Marcada escrita por Violet


Capítulo 24
Uma Mentira de Cada Vez




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Faziam alguns meses desde a última vez que havíamos nos visto, ele havia perdido um pouco de peso, o contorno do seu rosto estava mais afilado, o cabelo um pouco maior e não tão bem penteado como ele costumava usar, essa aparência de desleixo não era algo comum seu. Quase não acreditei quando em uma das minhas caminhadas o vi ali, deitado sobre o gramado cheio, o vento suave que balançavam suas madeixas negras e lisas, as mãos grandes com suas veias dilatadas que pousavam cobre um amontoado de flores, ele parecia pender sobre um sono tão profundo e leve, seria isso que chamavam de "visão dos anjos"?.
Dobrei os joelhos lentamente e fiquei admirando aquele quadro vivo, desejando que ele não despertasse para que eu pudesse olhá-lo mais um pouco, foco em sua boca entre aberta deixando a mostra aqueles lábios carnudos e convidativos, a madeixa crescida desliza sobre seus olhos fechados, e penso em livrá-lo dela, mas não tenho coragem suficiente para me mover. Noto então um cheiro amargo no ar, o cheiro da flor de lótus, mas não a comum, aquela que possuía um leve veneno capaz de adormecer qualquer pessoa, alguns demônios a utilizavam em seus negócios com os humanos. Juro que quis abandoná-lo ali, afinal, ele acordaria dentro de alguns minutos, mas por algum outro motivo inconsciente, não pude me mover para deixá-lo. Ele se remexia como se despertasse de um sonho ruim, seus olhos acinzentados lentamente ganhavam vida e eu não pude deixar de observar em como seu despertar era lindo, assim como o pôr do sol.
— Senti sua falta!
— O que você está fazendo? - tentei impedi-lo mas seus braços longos já cercavam meus ombros
— Só me deixe ficar assim por um tempo.
Poderia dizer que quis afastá-lo, e poderia ter feito, mas não quis, de todas as sensações que já havia tido nesses longos cento e noventa e sete anos, aquele abraço era uma das mais singulares existentes. Seu cabelo cheirava ao amargo da flor de lótus, por alguma razão, passei a gostar desse cheiro. Me mantive paralisada por longos três minutos, estava concentrada demais em manter a respiração constante, mas era uma missão quase impossível.
— Pode me soltar agora? - disse num tom seco e mecânico.
— Ah sim, me desculpe! - o vi me soltar lentamente de cabeça baixa, ele parecia triste.
— Bom, eu vou ignorar esse seu momento de surto por causa da flor, mas fique longe de mim! - me preparava para sair dali
— Não consigo! - Interrompi meus passos ainda sem encará-lo e tentei assimilar aquelas palavras.
— O que disse? - permanecia de costas, seu tom estava desarmado da comum indiferença.
— Eu disse que não consigo ficar longe de você, Anastacia. Me peça o que quiser, mas não me peça para ficar longe de você, eu simplesmente não consigo!
Ainda que relutante tornei a olhá-lo, ele permanecia no mesmo lugar, seus olhos estavam cravados no chão abaixo de si, e pude ver uma grama sendo arrebatada por uma gota de orvalho, não, uma gota de lágrima.
— Se isso é mais uma das suas brincadeiras, Ackles, é melhor que pare, não quero ter que----
— Eu pareço estar brincando para você, Anastacia? - seus olhos encontraram os meus e desejei que não o tivesse feito. O acizentado parecia ainda mais cintilante com as lágrimas que vacilavam em seus olhos.
— Acho que o veneno da flor realmente não lhe fez bem, acho melhor ir para casa. - desviei do seu olhar e tomei meu caminho, mas seus dedos continuavam pressionando a minha mão, seu toque era cálido e aconchegante. - Me solte! Se nos pegam aqui não ficará bem para você e sua noiva.
— Como--- - ele me soltara rapidamente e senti meu coração comprimir por dentro.
— Como eu soube? Todos já sabem que irás casar com a Collin, afinal, nada incomum, não é mesmo? Demônios de classes altas devem casar-se com outros de mesma classe, estou errada, Sam? - o fitei pela minha visão periférica mas não tive resposta, na verdade já a tinha, seu silêncio era a minha resposta.
— É recíproco?
— O quê?
— Diga-me se meus sentimentos são recíprocos, caso sejam, desistirei do contrato, desistirei de tudo e a tomarei para mim.
— Ficaste louco de vez?
— Sim, eu estou louco, Anastacia! Eu estou completamente louco, em meus duzentos anos nunca pensei que fosse sequer ser capaz de sentir um terço do que eu estou sentindo agora. Sou louco por estar cogitando descumprir as ordens de meu pai, sou louco por querer uma mulher de classe mais baixa que a minha, sou louco por ignorar todos os sinais e consequências que sofrerei por continuar com isso, sou mais louco ainda por querer largar tudo só para ficar com você. Porque eu simplesmente não consigo mais encontrar sentido em uma vida nesse maldito Inferno sem você!
Havia sido trucidada por aquelas palavras, meu rosto não conseguia formar uma expressão, minha boca não se atrevia a responder, simplesmente não podia acreditar, ou melhor, assimilar tudo aquilo que acabara de ouvir. Meu coração se encheu em chamas, chamas mais fortes do que aquelas que propagavam do caldeirão do próprio Diabo, podia ser reduzida a cinzas com o fogo que se expandia cada vez mais por cada poro do meu corpo, era um misto de sensações.
— Me diga, Ana! Se houver um orvalho de esperança, me diga! Eu me agarrarei a isso como se fosse o último suspiro que me prende a esse Inferno.
Passei a encarar cada milímetro ao meu redor, os galhos secos, o céu nublado, o ressoar dos corvos, qualquer coisa que não fosse aquele homem prostrado a minha frente. Engoli a seco, e num impulso formei a única frase racional que pude naquele momento.
— Prefiro ser arrebatada por um anjo, a sentir qualquer coisa por você.
— Ana...
— Não me chame assim! - interrompi - Lide você mesmo com esses sentimentos, eu não me importo com eles!
O deixei para trás e saí a passos largos, até ter meus movimentos rompidos por um pequeno ser que pairava a minha frente. Ele podia ter a idade do meu irmão Diego, seus cabelos eram negros e lisos assim como o de Sam, mas bem mais desgrenhados, sua pele era um pouco mais escura, e seus olhos eram incrivelmente grandes, tinham um tom amarelado, cor de mel que pareciam revirar a minha alma do avesso.
— Saia da frente, garotinho!
— Derick?! - ouço Sam gritar atrás de mim e fico confusa.
— Por que você está dizendo essas coisas para o meu irmão? - ele perguntou mais curiosamente do que criticamente.
— Seu o quê?
— Derick, vá para casa, podem vê-lo aqui!
— Por que você está dizendo essas coisas para o meu irmão? - ele tornou a falar mais incisivo que da primeira vez.
— Isso não é assunto para crianças, ok? - tentei tira-lo da minha frente mas ele segurou meu braço firmemente.
— Derick, vá para casa!
— Por que você está mentindo? - ele perguntou ainda me encarando.
— Do que você está falando?
— Por que você está mentindo pra ele?
— Derick!!! - Sam grita num tom mais autoritário que de costume.
— Ela que está mentindo, Sam. Por que você está mentindo pro meu irmão? - ele torna a me olhar inquieto - Você disse que não se importa com ele, mas gosta dele. Seus pensamentos gritam por ele, por que está lutando tanto para escondê-los?
— Não sei do que está falando, garoto. Saia da minha frente! - saí em disparada.
— É verdade, eu posso ouvir!
— Derick! - o irmão se aproxima tomando o rosto do mais novo entre as mãos forçando a encará-lo.
— É verdade, Sam! Eu ouvi! Não entendo por que ela estava mentindo.
— Eu acredito, eu acredito em você. Vem cá... - ele o envolve num sereno abraço. - Vamos para casa!
— Por que você está sorrindo?
— Eu? Bom, porque eu tenho o irmão mais incrível do mundo! - cantarolou enquanto retomavam o caminho de casa.

Mais tarde...
Não acredito que fui descoberta por uma criança, uma criança! Não consegui tirar da minha mente a imagem de seus olhos me encarando, e como havia ousado me chamar de mentirosa na frente dele! Mas de certa forma pude sentir algo estranho enquanto ele me olhava, era como se tivesse minha privacidade invadida por aqueles olhos, como se ele pudesse ler meus pensamentos, ler...Não, não seria possível algo assim. Crianças geralmente demoram muito para despertar seus dons, de qualquer forma, meu sentimentos haviam sido revelados por seu irmão. Sorri ao lembrar em como eles se pareciam, e minha lembrança retornara um pouco mais ao passado e pude ver aqueles olhos cinzas me observando, e se declarando para mim. Seria mesmo verdade, ou só mais uma de suas brincadeiras?. Afastei esses pensamentos logo que chegara em casa, a porta parecia ter sido arrombada, apressei os passos.
— Mãe? - gritei, mas não houve resposta. Os móveis estavam espalhados pelo chão, e pude ouvir alguns soluços de choro incontido.
— Mãe!
Ela estava no canto do quarto se contorcendo em posição fetal, parecia absorta em alguma dimensão paralela e não parava de chorar.
— O que aconteceu?!
— Levaram a Kris - Briel interveio
— Quem? Quem a levou?
— Crowley veio até aqui, quis recrutar Diego, mas mamãe não deixou.
— Recrutar Diego? Mas ele ainda não atingiu a idade certa.
— Sim, mas ele disse que isso não seria problema, e quando mamãe recusou, ele disse que levaria Kristen. Pedi para que me levassem em seu lugar, mas ele não aceitou.
— Kristen ainda não atingiu a idade também. O que ele quer com isso...
— Eu não sei, mas temos que fazer alguma coisa, Ana!
— Sim! Onde está Diego?
— Ainda está dormindo, ele não viu quando a levaram.
— Cuide dele e da mamãe, eu vou buscá-la!
Me preparei para sair, mas senti uma mão trêmula segurando meu braço, era o de minha mãe. Ela me olhava com lágrimas nos olhos, seus dedos comprimiam meu braço cada vez mais em desespero.
— Eu sei o que quer dizer, mamãe. - retirei sua mão da minha lentamente - Não se preocupe, eu vou ficar bem. Eu voltarei logo e trarei a Kris comigo! - ela acenou e finalmente eu parti.
O objetivo de Crowley não era recrutar nenhum dos meus irmãos, mas me atrair até o seu covil. Já havia passado um tempo desde que havia atingido a idade de ser recrutada, porém nunca quis fazer parte do seu exército, sabia que seria a minha ruína, então sempre vivi o mais escondida possível, fugindo de tudo e todos. Porém, depois daquela maldita luta, meus poderes haviam sido descobertos, sabia que não ía demorar muito até que chegasse aos ouvidos de Crowley e ele viesse me buscar, só não esperava que fosse tão rápido. Para ter chegado ao ponto de levar um refém, ele realmente não estava para brincadeiras, e eu também não.
Casa dos Ackles
— Algum problema, querido? - a matriarca se aproxima do filho mais velho que parecia ter congelado seus movimentos encarando aquela xícara de café que parecia exibir algo intrigante.
— Já teve a sensação de que algo muito ruim estivesse prestes a acontecer?!


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