estava. Rafaela soltou um gritinho abafado e correu para próxima da porta, onde Ester estava abraçada à Mimi, assustada.

Max arregalou os olhos para Natasha, que aproximou-se e viu que a faca estava cravada no peito da mulher. A cabeça da mesma tombou para frente e Max saiu debaixo dela no segundo seguinte. Ele e Natasha se abraçaram. Rapidamente a escritora viu o sangue manchar a blusa do homem.

— Tira a blusa agora! O sangue… Tira!

O desenhista logo tirou a vestimenta e suspirou de forma pesada, vendo Alisson sentada em um canto, retirando os estilhaços de vidro do cabelo e fazendo uma careta de dor. Foi até ela, já Natasha foi até a cozinha e jogou a blusa do namorado no cesto de lixo.

— Alfa, evite o contato com o sangue ou qualquer secreção dele! — Alisson alertou.

Na escada, Alfa socou o segundo infectado, que bateu o rosto na parede e grunhiu. As feridas pareceram estalar. A baba saltou da boca. Em seguida, o loiro segurou a cabeça do barbudo e atingiu-a na parede três, quatro, cinco vezes. Até vê-lo tombar nos degraus. O sangue manchara o azul da parede. Estirado, ele debateu-se por alguns segundos, até cessar. O cineasta desceu os degraus de dois em dois, em questão de segundos.

— Precisamos sair daqui agora! Eu acho que tem mais deles lá em cima, ouvi barulhos. Talvez dois ou mais, não podemos mais arriscar. Essas merdas vão espalhar o vírus e nós não seremos condutores disso!

— Mano, me desculpa por não ter trancado a porta. — Ômega disse, fechando a mesma, tentando se desculpar. Se ele não fizesse aquilo naquele momento, não o faria mais.

Alfa nada respondeu, apenas bateu em seu ombro e acenou positivamente. Foi até Alisson, tocando seu rosto e verificando se estava tudo bem. Ela tinha um corte no braço, entre as tatuagens. O loiro fez um curativo rápido para evitar infecção. Em seguida, olhou além do corredor, visualizou Mimi com Ester nos braços e sorriu agradecido pela pequena estar bem.

Ester não teria o mesmo destino da mãe. Não se dependesse dele.

XXXXX

Debora analisava cada centímetro da boate Cicciliona, após a invasão de infectados, que quase acarretaram sua própria morte. Uma das gaiolas ainda estava em uma parte do lugar, depositada longe das demais. Era uma lembrança que Debora queria afastar da sua cabeça o mais rápido possível. Embora já tivessem passado duas semanas desde que ela despencou junto com o objeto dourado que pendia no teto da boate, as marcas e cicatrizes psicológicas machucavam sua mente. Desde aquela noite, Debora vem tomando decisões bastante precavidas, procurando sempre preservar a si e as suas garotas. Enquanto a quarentena não acabasse, o Cicciliona não funcionaria. Seria suicídio coletivo.

Chegou a se perguntar se tivesse seguido com a carreira em direito, como seria a vida das suas companheiras? Das garotas que ela considerava da própria família? Tipo amor de mãe e filhas. De Kátia, principalmente, sua melhor amiga, a quem tanto amava. Como seria a vida de sua mãe e de seus seis irmãos? Já que o pai morrera brutalmente em um acidente de trabalho e eles nem sequer receberam indenização da empresa, quando a causa aberta na justiça fora perdida. A justiça não fora feita e Debora sentia muito pela morte de seu pai ter se tornado apenas estatísticas de acidentes de trabalho. Que eles estejam bem fora desse inferno, pensou.

Neste momento ela encarava a si mesma em um grande espelho do bar do espaço. Os olhos castanhos escondidos atrás das lentes de contato verdes encaravam a figura refletida da loira entristecida. Ela podia ver os sinais próximos dos lábios, o corpo alto e esguio, o rosto lapidado, as suas panturrilhas torneadas das caminhadas aos sábados pela manhã — os quais ela não teria mais chances de fazer —, os lábios finos repetindo seu nome. Debora estava farta de toda aquela situação posta à Cabo. Os quarenta dias presos na redoma de sangue e caos estava deixando sua estima abalada. Porém, sobreviver tinha sido o bastante. E Edmundo fora como um amigo de longa data, daqueles que possuem aroma de saudades. Juntamente de Kátia o homem lhe ajudara depois do acidente, dando todo o apoio que ela precisava. Ah, Ed… O suspiro veio como consequência.

A loira aproximou-se da gaiola de forma elegante, sem pensar duas vezes, chutou um de seus suportes e o objeto virou, caindo e fazendo um barulho ensurdecedor devido às hastes de metal. Deu um riso nervoso e em seguida, o sorriso transformou-se em um choro copioso e sem precedentes. Logo, o choro fora interrompido pela voz imponente de Kátia que havia acabado de chegar ao salão principal. O batom da mulher estava mais chamativo que em dias comuns, o cabelo longo e solto, e um vestido simples. Sua face foi iluminada por uma das luzes estroboscópicas violetas do ambiente, destacando as maçãs de seu rosto bastante marcadas. A melhor amiga da magnata sentiu pena do estado em que Debora se encontrava. Não pensou duas vezes e envolveu-a em um abraço apertado e demorado. Deu-lhe um selinho amigável, para afagá-la e aninhá-la em seus braços. A sócia da boate simplesmente desabou em lágrimas.

Tema [https://www.youtube.com/watch?v=xo1VInw-SKc]

Like a small boat

On the ocean

Sending big waves

Into motion

— Onde está a Deborão que conheci? A mulher mais forte e resiliente de Cabo da Praga? A pessoa mais confiante de si? Cadê minha imperiosa? — Kátia falava ao pé do ouvido.

Debora engoliu o choro de uma vez e olhou além do salão. As gaiolas eram iluminadas pelas luzes que dançavam no ambiente. A loira fechou os olhos e pousou o queixo no ombro da melhor amiga. Apesar de ter ganhado o título de magnata das ruas, devido ao seu trabalho extracurricular atrelado à Cicciliona — atuando na vida da maioria das garotas de programas do distrito —, ela nunca gostou desse posto. Ela gostava de lidar com tudo, de poder liderar e manter a ordem da situação, a justiça, mas ela sentia necessidade em ser frágil de vez em quando. Toda a trilha que percorreu até aquele ponto tinha sido dura e difícil e ela não se gaba de tal feito, simplesmente se orgulha por ter vencido à maneira dela. E Kátia conhecia seu passado, inclusive conhecera Dennis.

Like how a single word

Can make a heart open

I might only have one match

But I can make an explosion

— Eu não quero ser sempre forte, Ka. — Debora balbuciou. — Quero poder chorar quando sentir franqueza, quero pode cair ao chão, quando não tiver mais forças para ficar de pé.

— Oh, Deborão… Você pode chorar sim, desabe como nunca, chore tudo o que não chorou em todo esse tempo. Estou aqui contigo, eu e as garotas te amamos, você é como uma mãe pra gente e sabe disso, é nosso amor eterno! — Quando deu por si, Kátia também chorava, entre sorrisos desconcertados. — Olha o que você tá fazendo comigo, garota? Traz a vadia que vive comigo de volta!

And all those things I didn't say

Wrecking balls inside my brain

I will scream them loud tonight

Can you hear my voice this time?

Então, Kátia Flávia deixou que Debora caísse de joelhos, e mesmo assim, não deixou de segurá-la. Os soluços não impediram que as duas se desgrudassem. A vadia sensível sempre se escondeu atrás da vadia imponente. Dennis de Carvalho Branco, rapaz que teve que vender seu corpo para tirar a família do buraco no qual estava afundando, trauma causado pelo suborno feito a um advogado. O mesmo rapaz que após se certificar que a mãe e os irmãos estavam bem, cresceu na vida e decidiu mudar o rumo das coisas de maneira irreversível. Algo que estava enraizado nele desde o nascimento, só precisava de um empurrão. O pato tornou-se um lindo cisne. Um cisne que atendia pelo nome de Debora e que estava pronto para fazer do córrego sujo que um dia fora sua vida, um lago límpido e cintilante. O pato que virara cisne, a tempestade que virara bonança, a morte certa que virou nova vida.

This is my fight song

Take back my life song

Prove I'm alright song

My power's turned on

(Starting right now) I'll be strong

Mais uma vez, Debora só precisava de um empurrão. E esse empurrão chamava-se confiança. Funcionaria como uma espécie de Lei de Murphy reversa. Se ela teve que viver, se tudo deu certo para ela, era porque melhoraria. Elas só precisava acreditar.

I'll play my fight song

And I don't really care if nobody else believes

'Cause I've still got a lot of fight left in me

(Fight Song - Rachel Platten)

— Obrigada, Ka. Eu não sei nem como agradecer. — Disse a magnata limpando as lágrimas.

— Mas eu sei. — Kátia sorriu maliciosa. — Pega o celular e liga pro charmoso do Ed, ele vai te fazer um bem danado.

— O quê? Eu e Ed somos apenas amigos! Tá louca, garota?

— Você não disse que queria despencar? Despenca nos braços dele, ué! Eu notei que enquanto ele tratava dos seus arranhões e hematomas, ele estava dando muita bobeira, mostrando muito interesse em ti. — Kátia disse, virando-se para a gaiola. — Se joga logo, amiga!

— Eu não sei… Eu…

— Você vai sim! Se não tomar a inciativa, pode deixar comigo!

— Ka, às vezes você parece uma filha mimada e birrenta que nunca tive. — Debora comentou, rindo e encarando a gaiola também. — Hora de se livrar disso.

— É pra já, mamãe! — Kátia brincou.

Debora pôs as mãos na cintura e abriu um largo sorriso.

XXXXX

Maria estava trancada em um dos inúmeros consultórios pediátricos no principal centro clínico para atendimento materno da cidade, o Hospital Nossa Senhora de Fátima. Depois do que houve com o Hospital Geral Querubins, as equipes do departamento de descontaminação enviadas pelo governo foram mandadas até lá e acabaram por interditar o edifício. Foi aí que Gigi, diretora do Querubins e mãe de Maria, transferiu-a para o centro clínico.

A noite fria embalava o clima dentro da unidade e a médica organizava alguns exames de pacientes recentes sobre a mesa. Mesmo em meio a toda a bagunça da cidade, ela encontrava espaço para praticar seu lado organizada, que era bem forte. Ela sabia que os doentes precisavam de seus serviços mais do que nunca, agora que estavam todos concentrados dentro da cidade e a taxa de exposição à diversas doenças aumentara, além do próprio Plaga Vírus.

A última coisa que Maria queria, era trancar-se dentro de sua casa e esperar que os dias passassem sem que pudesse exercer o que fazia de melhor: ajudar as pessoas. Seria sua última opção. Não tinha um coração de pedra, sangue de barata ou qualquer outra metáfora usada para alguém desalmado. Era uma médica e possuía essa chance. Ela tinha certeza que seria mais útil trabalhando pela saúde, do que trancafiada em um calabouço por livre e espontânea pressão. Ciente dos riscos, ela já decidira. Seu lugar era ali.

Da janela de vidro do consultório que dava para o corredor, ela pode ver homens carregando caixas e novos equipamentos de ultrassonografia e ressonância magnética para uma ala em reforma. Maria voltou a dar atenção à papelada sobre a mesa e apoiou a cabeça no braço, sentindo uma enxaqueca se aproximando. Abriu sua bolsa e de lá retirou um analgésico. Foi até o bebedouro e pegou um copo de água, tomando um gole junto do remédio.

De repente ouviu um estrondo. Assustou-se e deixou o copo escorregar num espasmo. O resto da água molhou o piso, Maria não ligou. Correu até a porta e abriu-a, dando de cara com um enfermeiro.

— O que aconteceu? — A médica perguntou.

— Parece que uma parte do chão da ala em reforma cedeu e uma banheira de hidroterapia despencou no andar de baixo. — Ele respondeu prontamente.

Maria pôs a mão no peito em resposta.

— Que horror! Alguém se machucou?

— Não se preocupe, a ala está interditada e os homens dos equipamentos novos não tinham chegado até lá. Graças a uma das caixas que rasgou e eles tiveram que parar, não é irônico?

— Seria se a situação não tivesse sido tão trágica. — Maria passou a mão na têmpora, o analgésico não demoraria tanto para agir. — Obrigada.

O enfermeiro acenou e continuou. Maria entrou e fechou a porta atrás de si. Uma lâmpada piscou no corredor.

A descendente de indianos voltou a sentar-se e arrumou a papelada. Ao guardar os exames em uma pasta, Maria se deparou com a sua caixa de pertences. Ela não havia arrumado tudo no consultório ainda, de modo que algumas coisas ainda permaneciam ali dentro. A mulata pegou os retratos embalados em plástico-bolha e analisou as duas fotos. Em uma delas, Maria estava em sua festa de quinze anos, ao lado da família adotiva: Gigi e Lorenzo, seus pais, e Kaique, o irmão caçula; a debutante franzina usava um lindo vestido verde-esmeralda. Já na outra fotografia, Maria era apenas um bebê de três anos, tirada pouco tempo antes dela ser separada violentamente do casal sorridente com ela nos braços.

XXXXX

Tema [https://www.youtube.com/watch?v=Q5Yhk0tbrZA]

Outubro de 1987

Dia de grande fluxo de pessoas em um dos camelódromos mais famosos da Comunidade da Cuíca, antiga favela da Baixa Praga. Ao lado do lugar que acomodava os camelôs, estava um estabelecimento simples, de culinária indiana. A freguesia não havia começado a chegar ainda, de modo que os donos do Restaurante Ganesh brincavam com a filha de três anos, próximos ao balcão. O homem, Aarav, acabara de chegar do mercado, com produtos novos para aumentar o cardápio, quando encontrou sua esposa Parvati, com a pequena Maria Raja no braços. A criança de cabelos negros, pele mulata e olhos expressivos tinha três anos e sorria com poucos dentes. Ela tinha puxado a maior parte dos traços da mãe, os delicados do rosto e o sorriso principalmente.

You are my waking dream

You're all that's real to me

You are the magic in the world I see

You are in the prayer I say and

You brought me to my knees

A mulher vestia um lindo sari amarelo e estava coberta com jóias. Apesar de ter se mudado há mais de três anos para o Brasil, ela procurava preservar sua cultura o máximo possível. O marido também conservava um bigode característico de indianos mais maduros. Eles eram um casal bastante feliz. Parvati veio grávida ao país e realizou o parto já em terras brasileiras, e foi assim que decidiu dar um primeiro nome brasileiro à filha. Maria fora o nome escolhido, por causa da Virgem Maria, a qual ouviram falar ainda na maternidade. Além disso, Parvati achou que a filha se adaptaria melhor no futuro, se possuísse um nome nacional naquele país. Uniu o útil ao agradável, simplesmente.

   

 

You are the faith that make me belive

Dreams on fire

Higher 'n' higher

A partir daí, o marido resolveu montar um estabelecimento que trouxesse a cultura de seu país para o lugar e montou o humilde restaurante, atraindo uma considerável freguesia, com comida diferenciada a preços acessíveis. Eles estavam aparentemente muito bem, até aquele dia.

Passion's burning

Ride on the path

Once for forever yours

In me

All your heart

Dreams on fire

Higher 'n' higher

Aarav percebeu que Parvati estava com o rosto diferente.

— Are, Parvati, o que você tem?

— Nahim, marido. — Tentou contornar a situação, mudando de expressão. Mas ele já notara. — Nada, não é nada.

— Are baguandi! Pode falar, deve falar o que sente. — Ele passou a mão em seus cabelos escuros.

— É que… — A indiana engoliu algumas palavras. — Eu quero ir embora desse lugar. Não será bom para nossa Maria crescer aqui.

— Are, o que houve?

— Todos os dias há violência, confusão, pessoas com medo. Eu também tenho medo, marido. — Murmurou.

Aarav abraçou a esposa, que fitou a imagem de Virgem Maria em meio às estatuetas de Ganesha, Laksmi e da própria deusa indiana Parvati.

— Parvati, Aarav está aqui com você não está? Vou proteger a nossa família.

Quando deu por si, Parvati não avistou Maria.

— Marido, onde está nossa filha?

O homem coçou a barba e olhou em volta. Nenhum sinal da garotinha. Parvati desesperou-se e correu entre as mesas de madeira do restaurante. Aarav procurava do lado oposto, mas acabou vendo Maria engatinhar para fora do estabelecimento. O homem correu e avisou Parvati, que também foi para fora. A mulher pegou Maria nos braços e abraçou-a forte.

You are my ocean waves

You are my thought each day

You are the laughter from childhood games

You are the spark of dawn

You are where I belong

You are the ache I feel in every song

— Maria, nunca mais faça isso com sua mamadi, está ouvindo? Sem você sua mamadi teria coragem de se atirar no poço, sabia? — A indiana abraçou a criança de maneira forte, como se pressentisse algo ruim se aproximando.

Foi em questão de segundos. Ouviram o primeiro tiro ecoar e logo em seguida, mais dois. Pessoas começaram a correr e Aarav olhou para a ladeira principal do morro. E então vieram o quinto, o sexto... Traficantes desceram às pressas, atirando contra policiais. E os mesmos revidavam sem precedentes.

— Corra para dentro, Parvati, rápido! — Aarav gritou.

Mas o indiano não teve tempo de fazer o mesmo que a esposa. Um dos tiros atingiu o peito do homem, que cambaleou. Mais dois tiros atingiram seu abdômen conseguintemente. O sangue não tardou em tingir sua vestimenta. Aarav tombou, o corpo estirado caiu nas escadas do Ganesh. Ele ainda arquejava.

Dreams on fire

Higher n higher

Passion's burning

Ride on the path

Once for forever yours

In me

All your heart

Parvati gritou, vendo o marido caído. Ela correu e trancou Maria Raja dentro do quarto da garotinha. Rapidamente voltou na direção de Aarav, chamando pelo seu nome, engasgando-se nas próprias lágrimas. A mulher suplicava para que eles respondesse, mas o corpo agora inerte e ensanguentado não dava mais respostas. Ela encostou a cabeça no peito do marido e tentou arrastá-lo para dentro, mesmo correndo o risco de trazer o corpo morto. Mas ela só estava interessada em tirá-lo dali.

Parvati só não esperou que mais gritos e tiros soassem como trovões em seus ouvidos. A bala chegou cortando o ar num estouro e acertou seu pescoço, rasgando-o feito papel. Parvati arregalou os olhos e sentiu o sangue quente descer pelo colo e peito, colorindo de rubro seu sari. O último sopro de vida da indiana foi pensando na pequena Raja.

Que os deuses te protejam… Que a Virgem Maria te proteja.

Os dois indianos ficaram ali na escadaria, abraçados sobre a poça de sangue. O elo do casal era tão grande, que nem a morte pode separá-los. Do outro lado da porta do quarto, Maria estava sentada no chão, sem entender nada, apenas chamando pela mãe.

Dreams on fire

Higher 'n' higher

(Drems On Fire - Slumdog Millionaire Soundtrack)

XXXXX

 

 

Novembro de 2015

Alfa chegara mais cedo da produtora e estranhou Samara não estar assistindo a Netflix, o que sempre estava fazendo àquele horário. O homem passou pela sala e notou que o jantar estava pronto, o cheiro pairava no ar, mas nenhum sinal da esposa ou da filha. O silêncio dominava a casa e o loiro colocou a bolsa transversal que usava calmamente na poltrona da sala. Chamou pelas duas, mas não obteve respostas. O som do vento entrando pela janela era o único som ambiente.

Alfa começou a subir os degraus para o andar de cima lentamente. Quando chegou ao topo da escada, ouviu um chiado, como água batendo no chão. Um chuveiro. O cineasta andou pelo corredor e entrou em seu quarto, o som aumentou. Ele encontrou a porta do banheiro aberta, a luz do cômodo iluminava parcialmente o lugar e o loiro entrou, encontrando Samara embaixo do chuveiro, cantarolando uma música bem baixinho.

— Cheguei, amor! — Disse ele, de frente para o espelho, vendo a silhueta borrada da esposa atrás da parede de vidro do box, através do reflexo.

— Que susto! — Samara ensaboava-se. — Achei que chegaria mais cedo hoje.

— Eu tive que supervisionar a Joyce e o Yuri, eles estavam preparando um pequeno teaser para o nosso próximo projeto, o da superstição grega, lembra? — Alfa abriu a torneira, fez uma concha com as mãos e molhou o rosto.

— Claro. É um projeto lindo mesmo! Começamos próximo mês, certo? — Samara sabia, era só mais uma pergunta recíproca.

— Certo. — Alfa respondeu. — Cadê a Esterzinha?

A loira fechou os olhos sob a água morna do chuveiro.

— Ela ficou assistindo, você não viu ela?

— Não tem ninguém na sala. Tá tudo calmo. — Demétrio comentou para si e logo saiu do quarto.

O homem andou mais um pouco no corredor, o barulho do chuveiro foi diminuindo e dando espaço novamente ao silêncio sepulcral da casa. Ao entrar no quarto da filha, ele encontrou as luzes apagadas, com exceção da luz da lua que invadia o cômodo pela janela aberta. As cortinas rosas balançavam e levavam o olhar do loiro até o canto do quarto, onde uma silhueta se esgueirava pela parede.

Alfa estranhou o movimento e se aproximou lentamente. A cortina bateu mais uma vez nas costas da silhueta e o homem encarou a figura da filha séria, olhando estática para a parede. A garota baixou a mão e elevou o olhar para o pai, que estava diante dela. Ester largou o giz de cera logo em seguida.

— Querida, o que está fazendo? — Ele ajoelhou-se na frente da menina.

Instantaneamente, como se acordasse de um transe, Ester piscou os olhos três vezes e sorriu, estava feliz de vê-lo.

— Papai! — Ela o abraçou. — Que bom que chegou! Eu tenho um presente!

Então, a menina correu pelo quarto e pegou uma folha de papel de cima da pequena estante. Entregou-a ao pai, que observou o desenho colorido. Ester chegou perto e apontou para a folha.

— Veja, esses são você, a mamãe, eu, o tio Ômega e… — A garota não completou. Olhou para o pai, como se estivesse esperando que ele lhe dissesse quem era.

— E quem? Quem é essa mulher? — Alfa perguntou.

O desenho não era tão revelador, mas pelos rabiscos, Demétrio via uma mulher baixa e de cabelos grisalhos. Ela estava toda vestida de preto e o chapéu de mesma cor cobria o rosto. O homem franziu o cenho.

— Quem é essa, Ester?

A menina não sabia o que responder.

— Eu… Não sei o nome dela. — Ester aborreceu-se. — Mas ela me disse que gosta muito de mim.

Nesse momento, Samara chegou no quarto e apertou o interruptor. As luzes se acenderam de imediato e ela entrou no quarto rapidamente, olhando para a parede.

— Ester, o que significa isso?

Alfa virou-se para olhar e ficou estóico com o que viu. Ester sentou na cama com o desenho no colo, observando a reação dos pais um pouco confusa. Na parede, com a letra da garota estava escrito inúmeras vezes de giz vermelho:

“Estou aqui”

Um frio passou pela espinha de Demétrio, que fitou a janela aberta sem saber como reagir. Logo, lançou um olhar para Ester, que agarrava o desenho completamente confusa.

— Por que você fez isso? — Ele perguntou. — Riscou a parede toda.

— Não fui eu. — A menina rebateu.

— Não adianta negar, é a sua letra, Ester!

— Amor… — Samara tentou interrompê-lo.

— Não vai dizer por que fez essa brincadeira de mau gosto? — O homem alternava entre olhar a face complacente da garota e os rabiscos na parede.

— Demétrio…

— Não fui eu! Foi ela! — Ester rebateu mais uma vez, referindo-se à outra pessoa.

— Vai continuar insistindo nisso? — Perguntou ele, impaciente. — Então, você está de castigo!

— Demétrio! — A voz de Samara ecoou dentro do quarto como um trovão. — Não vê que ela está com medo?

O loiro suspirou, olhando para as duas e saiu do cômodo em passos pesados. Samara foi até onde a filha estava e se sentou ao seu lado. A menina olhava para baixo. Balbuciou:

— Eu não estou mentindo. Foi ela quem escreveu. — O olhar de Ester transmitia total pureza e sinceridade. — A mulher de preto, ela estava aqui comigo.

O coração de Samara acelerou, mas não queria demonstrar para a pequena. Já de pijamas, Ester deitou no travesseiro, sua mãe pegou e guardou o desenho, após dar uma olhada nele. Ela não teve coragem de desacreditar na filha, mas primeiro, precisava conversar a respeito do assunto com Alfa.

— Está na hora da donzela ir dormir. — Samara sorriu com ternura.

Ester retribuiu o sorriso, mesmo parecendo distante. Samara cobriu-a.

— Boa noite, querida.

— Boa noite, mamãe.

No instante em que sairia do cômodo, Samara viu Alfa parado na porta.

XXXXX

15 de Janeiro de 2016

O carro de Alfa estava estacionado em frente à residência de Natasha e Max. O casal sugeriu que eles ficassem por um tempo lá, até conseguirem uma nova moradia. Eles concordaram, já que não tinham onde ficar. A casa de Alfa estava acolhendo uma família de infectados, eles não poderiam correr o risco de entrar em contato com o vírus assim tão de perto. Ele preferia cuidar da segurança da filha, do irmão, da atriz que contratara e que estava passando por essa situação, além dos demais. Neste momento, ele estava na companhia de Alisson, no alto do prédio.

A morena balançava as pernas no ar e a brisa chacoalhava seus cabelos. Ela sorria a cada olhada do cineasta, de modo que suas covinhas nas bochechas ficavam amostra. O vento zunia no ouvido de ambos. Demétrio olhava a fumaça ao longe.

— Olhando daqui, nem parece tanto que a cidade está sucumbindo. — Alfa fez uma observação.

— Só de pensar que eu poderia estar longe daqui uma hora dessas… — Alisson retrucou e fechou os olhos. — Que nós poderíamos estar longe daqui. — Corrigiu.

— Se eu pudesse voltar no tempo, talvez conseguisse isso. Pena que não dá pra reverter nada.

Alisson sabia do que o loiro estava falando. Ele dizia aquilo por causa da esposa.

— Eu sinto muito. — A morena passou o braço pelo ombro do homem.

— Obrigado. — Ele respondeu, encolhendo os ombros no abraço da mulher. — Isso me faz pensar se o que disse depois do acidente no túnel, sobre a tal possível lista da morte, vai acontecer de fato conosco. Samara saiu de lá e morreu pelo vírus logo depois. Agora eu sou pai e mãe da Ester.

— Faz sentido, nós sabemos que aquele homem teve uma premonição e que saímos de lá antes da destruição total do túnel. — Alisson comentou. — Eu não me surpreenderia. Já fazem três semanas desde o acidente. Se a lista foi desencadeada, alguém já deve ter morrido.

O cineasta fechou os olhos.

— São muitos problemas e nenhuma solução. — Ele respirou pesadamente.

— Não se culpe pelo que houve, Alfa. — Alisson acariciou os cabelos dele.

Demétrio encarou-a, seguindo o movimento de seus lábios. Ele achava os lábios e olhos felinos de âmbar penetrantes. Era como se ele se sentisse despido pelo olhar dela. Sentia-se inevitavelmente atraído pela sócia. Desde a primeira vez que conversou com Alisson, sabia que eles compartilhavam de muitos gostos e sonhos em comum. A conexão fora imediata.

O loiro seria cuidadoso, aproximou o rosto lentamente da morena e deu uma parada. Ele não conseguiria fazer aquilo, uma parte de si dizia “vai!” e a outra, “recue!”. Alisson já tinha entendido a situação e riu.

— O que está fazendo?

— Não é nada, é que...

— Complicado. — Retrucou ela. Compreendia completamente o que se passava. Ele perdera a mulher que mais amara no mundo, estava confuso. Então, preferiu olhar para frente de novo. — Você está certo em pensar duas vezes.

Alfa segurou o rosto de Alisson, virando-o na sua direção. Ela encarou os olhos azuis acinzentados do produtor. Os seus lábios se uniram no segundo seguinte, num beijo rápido. Os dois separaram-se com um estalo. Com o rosto corado, ela engoliu em seco e se afastou, ficando de pé.

— É melhor não, você perdeu sua esposa há poucos dias. Você está em luto… Isso não poderia ter acontecido. — Alisson disse, pondo as mãos nos bolsos traseiros da calça.

— Eu não sei o que deu em mim, desculpa. — Alfa olhava as luzes dos prédios. — Na verdade, te acho atraente. Muito atraente, é isso.

— Não precisa se desculpar. — Ela respondeu, ignorando o que o loiro dissera por último.

Um insight fez Alisson lembrar do pesadelo macabro que tivera. No momento, ela só queria mudar de assunto, a torta de climão deixou a situação estranha. Ela também se sentia irreversivelmente atraída pelo cineasta, mas achava que estaria se aproveitando da carência e solidão do homem. Ele estava confuso e ela queria deixar que as coisas  tomassem rumo naturalmente.

Disparou:

— Sabe, Alfa, Eu tive um terrível pesadelo há algumas semanas. Não contei pra ninguém, porque não achei  necessário compartilhá-lo naquele instante. Porém, a verdade é que seu significado é maior do que eu imaginava.

— E o que você sonhou?

— Você estava morto. Você, Natasha e mais algumas pessoas. Eu creio que tenha sido um tipo de aviso. — O vento pareceu mais ameaçador agora. — Eu tenho certeza, pra ser exata.

O loiro ficou em silêncio por alguns segundos. Provavelmente refletindo sobre o que a morena dissera.

Foi aí que Rafaela abriu a portinhola do terraço e se aproximou correndo. Natasha estava logo atrás dela. A jornalista colocou o celular para que ambos pudessem ver melhor e eles olharam para as notícias que ela mostrava.

— Olha, gatão, Nat disse que era importante que eu viesse mostrar a vocês.

A negra atrás dela concordou com a cabeça e prosseguiu:

— Essa notícia é da noite em que estávamos no Lamounier. Thereza, a proprietária, morreu depois de cair de cara em uma máquina industrial. Aconteceu pouco depois da confusão que aconteceu na rua, saímos de lá antes dessa fatalidade. — A voz de Natasha emanava nervosismo, como se as possíveis imagens passasem em sua mente.

Alisson e Alfa se entreolharam, chocados.

— E essa? — O loiro perguntou, apontando para a segunda notícia. — Lembro de ter visto em algum lugar.

— Um garoto caiu no trilho do metrô, não colhi tantas informações, mas as câmeras mostraram uma mulher tentando ajudá-lo, momentos antes do metrô… — Rafaela engoliu em seco.

Alfa baixou a cabeça. Bastou um olhar de Alisson na direção de Natasha, para que a escritora entendesse o que estava rodeando-os.

— Você também lembra deles naquele compartimento no túnel, não é? — Natasha perguntou.

A tatuada concordou, completando:

— A lista da morte está acontecendo.

XXXXX

16 de Janeiro de 2016

Diana corria em passos trêmulos na direção do apartamento de Mariana, sua amiga. Ela fugia de dois infectados, que pareciam drogados a primeiro momento, mas em questão de segundos, assim que bateram o olhar nela, começaram a despejarem a babá pútrida e apresentarem a maioria dos sintomas do vírus da praga egípcia. Era o nome dado ao Plaga Vírus pelo senso comum e Diana o vira pela internet. A rede oscilava, e Cabo da Praga estava prestes a ficar incontável do mundo, Diana temia muito pela vida quando ficassem incomunicáveis. Ela estava sozinha, agora que Gustavo se fora e que se perdera do grupo de Mia e Ellen na mesma noite da morte do homem na garagem. Não dera tempo nem de se conhecerem mais.

Diana entrou no prédio onde ela e Mariana moravam. Encontrou pedaços de madeira espalhados pelo hall de entrada e pólvora nas paredes. Subiu a escada espiral, batendo os pés rapidamente e respirou fundo quando chegou ao topo. Deu uma olhada para baixo, na esperança de não ver nenhum dos dois infectados. Eles não haviam entrado e Diana agradeceu a Deus por isso.

Quando chegou ao apartamento, a dubladora encontrou a porta escancarada. Lascas de madeira jogadas pelo piso, que ela concluiu serem da porta. A maçaneta caiu do trinco e fez um tilintado abafado. Diana recolheu o objeto ligeiramente e entrou no quarto, avistando um guarda-chuva ao pé do sofá. Armou-se com o objeto e seguiu pelos cômodos escuros. A iluminação de Cabo também ficava a cada dia mais instável.

Diana conferiu todo o apartamento e se agilizou em barrar a porta com algum móvel, mas antes que ela pudesse fechá-la, ouviu gritos diferentes da rua. Correu até a janela e olhou lá para baixo, avistando um casal de pessoas se defendendo dos dois infectados que a seguiam. A dubladora gritou, chamando a atenção dos quatro. Ela jogou o guarda-chuva para o rapaz.

— Subam, rápido!

O rapaz acertou o guarda-chuva no rosto de um dos infectados, que caiu no asfalto, grunhindo. Ainda de pé, o segundo infectado rosnou como um cão feroz para a mulher de batom escuro, que socou seu maxilar. O infectado gemeu em resposta e avançou novamente, recebendo mais um golpe do guarda-chuva.

— Cuidado!

A ponta do objeto perfurou seu globo ocular. O jato de sangue quente espirrou imediatamente, fazendo-os recuarem chocados. O infectado tombou para o lado, escorregando seu corpo pela parede, tendo o rosto empapado no sangue.

O homem loiro segurou a mão da parceira e entraram rapidamente no prédio. Diana deixou que eles adentrassem depressa e fechou a porta. As duas mulheres barraram a mesma, após empurrarem o sofá.

Sobrecarregado de adrenalina, o jovem largou o guarda-chuva e vomitou no canto da sala, enquanto a mulher encarava Diana com desconfiança.

— Eu conheço você. — Ela disparou. — É a moça da bicicleta amarela.

— Você ainda lembra de mim… — Diana murmurou e pós uma mecha do cabelo atrás da orelha. — Eu também lembro de vocês dois. O casal que me ajudou quando eu estava em apuros.

A mulher pálida de cabelos negros usava um batom escuro, uma jaqueta sobre uma blusa tomara-que-caia roxa e uma calça preta. Enquanto o rapaz usava uma blusa frouxa e calças jeans surradas.

— Prazer, meu nome é Diana.

— Eu me chamo Sabrina e esse aqui é o Thiago.

Diana foi até o loiro, que sentou no tapete e se encostou na parede. Ele limpava a boca.

— Tá tudo bem, Thiago? — A dubladora perguntou, preocupada. Ela viu como ele ficou exposto ao sangue do infectado.

O sociólogo meneou positivamente. Entretanto, logo desistiu de mostrar que estava tudo bem e chorou. Muitas coisas rondavam sua mente naquele momento.

XXXXX

O corpo de Renan estava estirado sobre o tapete da sala da casa de dois andares de Ísis. A loira não estava em casa, tinha saído com Valentim, o ruivo. Eles haviam ficado muito mais próximo do que o barbudo esperava. Embaixo da cabeça dele, um travesseiro pousava, apoiando também seus pensamentos. Renan estava afundando no silêncio afim de obter alguma resposta. Chegou a procurar a sua psicóloga, Doutora Soave, mas a mulher estava com muitas consultas marcadas, a vida dela tornou-se ainda mais corrida e o homem não conseguiu falar com ela, porque ele entendia o lado dos outros moradores de Cabo. Quando a loucura se faz presente, o louco age naturalmente, o pensamento ecoou na mente dele.

Fazia meia-hora que Renan estava paralisado, de olhos fechados. Sem ter ideia de que conseguiria fazer a regressão de memória sozinho. Doutora Soave era a única que tinha essa capacidade latente, de modo que ele não estava nem um pouco confortável com ter que depender dele mesmo para isso.

— Droga! — Ele bateu o punho contra o chão, bufando.

Virou o corpo de lado e encarou o sofá. Nada estava dando certo. A lua escondia-se timidamente atrás das nuvens que anunciavam a chuva, o cômodo mergulhou no ébano. Na cabeça de Renan, vinham todos os tipos de lembranças indesejáveis, menos algo do seu passado que pudesse lhe ajudar a desvendar de onde viera. Conviver com uma única certeza — seu nome — era deveras, péssimo. Onde estava sua história? A cada dia, Renan convivia com uma dúvida, a de que ele encontraria a si mesmo. Tudo não passava de teorias, de resquícios e isso o destruía a cada tentativa de recordar.

O homem sentou. Uma sensação estranha tomou conta de seu corpo, começando por um formigamento nas pernas e nos braços, e então, ele começou a suar. Levantou depressa e apoiou-se no sofá. Ele sentiu as gotas de suor descerem pelo rosto, as bochechas arderem e a cabeça doer. Um barulho ensurdecedor apertou seus tímpanos, parecia carne batendo no chão, batidas molhadas. Logo depois, um barulho industrial característico e um grito feminino.

Renan caiu de joelhos no sofá, segurando a cabeça com força, ela doía de maneira terrível. A dor se espalhou pelo corpo, indo para seu abdômen, ele sentiu-o rasgando ao meio. Renan gritou, não sabia como parar a dor. Um zunido de abelha adentrou em seus ouvidos e ele dava leves tapas, na tentativa de espantar o ruído. Foi quando caiu de bruços no móvel e toda sua pele ardia, queimava. O suor molhava sua blusa. Suas pernas estavam dormentes, Renan olhou para elas desesperado. Não via nada, mas poderia sentir um peso de toneladas sobre elas.

Ísis abriu a porta da casa e jogou a bolsa sobre a mesinha de centro assim que viu o amigo passando mal, indo até o barbudo e lhe sacudindo. Renan continuava suando, afirmando que sua pele queimava intensamente. A loira não sabia o que fazer, então correu para buscar um copo de água. Voltou com ele e ofereceu para o homem, que bebeu, cuspindo um pouco.

Em seguida, Renan apagou completamente. O homem desmaiara nos braços de Ísis.

Minutos depois, houve um espasmo, o barbudo puxou o ar com força. Acordou embaixo do chuveiro. Olhou para o próprio corpo, estava gélido, suas roupas estavam encharcadas. Ele avistou Ísis abaixada ao seu lado, a mulher tinha um sorriso terno no rosto.

— Que bom que acordou. — A loira de vestido bandage preto estava visivelmente aliviada. Uma toalha permanecia pendurada em seu ombro.

— Ísis eu vi! — Renan segurou os braços dela, ele sorria como um psicopata. Os cabelos molhados caíam sobre os olhos arregalados e cheios de entusiasmo.

— O que viu?

— Vi um pedaço do meu passado! Finalmente eu vi!

— E então?

Renan olhou para a água ensopando sua blusa e sua calça. Ele tinha certeza de que ele vira alguém jogando-o em uma cela, e a pessoa deferia palavras relacionadas à porte de drogas. Em algum momento de seu passado, ele havia sido preso. Mas por outro lado, preferia não contar nada a ninguém sobre o que vira. Nem mesmo para Ísis, isso poderia lhe causar ainda mais problemas. Renan sabia que poderia confiar nela, assim como ela confiou nele desde a primeira vez que o viu, mas aquele não era um bom momento para contar. Fingiu um olhar confuso para a loira e murmurou:

— Na verdade, eu não sei muito bem o que vi. Foram só borrões. Desculpa. — A água continuava caindo.

Ísis não insistiu, fechou o chuveiro e deu a toalha ao amigo. Ela acreditava no elo entre eles, era tão forte quanto o de amigos ou irmãos.

— Obrigado por cuidar de mim. — A voz de Renan saiu rouca. A loira apenas abraçou-o, sem dizer qualquer palavra.

XXXXX

PARTE II: Instinto

17 de Janeiro de 2016

Um dos salões do Instituto Pyramid estava decorado para receber todas aquelas pessoas que transitavam e conversavam entre as mesas muito bem servidas. Muito além delas, um palco fora montado para o pronunciamento dos responsáveis por convocar aquela reunião de emergência. As pessoas que ali estavam, foram selecionadas a dedo para participarem da conferência. A reunião trataria do Plaga Vírus e do que poderia ser feito para controlá-lo. Os burburinhos não poderiam faltar entre os convidados, que cochichavam e compartilhavam suas experiências ao logo dos primeiros vinte dias da quarentena.

Donatella era uma das convidadas. A cirurgiã fora como uma das acompanhantes de Gigi. Usava um vestido da cor violeta até um pouco abaixo dos joelhos e um scarpan preto. Já Gigi, a loira imponente dentro do vestido branco, longo e deslumbrante, segurava uma taça de champanhe e também aguardava algum pronunciamento que desse início à conferência. Enquanto as duas permaneciam de pé, Maria estava sentada. Também fora como acompanhante da mãe, já que Gisele precisava de duas representantes do Hospital Geral Querubins com ela. Mesmo tendo sido transferida, a indiana fez questão de estar presente.

Ela verificava a sandália que usava, o calçado lhe incomodava um pouco. Ele nunca lhe dera desconfortos, mas passou a apertar seu tornozelo de forma estranha. Ao contrário do sari colorido que vestia e das inúmeras jóias (diversas bijus, já que Maria não fazia questão de jóias verdadeiras e caras) que estava acostumada. Ao lado dela, o filho de Donatella, Alfinn, brincava em um aplicativo de celular. O menino estava tão concentrado que nem percebeu um doce que colocaram perto dele.

Maria não fazia ideia de quem havia colocado o doce ali, mas sabia que ele não estava na mesa há alguns segundos atrás. Olhou em volta e não viu ninguém. O garçom que acabara de passar com uma bandeja, já se misturara no meio dos convidados elegantes. A pediatra preferiu esconder o objeto sem que o filho de Donatella visse. Riu de si mesma por estar tendo aquela atitude paranóica, mas Alfinn não notara o doce, muito menos a cirurgiã, então não teria problemas.

Quando alguém bateu levemente no microfone, a atenção de todos se voltou para o palco. No centro, segurando o microfone com um semblante forte, estava Bárbara. A ruiva, que usava um terno simples, óculos e algumas jóias, esperou alguns segundos até ouvir o silêncio predominar e falou:

— Boa tarde, meus caros amigos, colaboradores e profissionais da saúde de Cabo da Praga. Aqui quem vos fala é Bárbara Reis Velasquez, sócia da Corporação Pyramid e presidente do Instituto Pyramid para pessoas especiais. É com grande satisfação que venho agradecer pela presença de todos. E que possamos começar a nossa conferência a respeito do vírus.

A maioria dos convidados ovacionaram Bárbara com palmas, outros começaram a comentar e alguns ficaram em silêncio. Quando menos esperou, Bárbara viu um grupo de pessoas se aproximar do palco e sacar suas câmeras e seus flashes. A cientista nem sequer se surpreendeu, já presumia que jornalistas se infiltrariam no evento, de modo que não esboçou nenhuma reação. Entre eles estava Serena Rabelo, a ruiva havia mudado o penteado — agora com franja e cabelos na altura dos ombros — e sorria de forma irônica, como se provocasse a cientista. Bárbara já tinha reconhecido a prima entre os demais. A jornalista empurrou alguns deles e estendeu seu gravador na direção da ruiva em cima do palco.

— E então, Bárbara, não quer começar nos contando o que a Corporação Pyramid tem a ver com o vazamento do vírus? E como ela pretende reverter o quadro caótico de Cabo?

Como ela sabe? A ruiva lançou um olhar investivo contra a prima. Perto dali Gigi, Donatella e Maria acompanhavam tudo de pé.

— A corporação nada tem a ver com o que estão chamando de Plaga Vírus. Por incrível que pareça, segundo as informações que recolhemos, o vírus sobreviveu à temperatura da água da baía da cidade e se espalhou através do abastecimento. — Bárbara iria escolhendo as palavras certas.

Pelo andamento da investigação apurada de Serena, tinha certeza absoluta de que a prima mentia e tentava encobrir o erro fatal da Corporação Pyramid.

— O que você tem a dizer sobre as pesquisas da fabricação de um possível medicamento para inibição do câncer, doutora? — Outro repórter perguntou.

Bárbara segurava-se em cima daquele salto. Ela acenou com a cabeça para os jornalistas e respondeu:

— Paramos as pesquisas por conta do alto índice de exposição ao vírus. Depois que ele começou a se alastrar pela cidade, não tivemos condições de seguir com nossa pesquisa a respeito da medicação. Por enquanto ela permanecerá engavetada, até essa situação acabar.

— Como pretendem acabar com ela? A epidemia está se espalhando depressa em vários distritos. — Serena tinha uma feição debochada no rosto.

— Por enquanto, os postos de saúde estão com algumas vacinas no estoque, por mais que o processo de infecção seja relativamente rápido, dentro de algumas horas, as vacinas retardam esse processo. — A mente de Bárbara começava a ficar distante. — O que pedimos é que os diretores dos hospitais de Cabo conversem com seus funcionários que ainda estão dispostos a nos ajudar e permaneçam servindo a população no que precisarem. O que não podemos, é ficar de braços cruzados diante dos ocorridos.

Houve uma pausa. Bárbara respirou fundo, mas continuou centrada.

— Precisamos nos unir mais do que nunca. O que podemos fazer pela cidade no momento é evitarmos o contágio. Usem máscara de proteção, evitem contato direto com secreções dos infectados, permaneçam em suas casas. Não fiquem em aglomerações, pois é um prato cheio ao vírus. — Bárbara ja sentia que tomava controle da situação. — Estaremos trabalhando juntos de outros líderes farmacêuticos em um antivírus.

— Até que enfim, e onde o governo se encaixa nisso? O que acontece quando a quarentena acabar? — Uma jornalista de meia-idade indagou.

— O governo é nosso braço direito nisso, é ele quem está coordenando as ações dos militares para proteger a população. Vamos fazer de tudo para isolar o vírus e exterminá-lo, para isso precisamos de tempo. — Bárbara completou, sentindo a gargante secar. — Mas para isso precisamos de paciência da parte de todos.

Donatella e Maria se entreolharam. Elas não sabiam se acreditavam ou não no que era dito. Não eram só suas vidas em jogo. Ambas tinham uma família, e permaneceriam preocupadas até todo o inferno se dissipar como poeira ao vento.

Houveram aplausos assim que a cientista terminou seu discurso. Boa parte dos convidados, todos do ramo farmacêutico e da saúde de Cabo continuavam receosos. Até onde o vírus iria?

XXXXX

Na mansão de Edmundo, a sala de jantar estava parcialmente escura, assumindo coloração avermelhada, devido às velas acesas iluminando parcamente as paredes. Ele estava sentado à mesa, na presença de uma pessoa especial. Debora sorria ao olhar para o homem. Os dois comiam uma comida preparada pelo ex-agente federal. Debora estava adorando.

Na cabeça de Ed, a imagem de Samantha ia e vinha e aquilo trazia uma sensação de vazio, que eram preenchidas a cada sorriso sincero da loira a sua frente.

— Obrigada pelo convite mais uma vez, Ed. — A magnata disse.

— Não agradeça, Debora. É uma honra estar jantando com a magnata de Cabo da Praga, aqui na minha humilde residência. Eu que agradeço por ter vindo.

— Só um pouco modesto. — A loira riu.

Debora estava maravilhosamente bem vestida. A mulher usava uma blusa cinza com uma estampa de rosas, uma calça preta justa e um blazer vermelho. Os cabelos ficaram presos em um rabo de cavalo. Por vezes, ela ficava olhando para os quadros dispostos na parede da sala de jantar. Havia a cabeça de um javali empalhada ali, mas ela julgou não ser de verdade.

Ed percebeu seu gesto de desconforto.

— Não é de verdade. — Ele deu uma garfada na comida e ajeitou o óculos.

— Por um segundo, achei que você gostava de exibir animais mortos como prêmios. — Brincou a loira.

— Espero que não tenha impressões errôneas sobre mim. — Um flash de Samantha passou pela visão de Ed, deixando-a turva por alguns segundos. Ele fez de tudo para Debora não perceber.

— Foi um pensamento infeliz, perdão.

O homem rapidamente tocou a mão da mulher. O áspero com o macio, ambos se encaravam, era como se eles entrassem um no outro apenas com o olhar.

Mesmo quando estava em casa e à noite, Ed costumava usar chapéus. Desta vez, era um marrom. Debora gostava do modo inibido como Ed agia e pensava, isso significava que ele era alguém cuidadoso, respeitoso e responsável. A magnata agradeceria eternamente pelo plano mirabolante de Kátia. No fundo, ela quem queria ter feito isso acontecer, mas não estava em condições de pensar sobre algo do tipo. No fundo da sua consciência, ela sabia que tinha sido conquistada por Ed desde a vez que se reencontraram no Cicciliona. Só estava deixando fluir.

— Me acompanha em uma música? — Quando deu por si, Debora viu Ed parado bem na sua frente. A mão do homem estava estendida para que ele a guiasse até um espaço ali.

— Eu não sei se podemos nos desligar dos problemas lá fora. Tem certeza que aqui é seguro? Que os infectados não vão conseguir entrar? — Debora só estava sendo cautelosa, o trauma da invasão do Cicciliona ainda persistia.

— Eu confio na segurança do meu palácio. Eu prometo que só seremos eu e você.

A música, um clássico de blues, começou a tocar. Debora sorriu de lado e deu a mão a ele. Ed beijou-a delicadamente e os dois deixaram a música levá-los em passos ritmados e descontraídos. O homem de chapéu pousou a mão sobre a cintura de Debora e piscou. A loira corou imediatamente e rebolou, sentindo-se mais a vontade.

Minutos depois, os dois caíram sobre a cama do fornecedor de armas. A magnata retirou seu terno lentamente, enquanto ele fazia questão de retirar os óculos e o chapéu. Três botões foram desabotoados. Debora depositou um beijo delicado em seus lábios e sorriu. Ed encarava a visão transcendental sobre si e retribuiu o beijo. Assim que a viu jogar o blazer e a blusa para o lado, Ed inclinou-se para frente e passou a boca pelo colo da loira, que segurou sua cabeça e roçou o rosto contra o topo da mesma.

Ed beijou a parte superior dos seios de Debora lentamente, aproveitando cada parte. A magnata tombou a cabeça para trás, rebolando em seu colo, deixando o homem louco. Ela sentia a protuberância do relevo desenhado sob o tecido da calça social, o membro de Ed excitado despertava o instinto carnal de Debora. Ele alcançou o pescoço da loira e ali depositou vários beijos. A melodia clássica entrava pela fresta da porta, deixando o clima ainda mais excitante. Ed sorriu entre os beijos, ele nunca havia encontrado alguém como Debora.

Logo, todas as roupas foram separadas das peles. Nus, deitaram completamente na cama. Debora passou sua perna entre as de Ed, encaixando-a e eles deram mais um beijo. A loira podia sentir o membro ereto do homem tocar sua genitália e naquele momento, ela esqueceu o medo que sentia de que homens tivessem contato com sua cirurgia, a cicatriz… Por vezes, Debora privou-se de ficar com homens justamente pelo receio de como eles reagiriam quando soubessem. Porém, Ed já sabia, e ele estava se entregando mesmo assim.

Ed era um gentleman genuíno. Debora sabia que ele iria respeitá-la, que não lhe trataria como uma garota de programa, que ele demonstrava gostar dela de verdade, pelo que ela era. Logo, segurou o rosto do homem e sentiu quando ele introduziu o membro delicadamente, vendo a loira entregar-se inteiramente. Ela corria o risco de ter o prazer privado pela cirurgia, mas arriscaria mesmo assim. Por ele, principalmente. Enquanto seguia com as estocadas, deram mais um beijo molhado.

É ele… Debora pensou. Tem que ser ele...

XXXXX

A conferência seguia. Muitas pessoas estavam à beira de desistirem de continuarem no salão. Algumas delas, inclusive, só queriam que os minutos passassem mais rápido. Maria era uma delas. A indiana não estava sentindo-se bem há um bom tempo, pois a maldita enxaqueca estava voltando. Ela batia os dedos na mesa, impaciente. Olhava para os rostos atentos das pessoas mais próximas. Donatella permanecia vidrada no que um líder farmacêutico dizia ao microfone. Ele falava o quanto estava sendo difícil para ele lidar com suas vendas em meio à quarentena. Maria revirou os olhos, não estava suportando a ideia de alguém dando importância para aquele assunto, quando haviam coisas piores para se tratar. E provavelmente Donatella só resistia porque, na presença de Gigi, ela não poderia parecer desinteressada.

Gigi foi uma mãe muito boa para Maria, desde que a pequena fora adotada, após sofrer sem os pais biológicos, levados pela tragédia na Comunidade da Cuíca. Fazia vinte e sete anos que Maria convivia com Gisele, Lorenzo e seu irmão caçula, Kaique. Lorenzo sempre deu tudo que Maria precisou, desde uma educação de qualidade, até a finalização de seu doutorado em medicina.  A mulher era muito grata pela família que tinha e planejava retribuir todo o amor. Gigi, embora bastante imperiosa, era a mulher que Maria mais admirava em toda sua vida. Já Kaique, era a pessoa que a indiana mais amava neste mundo. O irmão petulante e rebelde por muitas vezes, era sua companhia para todas as horas, com quem ela sabia que poderia contar.

Aplausos despertaram Maria de seus pensamentos. A pediatra bufou quando percebeu que ovacionavam a postura egoísta do homem. Ele só estava pensando em seus negócios, enquanto famílias eram destruídas. Lamentou e ergueu-se da cadeira, notando que a cadeira ao seu lado estava vazia. Alfinn deveria ter ido ao banheiro. Então, Maria caminhou até a mãe e tocou levemente seu ombro. Gigi logo se virou e fitou o olhar entristecido da filha.

— Está acontecendo algo, querida? — Perguntou.

— Não estou me sentindo bem. Estou indo pra casa. — Maria respondeu, tocando as têmporas.

— Quer que eu leve você?

— Não precisa, não quero tomar seu tempo. Eu pego um táxi, sei que tem várias coisas a tratar aqui. — A indiana fez um carinho no braço de Gigi.

— Bom, se prefere assim… Tudo bem. Qualquer coisa, me ligue, querida. — A loira sorriu.

— Pode deixar. Boa noite, mamãe.

Maria arrumou o sari e olhou em volta, procurando Donatella para se despedir. Entretanto, a cirurgiã não estava ali, e provavelmente fora atrás do filho. Sem avistar a amiga, Maria tomou seu caminho em direção da saída. No final do corredor, notou um vulto. Logo depois, acabara por ouvir uma risada de criança. Ela parecia se divertir. A indiana olhou para os lados, os corredores estavam vazios, fora apenas sua imaginação. As têmporas latejavam, então Maria apressou-se para chegar em casa e tomar um medicamento.

XXXXX

Donatella surgiu detrás de um garçom e dois convidados que conversavam, ambos de terno com insígnias da Corporação Pyramid no peito. A mulher morena arrumava o cabelo curto e passava a mão no vestido, pareceu se despedir de uma mulher muito bem vestida logo atrás dela, com um pequeno aceno. Ela passou pelo garçom e tomou uma das bebidas da bandeja em mãos. Sorriu para Gigi, que retribuiu. A médica puxou uma cadeira para sentar-se.

— O mais frustrante disso tudo, é que não resolveram nada em relação ao vírus. Tudo que disseram a respeito dele, nós já sabemos. — Comentou, tomando um gole do coquetel, zero álcool.

— Concordo que esse evento foi um tanto exagerado nesse sentido. Não apresentou nenhuma medida cabível ou preventiva. — Gigi cruzou os braços, vendo Bárbara Velasquez transitar entre as pessoas.

Donatella virou para o lado, seu coração acelerou. Alfinn não estava em seu assento.

— Alfinn? — A mulher levantou depressa da mesa, olhando em volta. — Alfinn!

A médica começou a chamar a atenção dos convidados mais próximos. Gigi pediu que ela se acalmasse, mas a mulher já estava atordoada o suficiente não não conseguir ser tranquilizada.

— Ele estava aqui sentado, eu só fui conversar com uma amiga. — A morena olhava fixamente para a cadeira. — Onde ele pode ter se metido?

— Vai ver ele foi ao banheiro. — Gigi comentou, tentando apaziguar a tensão.

— Eu pedi que ele ficasse aqui. — O coração de Donatella quase saltava pela boca, ela podia sentir a velocidade aumentando. Olhou em volta mais uma vez e naquele instante, tudo parecia ameaçador para seu Alfinn.

Foi aí que o celular da mulher vibrou dentro da bolsa. Ela retirou o aparelho e leu a mensagem em um aplicativo de relacionamentos:

Unknown Joker: Alfinn é mesmo um garoto de ouro, não é? Se pretende ter uma surpresa desgradável e quiser vê-lo, venha até o Hospital Nossa Senhora das Graças. Estaremos a sua espera, Arlequinn. - 20:18

Donatella apertou o celular entre os dedos. Ela olhou de imediato para Gigi, que não entendera o que estava acontecendo. A cirurgiã sentia o sangue reagir ao momento e a loira a sua frente foi surpreendida com uma pessoa que pedia que ela a acompanhasse. Donatella acenou de cabeça para ela, concordando em ela deixá-la sozinha.

O instinto materno de Donatella foi um só, ir atrás do filho. Seja o que for, Joker estava fazendo um jogo com ela. Primeiro, ele ficou dias sem responder suas mensagens, agora volta ameaçando seu filho, seu bem mais precioso. A médica sentiu o coração desfazer aos poucos, mas tiraria aquela história a limpo com o admirador misterioso por trás do nickname.

Se algo acontecesse com Alfinn, ela não se perdoaria. E acabaria com quem quer que estivesse por trás de Joker. Ninguém mexe com meu Alfinn!

XXXXX

Em um dos imensos corredores do Instituto Pyramid, Gigi e Bárbara caminhavam solenemente. Conversavam sobre o vírus e como a vacina fora imprestável, já que os casos só haviam aumentado.

— A situação é alarmante, Barbie. — Comentou a loira. — Nós precisamos eliminar as chances do vírus se espalhar. O isolamento dele precisa ser feito a todo custo.

Bárbara negava silenciosamente.

— Ainda não temos condições de fazer isso, Gigi. Não há como concentrarmos o vírus apenas em uma parte da cidade. Ele sempre vai conseguir se sobressair. — Bárbara retrucou. — Ele é forte! Apesar de ser uma ilha, Cabo da Praga é grande.

— Diante disso, minha amiga, agora é hora de apelar para o superestimado potencial da indústria farmacêutica do seu marido. Combatam o vírus com algum tipo de antídoto ou antivírus! Vocês são capazes disso. — Era visível que Gigi estava se alterando.

Bárbara compreendia completamente o lado da amiga. Ela estava apavorada. Antes que pudesse falar sobre, a loira completou:

— Temo pela minha família, pelo meu marido e meus filhos.

A dona do instituo ficou em silêncio. Parou diante de uma porta branca e fitou Gigi através de um semblante de pesar.

— Eu também tenho medo do que possa acontecer aos meus filhos, por isso tenho que ser cautelosa em qualquer decisão.

Gigi ficou curiosa e aproximou-se da porta. Através da escotilha de vidro, a diretora do hospital geral tinha acesso à parte interna da sala. Era uma sala enorme, de modo que ela não conseguiu enxergar suas extremidades. Apenas duas pessoas lá dentro. Dois adolescentes. O par de jovens era idêntico, mas era explicito que tinham gêneros opostos. A adolescente tinha os cabelos em um tom castanho-claro indo para o loiro, enquanto o rapaz possuía os cabelos completamente loiros. Ambos de feições grosseiras e puxadas para traços europeus.

— Quem são esses? — Perguntou. Então, olhou para a amiga e viu que ela tinha os olhos marejados. — Não me diga que…

Bárbara concordou com um aceno.

— São meus filhos.

Os gêmeos Bianca e Bento estavam fazendo coisas diferentes dentro da sala. Enquanto ela estava sentada no chão de pernas cruzadas, lendo o que parecia ser um livro, ele mexia em um videogame portátil. Ambos vestiam um uniforme cinza e nem notaram as duas mulheres atrás da escotilha.

— O que você fez, Barbie?

A ruiva não tinha outra escolha, a não ser deixar os gêmeos ali dentro. Ela não era a mãe mais exemplar do mundo, porém, cuidava deles mais do que a si mesma. Se seu instinto dizia que eles deveriam ficar naquela sala por segurança, eles ficariam.

— Por que trancafiar os filhos? — Gigi permanecia chocada. — Que tipo de mãe é você?

Bárbara fechou a escotilha e continuou andando no corredor, fitando adiante com olhar sério. Ela tinha certeza de que os gêmeos estariam a salvo no instituto.

— Aqui é o lugar deles, Gigi, junto da mãe. E assim, poder monitorá-los. — As forças nas palavras da cientista só reforçavam a noção de que ela nutria certeza de que fazia a coisa certa.

— Monitorá-los por quê?

— Você não entenderia. Eu sou mãe deles, eu decido o que fará bem e o que fará mal às minhas crianças. — Respondeu secamente.

— Perdoe minha prepotência, Barbie. Eu nunca deveria ter falado assim com você.

— Também desculpe minha arrogância, é que estou tão sobrecarregada nesses últimos dias. — Respondeu a ruiva.

Gigi não disse mais nada e seguiu a cientista pelo corredor. Arriscou olhar através de mais uma escotilha de uma das portas do mesmo corredor, e avistou uma garotinha oriental brincando com uma linda boneca em uma das salas. A boneca tinha as vestes totalmente pretas.

A menina olhou diretamente para a loira prostrada atrás do vidro.

Um frio repentino fez Gigi se arrepiar.

XXXXX

O Instituo Pyramid acolhia diversas notoriedades do ramo farmacêutico e de outras áreas da ciência naquela noite. Porém, o principal nome daquele evento de emergência era Álvaro Velasquez, ou como era conhecido o dono da Corporação Pyramid, Anúbis. O deus egípcio da morte e do submundo. Era assim que era vista a figura imponente e onipotente de Cabo. O homem de face rude, misteriosa e sedutora que comandava as Tumbas e todo o complexo de sua empresa, ficou de pé, admirando a vista do salão pela vidraça da sala onde ficava quando visitava o instituto. Ombros largos, maxilar destacado, olhos ferozes e corpo bem definido.

Ele não costumava ir no lugar com frequência, pois sua esposa, Bárbara, não gostava da maneira que os internos em observação ficavam quando o homem chegava. A inquietação e a furia deles só aumentavam, como se sentissem asco e repulsa. Bárbara entendia em partes o que eles sentiam.

Medo de Anúbis. Medo do risco que ele oferecia para os pacientes. Mas a cientista estava ali justamente para lidar com isso. Ela conhecera um homem completamente diferente, mais cuidadoso e um pai mais presente. Contudo, com o passar do tempo, o poder cega as pessoas e a cegueira já passara dos limites com Anúbis. Só piorou quando perdeu a filha biológica, Clarisse, na Ilha Vermelha, lugar que queria tanto esquecer.

Junto do governo e da prefeitura em suas empreitadas, ele sentia Cabo da Praga na sua mão, podendo destruir qualquer coisa apenas com o estalar de dedos. O instinto arrebatador do homem era de um caçador, pronto para abocanhar a caça, sem esforço algum.

Alguém bateu na porta e entrou em seguida. O secretário do prefeito ficou de pé, esperando que Anúbis virasse na direção dele, mas nada aconteceu. O poderoso homem continuou de costas, quando bradou de forma retumbante:

— O que quer agora?

— Tratar de negócios. — O secretário de olhos azuis respondeu, se esgueirando na sala como uma cobra pronta para dar o bote.

— Achei que nosso vínculo de negócios havia sido encerrado. — Anúbis respondeu com sua voz gutural.

Horus queria olhar para o rosto do homem, queria saber se ele estava dando mais um de seus sorrisos irônicos.

— Não tem nada a ver conosco, caro Anúbis. É o prefeito. Ele quer retirar as pessoas que não estão infectadas da zona urbana cidade. — Arriscou dar detalhes do plano do prefeito.

— O que deu na cabeça daquele velho? Primeiro, ele pede para que eu desse um jeito de explodir a ponte, justamente para concentrar as pessoas aqui, sem chances de saírem. Agora, me vem com essa. — A alteração significante no tom de sua voz indicava que uma ira vinha crescendo, mas ele não queria deixar transparecer.

— Ele está sendo pressionado pelos líderes dos hospitais e por pessoas que estão perdendo seus negócios farmacêuticos. Parece que a Corporação Pyramid não é a única afetada com isso, não é? — Horus riu.

— Se a gente quer mesmo que o vírus não se espalhe, precisamos eliminar os hospedeiros, e não conservá-los. — Anúbis disse convicto. A sua palavra deveria ser a última. — Aquele jumento do prefeito deveria saber isso. Ele não está cumprindo com a palavra dele...

— Ele é um cuzão, disso nós sabemos. — Horus deslizou pela sala, como um ser rastejante se aproxima da presa. Seu corpo já estava mais próximo de Anúbis, mas o farmacêutico provavelmente não havia percebido. — Inclusive, junto do governador, já passou todas as tarefas aos militares. Vão deslocar o máximo de civis possíveis para as zonas das fazendas.

— Pensando bem, ele está se saindo como eu planejava. Porque, segundo informações, a zona das fazendas são as que obtiveram maior incidência de propagação do vírus. Então será fácil eliminar hospedeiros, se os concentrar lá. Nada pode dar errado. — Anúbis conseguia ser frio e calculista até quando vidas de civis estavam em jogo. Já fazia parte de seu instinto.

— Realmente, eles conseguem cooperar com seus planos, até quando não pretendem. — Horus aproximou-se o bastante do homem alto para tocar seus ombros.

— Isso nem deveria estar acontecendo, mas já que a sentença é essa, eu preciso resolver do meu jeito. — Os olhos em chamas de Anúbis encaravam o salão repleto de pessoas.

— Infelizmente sua mulher atrapalhou tudo…

Anúbis virou-se numa velocidade imprevisível e segurou forte o pescoço de Horus. Sua vontade era de quebrá-lo ali mesmo. O secretário do governo olhou para o executivo e sorriu ironicamente, sentindo a garganta se comprimir. Anúbis soltou-lhe em seguida, fazendo-o tossir e massagear o pescoço. Horus passou a mão no cabelo, arrumando-o.

— Você poderia ser menos agressivo às vezes, sabia? Mas admito que gosto desse lado também. Me excita. — Sibilou. A garganta doía.

— Não fale da minha esposa, seu verme! — Sussurrou em tom ameaçador.

Horus continuava com um sorriso no rosto. Então, o secretário arrumou o terno e levou a mão até o volume na calça de Anúbis. Massageou o local por breves segundos. O executivo pensou em recuar, mas não o fez. Apenas afastou o braço de Horus e disse:

— Saia daqui, imediatamente! Já estamos quites. Não te devo mais nada.

Não valeria a pena o dono da corporação sujar suas mãos com Horus. O moreno dos olhos azuis suspirou em desaprovação.

— Eu vou voltar, Anúbis. Nós nos encontramos de novo. Mas da próxima, será para uma noite de sexo selvagem inesquecível. — Afastou-se do homenzarrão e deu uma última olhada pelo seu terno, marcando todo seu corpo.

Para Horus, toda aquela agressividade e aquele mal no olhar só deixavam Anúbis ainda mais sexy. E ele sabia, que embora Álvaro tivesse toda aquela armadura viril, ele sentia a mesma atração.

XXXXX

Tema: [https://www.youtube.com/watch?v=6gcEyO-XqAw]

And this is how it fells when I

Ignore the words you spoke to me

And this is where I lose myself

When I keep running away from you

Na melancólica noite, a lua adentrava no quarto de maneira abrupta e fazia desenhos na parede com seus feixes de luz. O quarto onde Renan dormia estava escuro, como de costume e o homem estava sentado na cama, sozinho. Ísis e Valentim haviam saído novamente, desta vez, falaram algo sobre comida japonesa, que a loira gostava, mas insistia em agradar o ruivo. Sobre o colchão frio da cama, jaziam seringas e frascos. A barba por fazer de Renan já estava ficando grande o suficiente para dar um tom a mais de desalento. Ele estava com olheiras e o rosto denunciava que suas noites não estavam sendo das mais agradáveis. Toda vez que colocava a cabeça no travesseiro, tinha pesadelos com Thereza tendo a cabeça decepada aos poucos pelas pás da máquina industrial e com o garoto do metrô sendo atropelado. Ele não estava no momento do acidente, mas continuava ouvindo o som molhado das vísceras batendo, a sensação das massas viscerais se chocando contra seu corpo. Era a pior sensação da sua vida.

And this is who I am when

When I don't know myself anymore

And this is what I choose when

It's all left up to me

Breathe your life into me

I can feel you

I'm Falling, falling faster

Breathe your life into me

I still need you

I'm falling, falling

Breathe into me

Entretanto, nada era mais nítido que a visão do acidente do túnel Teodoro Kaulfuss. Todas aquelas pessoas desesperadas, o aroma de morte pairando, o desespero nos olhares, os gritos esganiçados, o suor expelindo as sôfregas tentativas de salvação e as mortes grotescas o rodeando. Thereza estava lá, o garoto loiro do metrô também… Assim como Ísis e Valentim. Mas, felizmente, Renan não os viu morrer. O pior de tudo, era ver a própria morte, era ter o corpo se dissolvendo no pensamento. E como já haviam lhe dito, ele estava lidando com uma lista da morte, uma caçada frenética que decide se você vive ou morre. Sua amnésia não ajudaria, já que ele era quem portava a tal ordem.

And this is how it looks when

I am standing on the edge

And this is how I break apart

When I finally hit the ground

And this is how it hurts when I

Pretend i don't feel any pain

And this is how I dissapear

When I throw myself away

Tudo era demais para sua cabeça, ele não sabia se suportaria toda a pressão de ter que lembrar. Todos ao seu redor clamando para suas lembranças virem abruptamente, virem forçadas. Ele não conseguiria, ele tinha certeza de que piraria antes da hora, que largaria tudo. Que deixaria todos morrerem, se perdesse o controle da própria cabeça. Ele não poderia deixar o medo das recordações dominarem sua mente. Ele não poderia se deixar ser abraçado pelo medo, pela escuridão.

Pegou uma das seringas. As lágrimas rolaram pelo rosto do barbudo, de modo que ele esfregou os olhos. Sem pensar duas vezes, aplicou a agulha. O fio metálico entrou em sua pele e ele soluçou com o choro, mordendo os lábios. O filete de sangue escorreu pelos mesmos, ele mordera com força, sem se importar com a intensidade. Ele continuou chorando, levando  aquele breu de si. Pegou a segunda agulha e preparou para aplicá-la. A droga da primeira seringa já percorria seu organismo. Então, Renan aplicou a segunda dose.

Breathe your life into me

I can feel you

I'm Falling, falling faster

Breathe your life into me

I still need you

I'm falling, falling

Breathe into me

Com os olhos dilatados, Renan se jogou na cama e largou as seringas. Os frascos rolaram pelo colchão e caíram fora do móvel. Renan abriu a boca e moveu os braços, estirando-os, como se estivesse crucificado. Agarrou o lençol com força. O barbudo encarou o teto com precisão, sua respiração aumentou de velocidade, as pupilas dilataram mais ainda. Ele começou a ver vultos negros deslizando pelo teto, subindo nas paredes. Ele estava gostando da sensação de estar morrendo, de seu instinto de vida estar se esvaindo.

Renan estava morrendo?

Breathe into me

Breathe into me

Breathe into me

A figura negra que se formou diante da cama, através de uma fumaça preta, que deu origem às vestes e ao manto que cobriam o rosto, ria de Renan. Ela ria por ele ter se entregado ao momento prazeroso da droga. De ter sido fraco o suficiente pra buscar naquele tipo de prazer, a saía para a paz. A entidade de preto sabia que ele não teria paz.

Parecia mais uma gargalhada de gralha a que ela dava.

— Quando te peguei dos braços da sua mãe, na maternidade, naquela noite, eu vi um menino forte e capaz de coisas extraordinárias. Eu sabia que você era um Oráculo, Renan… — Sua voz soava como um sussurro no meio da noite. Mesmo sob efeito dos injetáveis, Renan podia ouvi-la. — Desde que o vi.

O rapaz gemia na cama, ainda na posição de cruz. Ele debatia-se de olhos abertos, a pupila completamente dilatada, os lábios trêmulos. A mulher de preto segurava um bebê envolvo em vestes negras. Renan levantou-se da cama e se encaminhou até a entidade. Cambaleou e caiu aos seus pés, que estavam espalhando o miasma negro pelo quarto. Ele agarrou o nada, o que deveria ser o vestido negro. Quando se aproximou do bebê e retirou a manta preta, pode ver um rosto familiar destroçado. Não se identificavam dentes, muito menos olhos, nariz ou boca. Ele recuou apavorado, caindo de volta na cama.

A mulher de preto soltou mais uma gargalhada, que quase estourou os ouvidos do barbudo. O rosto trêmulo, os braços inquietos agarrando o lençol, a dormência nas pernas e o olhar sem direção. Renan não estava conseguindo associar nada naquele momento. Então, atordoado, ele viu um chafariz de sangue ser despejado do que seria o rosto do bebê, que chorava insistentemente. O homem cobriu o rosto e sentiu o líquido quente banhar-lhe.

Ísis gritou quando abriu a porta do quarto e viu Renan naquele estado. Ele estava tremendo, os olhos arregalados, os lábios congelados. A loira arriscou aproximar-se e recebeu um Renan inteiramente sob efeito de drogas. Ele dizia palavras desconexas e correu porta afora. Ísis tentou correr atrás do mesmo, mas quando deu por si, ele já havia saído.

XXXXX

Maria chegou ao casarão da família meia-hora depois de ter saído do Instituto Pyramid. Sua dor de cabeça baixara parcialmente, deixando-a um pouco mais calma. Ela entrou sorrateiramente, fitando o ambiente com luz baixa. Entrou no grande hall e subiu a escadaria principal, indo em direção ao corredor que dava em seu quarto. Porém, antes que chegasse até ele, parou de frente ao quarto de Kaique, a porta permanecia entreaberta. De lá saía uma luz azul forte, ela fez silêncio, pois ele poderia estar dormindo. Até que o viu sentado na cama.

Ao lado do irmão estava seu amigo, Fred, filho da Dra. Maciel. Maria tapou a boca e deu um riso nervoso, incrédula. Os dois estavam aos beijos e a presença da médica os assustou. Kaique quase caiu da cama quando viu a irmã parada na porta. Já Fred manteu-se calado, fitando o chão, ele estava morrendo de vergonha. Suas bochechas coraram violentamente.

Maria não fez questão de dizer nada, apenas sorriu e encostou a porta novamente. A pediatra não era boba, ela notara por várias vezes o clima que perpassava os garotos, as olhadelas, os gestos e toques. Se eles não ficassem juntos agora, eles não faziam a menor ideia se estariam juntos para aproveitar nos dias seguintes. Foi um risco que quiseram correr e Maria entendia completamente, porque ela também já correra riscos dos quais não se arrependia. A indiana apoiaria a relação, mas não sabia como Gigi poderia reagir, então, ela alertaria Kaique sobre isso.

Percorrendo o corredor, Maria entrou no quarto e fitou os enfeites indianos que pusera nas cortinas, mesinha de canto e cama. Ela adorava observá-los e não descartava a preservação da cultura de sua origem, sempre homenageando seus pais e a Índia onde estivesse. Era o mínimo que ela pensava em fazer por eles, honrar suas memórias.

Começou a cantarolar uma canção de Elis Regina que veio na sua cabeça, foi até o banheiro do quarto e ligou a torneira da banheira, ouvindo o chiado que a água fazia ao entrar em contato com o fundo do recipiente. Logo retirou o véu do sari e o levou até a cama. Quando ouviu os gritos vindo do lado de fora do casarão e as batidas frenéticas na porta. Não demorou nem três segundos, e Maria já desatava a correr pelo saguão, indo até a porta às pressas. Os gritos se intensificaram, a médica ficou ainda mais preocupada.

Assim que abriu a porta deu de cara com uma mulher de aparentes trinta anos. Ela respirava fundo e fazia caretas de dor. Gemia e segurava a barriga, ela não estava aguentando as contrações de sua gestação. Em trabalho de parto, ela lançou-se contra a pediatra, pedindo ajuda:

— Me ajude, por favor! Meu bebê vai nascer! Por favor! — A mulher tinha os olhos inchados de tanto chorar.

Maria rapidamente pensou e resolveu agir da maneira mais correta. Trouxe a mulher para dentro do casarão e fechou a porta de forma abrupta. A mulher segurava a barriga e comprimia os lábios, procurando algo para se apoiar. Maria deu seu ombro.

Gritou:

— Kaique! — Ela guiava a mulher em direção das escadas. Porém, sabia que a mulher não poderia subir os degraus. — Kaique!

O irmão de Maria apareceu logo em seguida, no topo da escadaria. Ele estava na companhia de Fred, os cabelos dele estavam assanhados.

— O que aconteceu?

— Ela está em trabalho de parto! Ela não tem tempo para um parto normal, são muitas contrações por minuto. — Raja dizia de maneira cautelosa, a última coisa que queria, era apavorar a grávida. — Vamos fazer um parto na água!

O garoto desceu os degraus de dois em dois, um turbilhão de sensações passavam pelo seu corpo. Fred preferiu não intervir, então, ficou calado e desceu junto do amigo. Maria levou a mulher para a porta esquerda, bem embaixo da escadaria principal. A mulher gesticulava como se estivesse sem fôlego.

— Forças, querida. Vai dar tudo certo, ok? Seu bebê nascerá lindo! — Ela dizia, enquanto envolvia a gestante em seus braços. — Eu prometo.

A mulher pareceu satisfeita com o que ouvia, mas seu coração continuava palpitando rápido.

— O que eu devo fazer? — Kaique perguntou, ele tremia.

— Prepare a banheira. — Fred abriu a porta do banheiro para que todos passassem.

A indiana continuou:

— Eu preciso que deixe a banheira entre 36 e 38ºC, para manter o conforto materno e evitar a desidratação dela. — Maria segurava a mulher para que Kaique pudesse pensar.

— E o que isso quer dizer? Maria, fala na minha língua!

— Morna! Eu preciso da água morna. — Respondeu secamente. Olhou para a gestante e notou que ela estava ficando pálida, seus lábios embranquecidos. — Rápido!

Fred não tardou e a água já estava atingindo a metade da banheira. A mulher soltou um grito que penetrou a alma de Maria, olhando seu rosto sofrido. Ela ficou com os olhos marejados, lembrando-se que aquela mulher tinha o risco de passar pelo que ela passou, de não poder criar uma criança. A mulher começou a respirar ainda mais ofegante, quando Maria, com a ajuda dos dois jovens, conseguiram colocar a mulher sentada.

— Isso, colocamos ela quando o trabalho de parto progrediu, é a hora certa!

O clima do banheiro estava ficando abafado, então Maria correu até uma pequena estante de vidro e retirou um borrifador com água gelada. Deu o produto para Fred.

— E você, borrife isso nas paredes. — Viu o garoto assentindo. Ele apressou-se em fazer o que a médica havia pedido.

Maria olhou para a mulher de cabelos morenos. A pele dela estava assumindo o tom natural aos poucos, os lábios levemente rosados. A doutora sentiu quando ela apertou sua mão fortemente, elevando seu olhar. Murmurou:

— Salve meu menino...

— Claro… Vocês dois ficarão bem. Mas primeiro, quero saber seu nome. — A médica sorriu de maneira terna, segurando firme a sua mão.

— Maria Laura. — A voz saiu rouca.

— Seu nome é lindo, sabia? Eu também me chamo Maria. Maria Raja.

A mulher fechou os olhos por um instante e sorriu brevemente. A presença da médica estava aliviando-a das dores lentamente. Então, a pediatra deu uma olhada para a banheira e fez suas conclusões, anotando-as mentalmente. A colo uterino já está com dilatação de mais de cinco centímetros… Mais de duas contrações em dez minutos...

— Kaique, pegue um pouco d’água, precisamos continuar hidratando-a. — Maria disse de maneira firme. — Vai ficar tudo bem, Laura. Respire fundo.

A médica precisava entretê-la, aliviá-la e tranquilizá-la, e a melhor forma de fazê-lo era conversando. O clima dentro do cômodo já estava mais ameno.

— Sabia que na Grécia Antiga, os bebês que se tornariam príncipes, nasciam em banheiras? — Ela sorriu de maneira solene, transmitindo calma à Laura. — Seu menino será um lindo príncipe!

Laura devolveu um sorriso gentil e verdadeiro, embora exausto. A dor aumentava e Maria percebia que aquela era a hora.

— Vamos lá, Maria, você tem força e garra! — Ela dizia para a mulher, que começava a ranger os dentes, de maneira a empurrar o bebê.

A água morna funcionava como uma leve dose de anestesia diminuindo a dor. Fora um dos meios mais naturais que Raja pensou em fazer. Em casos como esses, haveria muito mais vantagens sendo deste modo. Passaram-se alguns longos minutos, as Marias já estavam aflitas, porém, uma delas não transparecia. A doutora logo ouviu o choro da criança e os últimos sôfregos suspiros da mãe.

A indiana abriu um largo sorriso, quando o bebê passou pelo manto aquático e ela o ergueu. O sangue tingiu a água e Maria obstruiu as vias aéreas do bebê em seguida.

— Tesoura. — Disse para Fred, que lhe entregou.

Maria cortou o cordão umbilical e recebeu a toalha limpa de Kaique, envolvendo o bebê. Ela sorria, como se fosse seu próprio filho. O largo sorriso de felicidade tornou-se uma face melancólica, quando deu por si e avistou a mãe da criança chorando, entre respirações pausadas e demoradas.

— Laura! — Maria entregou o bebê na toalha para os garotos.

A médica verificou a pressão da mulher, agora com os olhos baixos, a pele ficando pálida novamente. As mãos dela tremiam, a pulsação quase nula. Maria olhou no fundo dos olhos de Laura e sentiu o último aperto de mão.

— Você não pode ir embora, você precisa ser forte! — Maria bradava. — Seu filho nasceu, Laura! Ele nasceu! Fique conosco! — Gritava e segurava o rosto da mulher, que não mais respondia.

Os sinais vitais de Laura sumiram e Maria arregalou os olhos. Ela podia ouvir o bip contínuo ao pé de seu ouvido, dentro da sua cabeça. As lágrimas caíram sobre seu rosto, a pele suada e o desespero estampado no semblante paralisado. Maria engoliu em seco, a mãe da criança… Eu prometo a ela... A indiana tinha pouco tempo para pensar, então correu até o irmão e segurou o bebê com cuidado, partindo em direção da porta principal. Ela ainda chorava e Fred ficou parado na porta do banheiro, chocado com a cena. A mãe da criança estava estoica, os olhos fechados na banheira, a água transformada em sangue. Com o coração acelerado, ele acompanhou Kaique, que estava indo na direção de Maria. A médica segurava o bebê.

— Aonde você vai? — Perguntou o irmão da indiana.

— Chamem uma ambulância, rápido! Irei levá-lo para a maternidade, lá ele terá mais assistência. São só algumas quadras daqui, ele chegará bem. — Ela dizia entre lágrimas ao mesmo tempo em que tentava acalmar o bebê. — Vou pegar um táxi, se a Gigi chegar antes de mim, peça para ela ir urgentemente até lá.

Maria faria tudo que estivesse ao seu alcance para salvar o pequeno indefeso. Por Laura. Não era só a Doutora Raja quem estava ali, era a Maria Raja também. A mulher que não conseguiu realizar o sonho de ser mãe, a mulher que viu a história se repetir com outra pessoa. Ela sabia que onde quer que Laura estivesse, ela estaria orando por eles.

XXXXX

Parte III: Ventre

Mesma noite — 17 de Janeiro de 2016

Alfa batucava no volante do carro parado no sinal. Alisson olhava pelo vidro a avenida cinzenta e deserta. A cidade estava sucumbida num silêncio sepulcral, mas a sirene ao longe cortava-o de maneira dissimulada. A tatuada mexeu no cabelo e encarou o cineasta por breves segundos. Ele devolveu um meio sorriso e olhou pelo retrovisor, avistando mais mantimentos. Desta vez, ele decidira levar apenas Alisson para recolher mantimentos em outro supermercado desativado. Eles precisavam de mais produtos de higiene e comprimidos analgésicos. Concluíram ser mais seguro se apenas dois deles fossem. As sacolas balançaram quando o sinal abriu e o carro acelerou.

Até alguém passar a rua correndo no mesmo segundo. Alfa foi rápido e virou o volante celeremente. O carro rodopiou em seu próprio eixo, deixando marcas de pneu no asfalto. O vulto cambaleou assustado para o outro lado, houve algum grito em algum instante. Dentro do carro, Alfa e Alisson olharam para a figura caída na pista. Ele queria analisar a situação de dentro do veículo, era mais seguro, poderia ser um infectado. Alisson entreolhou-se com o loiro e ambos saíram do automóvel atravessado na avenida. Os dois correram até o homem que parecia ter machucado o braço.

— Você está bem? — Alisson perguntou. — Deixa eu ver seu braço.

Ele dobrou a manga longa da blusa, ainda um pouco atordoado. Alisson viu o cotovelo com uma pequena região ralada pela queda. Alfa percebeu a pupila dele consideravelmente dilatada. Se o loiro notara bem, o homem tremia, talvez fosse frio ou o corpo reagia pela adrenalina do susto.

— Eu vi ela, ela está atrás de mim… — O homem murmurou.

— Ela quem? — Alfa perguntou, se aproximando dele e tocando seu ombro. A

— A mulher de preto.

O coração se Alfa acelerou. A mulher de preto, Alfa reconheceu como sendo a pessoa da qual sua filha falava no quarto, alguns meses antes, que ele simplesmente deixou para trás. Seria a mesma que ele avistou na rodoviária no dia do acidente? Por falar em acidente, Alisson estava cutucando, pedindo que ele olhasse para ela. Assim que o loiro o fez, a tatuada balbuciou:

— É o visionário, Alfa! Está lembrado dele? Foi ele quem nos alertou sobre o acidente.

O cineasta olhoy mais uma vez para o homem de olhos cabelos e barba por fazer. Ele parecia com medo, olhando em volta. Os olhos permaneciam arregalados e a boca seca.

— Ele está drogado. — O loiro concluiu.

— Isso é o de menos. Não podemos deixar essa oportunidades escapar das nossas mãos. Ele é o único que sabe a ordem da lista, é a nossa chance! — A morena argumentou e o loiro cedeu, levantando Renan da pista.

O trio se encaminhou de volta para o carro. Uma movimentação estranha começou em uma casa do outro lado da rua e ouviram uma garrafa de vidro se estilhaçar no chão. Uma discussão acontecia. Em seguida, um infectado surgiu de uma das portas e correu em disparada na direção do veículo. Alisson foi ligeira e colocou Renan no banco traseiro, enquanto ela entrou e sentou no assento do carona. Alfa bateu a porta em seguida, sentando atrás do volante, ligando o carro e acelerando. Mais a vez, o pneu queimou o asfalto.

Poucos minutos depois, com os ânimos estáveis dentro do automóvel, Alisson inclinou o corpo e encarou Renan. O homem fazia um gesto característico de frio, esquentando-se com os próprios braços. Ele estava entre as sacolas dos produtos, quando uma delas virou.

— Merda! — Alisson abaixou-se para apanhar a sacola e quando retornou, Renan estava com os olhos estáticos na direção da rua.

Na mente do homem vários flashes e imagens desconexas acendiam como luzes em nuances de tons vermelhos. Foi aí que ele gritou. Alisson assustou-se e Alfa apertou os dedos no volante.

— O que está acontecendo? — Indagou preocupado.

— Ele quer nos dizer alguma coisa… — Alisson percebeu e deixou que ele falasse.

— A mulher com um bebê nos braços… A caixa de vidro… — Ele balbuciava em uma espécie de transe. — Ela está pedindo por socorro, a caixa de vidro… Os choros de crianças…

— Como é essa mulher? — Perguntou Alisson.

— A indiana… A Cruz vermelha!

Como num insight, Alfa olhou para Alisson de rompante e disparou:

— A doutora Raja! Ela estava no compartimento, ela é uma das sobreviventes!

— Ele falou algo sobre crianças e cruz vermelha. Ela é pediatra, não é? — Alisson disse.

— É, mas eu não acho que seja um hospital… Ele falou no choro das crianças. É isso! — Alfa apertou o pé no acelerador, descendo a rua. — Estamos chegando!

XXXXX

O salto de Donatella no piso do Hospital Nossa Senhora de Fátima fazia um som que estava começando a incomodá-la. A expressão de preocupação no rosto da cirurgiã era inconfundível. Ela andava apressada em um dos corredores da ala infantil. Os corredores dos andares inferiores tinham uma pouca movimentação, enquanto os que ela transitava estavam mais desertos.

Várias vezes ela olhou na tela de seu celular para verificar se Joker havia mandado outra mensagem. O medo começava a consumi-la, a se alimentar de sua aflição. Seus batimentos aumentavam a cada segundo, ela sentia como se seu peito fosse explodir. As borboletas faziam festa em seu estômago, sob o vestido. O jogo que Joker fazia com ela mudaria os rumos dessa relação.

E tudo que ela queria, era encontrar seu filho. Mal surgiu em seu pensamento e uma mensagem de Joker chegou:

Unknown Joker: Alfinn está adorando a brincadeira. No oitavo andar, ele encontrará uma surpresa! - 22:10

— Seu lunático! — Esbravejou.

Donatella guardou o objeto com fúria. Ela então deu passos largos e marchou até o elevador. Antes de chegar até lá, acabou enroscando o vestido em um esqueleto de consultório, que estava fora de uma sala. A médica reclamou, desenroscou o vestido entre protestos e continuou.

XXXXX

Maria entrou na ala dos berçários, gritando por alguma enfermeira. Ela demorou apenas dois minutos para chegar até o andar da maternidade dedicado aos recém-nascidos. O bebê em seus braços chorava insistentemente e ela estava tentando calcular a situação para dar a falsa sensação de que estava tudo sob controle, como gostaria que estivesse.

Duas enfermeiras saíram de uma porta, indo direto em sua direção.

— Doutora, o que houve? — Uma delas, uma baixinha, perguntou.

A médica tratou de explicar o que havia acontecido. Elas entenderam a situação de imediato, pedindo que a doutora lhes acompanhasse. As mulheres guiaram Maria pelos corredores com rapidez, mesmo que o sari da indiana estivesse dificultando a caminhada. A pediatra transpirava muito e seguia as enfermeiras de forma cega. Elas precisam salvar meu menino! Como se caísse em si, Maria lembrou que o bebê perdera a mãe na banheira e sentiu um vazio profundo escorregar em sua barriga.

— Vou chamar a obstetra, vamos fazer toda a higiene dele, ele vai ficar bem.

— Eu confio em vocês! — Maria respondeu.

XXXXX

Alfa entrou ligeiramente no saguão da recepção da maternidade, olhando em volta. Alisson trazia Renan em tropeços, por vezes ele ameaçava desmaiar, enquanto ela estava ali pronta para segurá-lo. O cineasta correu até a recepção, o peito suado por baixo da blusa.

— A doutora Maria Raja, por favor. — Falou colocando as mãos no balcão.

A mulher gorda atrás do mármore frio do balcão franziu o cenho, verificando em seu sistema.

— Hoje é folga dela. — Retrucou.

Alisson fez uma careta. Renan pareceu dar um espasmo, mas sorriu de canto para a tatuada, isso significava que ele estava melhor do que antes. Ou apenas viajando em suas próprias alucinações.

— Nós precisamos dela, sabemos que ela está aqui! — Alfa bradou convicto.

— Olha como fala comigo, posso pedir aos seguranças para te tirarem daqui em questão de segundos. — A mulher elevou o tom de voz. Os três seguranças perceberam a movimentação estranha.

Alisson notou que a situação estava saindo do controle. Ela caminhou até o loiro, levando Renan consigo, o rapaz afirmava que já conseguia andar com as próprias pernas, mas a tatuava reprovava cada fala sua.

A morena bateu inclinou o corpo, o suficiente para a balconista sentir sua respiração.

— Nós vimos a doutora entrar, se não nos disser onde ela está, vai ficar pior pra você, querida. Não vai ter segurança que me segure! — Os olhos raivosos de Alisson assustaram a mulher, que virou novamente para o computador, engolindo em seco.

— Ela estava levando uma criança para os berçários, no sétimo andar.

Alisson sorriu satisfeita e agradeceu com falso tom de gentileza. Acompanhada dos dois homens, eles foram até o elevador externo, espelhado, de onde podiam ver todas as luzes restantes da cidade.

Atrás deles, Gigi surgiu no saguão, sua filha estaria ali no seu aguardo.

XXXXX

Maria esperava o elevador externo, olhou no relógio digital da parede oposta. Eram exatamente 22:17, ela suspirou. O elevador subia, conseguia visualizar pelo painel digital. Em partes, Maria estava feliz de ter salvado a vida do frágil garoto, embora sua mãe tenha tido um fim nada agradável. Ali sozinha, dentro do elevador panorâmico, poderia chorar o quanto quisesse, ninguém veria sua parte frágil. Então, ela lembrou de como foi viver sem seus pais e que aquele garoto teria a mesma saudade, a mesma agonia, sem o cheiro de sua mãe, sem seu afago. Era desesperador, mas assim como ela conseguiu, ele também conseguiria. Ele será forte, assim como eu fui!

Então o elevador abriu e Maria deu de cara com Alfa, o pai de uma de suas pacientes mais frequentes. O loiro com barba por fazer estava acompanhado de um outro rapaz de rosto cabelos escuros escondidos no capuz e uma mulher morena e tatuada. O cineasta empalideceu assim que deu de cara com a indiana, de modo que ele investiu contra ela, dando-lhe um abraço inesperado. Maria falaria algo, mas as palavras não saíram.

Alfa alertou:

— Doutora, você corre perigo, é uma longa história. Mas você precisa vir conosco! — Ele disse sem interrupções.

A indiana ficou confusa e sentiu quando o loiro puxou seu braço com rapidez, pedindo que ela fosse junto deles. Maria protestou, se desvencilhando do homem, que lançou um olhar preocupado.

— Acredite em mim, sua vida está em perigo! Tudo aconteceu por causa daquele acidente no túnel. — Ele proferiu, se aproximando do encapuzado.

“Doutora Raja, por favor, compareça à recepção. Sua mãe, Gisele Salles, lhe aguarda.”

A voz suave soou dos alto-falantes mais próximos. Maria entreolhou-se com eles.

— Eu não tenho tempo agora, eu preciso cuidar de um bebê. — Ela respondeu, sentindo um aperto no peito.

— Não, Maria! Você precisa nos escutar! — Alisson gritou.

Maria deu a volta e entrou no elevador completamente confusa. Ela mordiscava os lábios e olhava para tudo ao seu redor. Seu sari quase ficou preso no batente do elevador, mas ela o retirou logo em seguida. Alfa tentou alcançá-la, mas Maria acionou o botão.

— Então, ouça ele! — Alfa retirou o capuz de Renan.

O efeito dos injetáveis já estava passando, de modo que o homem encarou Maria de maneira apavorada. A médica reconheceu-o de imediato e ligou os pontos. A lista da morte! Oh, meu Deus! A porta bem em sua frente fechou-se. Ela tentou apertar o botão novamente, mas o elevador voltou a subir.

— Ela vai morrer no elevador! — Alfa gritou, correndo na direção da porta ao lado. — Vamos pelas escadas!

— A caixa de vidro é o elevador! — Alisson completou o pensamento. Os trê começaram a subir a escada desesperados.

XXXXX

Donatella chegou ao oitavo andar ofegante e exausta. A mulher não aguentava mais procurar Alfinn, mas encontraria forças. Seu filho precisava de sua ajuda e Joker tinha contas a acertar com ela. Ao contrário de Fred, Alfinn havia saído de seu ventre. Donatella não fazia distinção disso, mas era claro que sua conexão com seu filho biológico era mais intensa. Entrou em uma ala que parecia interditada e parou ao ser barrada por equipamentos de construção.

— Mamãe! — Ouviu a voz doce atrás de si. — Mãe, estou aqui!

A cirurgiã virou-se e deu e cara com seu filho caçula. Os dois deram um abraço apertado e ela encheu-lhe de diversos beijso na testa e no rosto, num gesto desesperadamente aliviado. Afinn sorria.

— O que está fazendo aqui? Quem te trouxe pra cá? — Perguntou, segurando o rosto da criança.

— Foi a pessoa com máscara de coringa, do batman! Ela é muito legal! Disse que era um caça-tesouro, mas o tesouro seria você. — Alfinn sorria com os olhos, como se tivesse adorado a brincadeira. — Eu ganhei, mamãe! Eu ganhei!

Donatella deu mais um abraço apertado no garoto e lágrimas rolaram pelo seu rosto. No contador do elevador externo a sua frente, ele avisava que o objeto subia. Havia alguém indo em direção das obras.

XXXXX

Tema: [https://www.youtube.com/watch?v=VFwmKL5OL-Q]

Bloody, bloody, bloody, bloody

O elevador parou, estancando na metade do percurso.

Maria apertava todos os botões do painel do elevador panorâmico. A sua frente, toda a cidade assistia seu desespero. A mulher suava, estava ficando insuportável permanecer dentro do sari, que só esquentava cada vez mais sua pele. A indiana sentia-se sufocada. Ela gritou para a chamada de segurança, mas o microfone fazia um chiado insistente.

— Socorro, eu estou presa no elevador, será que poderiam mandar ajuda? — Disse próxima do microfone. Mas ninguém a ouvia.

Love is just a history that they may prove

And when you're gone

I'll tell them my religion's you

When Pontius comes to kill the king upon his throne

I'm ready for their stones

Maria começou a se desesperar, nunca fora uma pessoa claustrofóbica, mas ficar presa naquela caixa de vidro estava fazendo seu estômago embrulhar de tanto nervosismo. Foi aí que o elevador voltou a funcionar.

E subir.

Maria continuou apertando o microfone e tentando manter contato com a central de segurança da maternidade. Estava ficando cada vez mais alto, o elevador já estava prestes a alcançar o oitavo andar. O andar interditado. Maria começou a gritar e bater no vidro, mesmo ciente de que ninguém lhe ajudaria. Então, olhou para cima e viu o alçapão. O compartimento estava emperrado, ela tentou empurrar e ele nem sequer destravou. Suspirou em rendição.

— SOCORRO!

Because I won't cry for you

I won't crucify the things you do

I won't cry for you

See, when you're gone I'll still be Bloody Mary

Até que o elevador estancou novamente e as portas se abriram. Os olhos de Maria brilhavam, fora como a porta do próprio paraíso. A indiana apressou-se em sair do objeto espelhado. Do outro lado das máquinas de construção, uma luz piscava fracamente e ela avistou Donatella abraçada ao filho. Os olhares das duas se bateram.

Um insight fez um flash de imagens passar na mente de Maria, como um filme. A indiana lembrou-se do que disseram sobre a lista e de Alfa alertando-a sobre estar em perigo. Sua vez havia chegado? Maria correu para fora do elevador, mas o batente das portas arrastou com força seu sari, que acabou ficando preso. A médica gritou com o susto e sentiu o puxão, levando todo seu corpo para baixo. Suas pernas caíam de volta dentro do elevador, enquanto seu dorso e parte superior tombaram fora.

Maria bateu o queixo e gemeu.

We are not

Just art for Michaelangelo to carve

He can't rewrite

the agro of my furied heart

I'll wait on mountain tops in Paris cold

Je ne veux pas mourir toute seule

Donatella arregalou os olhos.

— Maria! — Correu. — Socorro, alguém nos ajude! — A morena começou a gritar. Afinn olhava estóico para a cena. Donatella acenava freneticamente na direção da câmera do corredor.

Maria segurou as placas de vidro, uma mão em cada extremidade e começou a empurrá-las, antes que o elevador descesse. Até que pelo alto-falante, ela conseguiu ouvir:

“Aqui é da manutenção. Por favor, permaneça dentro do elevador, não faça mais nada. Estaremos trazendo-a de volta ao térreo.”

O coração de Maria parou por breves segundos. Ela berrou e começou a se debater, tentando empurrar as portas, mas ela prensavam seu ventre violentamente. Maria cuspiu algum sangue quando sentiu o elevador se mover para baixo. Donatella tentou passar por uma das máquinas, mas estava muito escuro e ela conseguiu ver um pequeno buraco no meio da passagem. Era um espaço perigoso, como um campo minado.

Alfa surgiu atrás da cirurgiã.

— MARIA!

— SOCORRO! — Maria berrou.

Because I won't cry for you

I won't crucify the things you do

Because I won't cry for you

See, when you're gone I'll still be Bloody Mary

As portas voltaram e bateram novamente com força no ventre da indiana, que cuspiu mais sangue. O elevador começou sua descida, mas havia um corpo entre o piso e as portas. Metade do corpo da médica estava descendo e a metade superior continuava no piso, se debatendo. Maria sentia sua carne se partir aos poucos, lentamente. O ardor era crucificante, cada parte de seu abdômen era separada. A pediatra conseguia sentir sua parte interna escorregar para fora, os ossos da bacia e alguns das costelas se quebrando. Maria ouvia o som da cartilagem descolando.

A quantidade de sangue que saía de sua boca aumentava a cada segundo. O elevador estava emperrando e em Maria ainda existia alguns resquícios de vida. A indiana viu Alfa pular um equipamento e ficar de frente para um buraco no meio do piso. O loiro parou, antes que pudesse cair nele. Maria não tinha mais forças para gritar, seus olhos percorriam o ambiente carregados de uma sensação fúnebre. Donatella chorava copiosamente. Alisson e Renan observavam tudo atônitos.

— Alfa sai dai AGORA! — Alisson gritou e o loiro ouviu o ruído.

— Eu não posso deixá-la morrer! — Ele gritou em resposta. Os olhos vermelhos de tanto chorar. Os lábios trêmulos, a face desesperada.

I won't cry for you

I won't crucify the things you, do, do, do

I won't cry for you

See, when you're gone I'll still be Bloody Mary

Várias rachaduras se formaram acima de sua cabeça. O cineasta percebeu que não havia escolhas e correu para longe dali, saltando de volta a máquina. Assim que o fez, o teto desabou como um todo, trazendo consigo aparelhos médicos que estavam no andar de cima. A enxurrada fez escorregar uma imensa máquina de ressonância magnética. O aparelho deslizou pelo piso em declínio na direção do elevador.

De Maria.

Ave Maria, cheia de graça, o senhor é convosco

Bendita és tu entre as mulheres

Bendito é o fruto do vosso nome, Jesus

A indiana piscou os olhos, a tempo de ver a máquina de ressonância vir em seu caminho. Alfa e os demais reagiram de formas diferentes quando o aparelho atingiu a metade exposta do corpo da médica. A parte frontal da máquina acertou sua cabeça e inclinou seu corpo numa posição desproporcional, trazendo sua cabeça para trás. A coluna vertebral de Maria rasgou a pele, abaixo da nuca, e saiu de maneira brutal, num estalo de partir do coração. A cabeça da indiana prensou-se na porta do elevador de vidro, que rachou no mesmo segundo.

Todo o corpo de Maria fora prensado contra o elevador, que cedeu. O pesado aparelho de ressonância arrastou os restos retorcidos de Maria para dentro do elevador, que explodi em cacos de vidro pelos ares da noite. O sangue do corpo estourado feito bexiga, molhou as paredes no andar e fez um rastro no piso. A máquina e os pedaços de Maria caíram para fora do prédio, despencando lá embaixo numa velocidade incrível.

Bendito é o fruto do vosso nome, Jesus

Santa Maria, mãe de Deus

Rogai por nós, pecadores

Alfa caiu de joelhos e Alisson o abraçou. Donatella estava agarrada ao filho, de costas. Renan continuava de olhos arregalados, incrédulo.

Lá embaixo, no primeiro andar, Gigi viu o aparelho médico atingir o chão e fazendo um estrondo ensurdecedor. O que sobrara do corpo da pediatra tombou em seguida, num impacto molhado de carne, vísceras e pele encharcada de sangue. A cabeça caiu virada na direção da recepção e Gigi deu um grito desesperador, sem acreditar no que via.

Agora e na hora de nossa morte

Amém


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Notas finais do capítulo

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