Bentinho escrita por Costa


Capítulo 1
Bentinho (Capítulo único)


Notas iniciais do capítulo

Decidi escrever essa fic após ler o livro Romanceiro da Inconfidência, Cecília Meireles.(recomendo)
Este é apenas um conto que criei. Bentinho e Maria são fictícios.
Espero que gostem. :)



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Vila Rica, 1798

Essa história que eu vou contar se passou há alguns anos. Ainda era uma mocinha quando ocorreu. Meu nome? Maria da Luz Pereira Fernandes, filha de um português bastante rico.

Eu morava em Queluz, Portugal, mas quando tinha apenas 2 anos, minha mãe morreu com tuberculose. Com a situação se complicando lá, meu pai decidiu se aventurar na colônia, numa terra que chamavam de Brasil.

Eu ainda era uma garotinha quando ele decidiu fazer a vigem. Lembro que viemos em uma nau cheia de pessoas de todos os tipos: Escravos, brancos, trabalhadores, pobres, ricos. Era assustador para mim. A viagem foi longa e quando finalmente chegamos, não havia nem a metade dos tripulantes. A maioria morreu doente e foram lançados ao mar. Isso me marcou para sempre.

Era uma terra totalmente nova para mim. O calor era quase insuportável. As pessoas eram diferentes. Tinham uma cor diferente. Não eram negras e nem brancas. Era algo que chamávamos de mestiços. Nas ruas todos se misturavam, escravos andavam junto aos brancos, nobres e animais. Tudo aqui era mais verde, com cores mais vivas. As frutas eram estranhas, com gostos e sabores que eu nunca tinha provado antes. No inicio estranhei, mas acabei me apaixonando por aqueles peculiares gostos.

Ficamos um tempo da capitania de Itamaracá em uma humilde casa para os nossos padrões. Meu pai me deixava com mamãe Inês, uma negra ama de leite que cuidou de mim desde que nasci. Apesar de ela ser uma escrava, eu gostava dela como uma mãe, acho até que a considerava assim. Eu não conheci minha verdadeira progenitora e meu progenitor sempre estava muito ocupado para me dar atenção.

Com a corrida do ouro em Vila Rica, meu pai decidiu se mudar para lá. Compramos uma casa que pertencia a um barão. Era uma fazenda. Nos fundos tinha uma mata fechada e um rio. Meu pai decidiu que aquele seria o lugar perfeito para a extração do ouro.

Como havíamos acabado de nos mudar e não tínhamos empregados, meu pai teve que comprar escravos. Eu tinha 10 anos e nunca vou me esquecer daquele dia. Ele me levou até a praça central da cidade. Um navio negreiro havia acabado de trazer uma nova remessa de carga. Eram escravos de todas as idades postos em fila e acorrentados. Era um tumulto para comprar os mais fortes e os mais bonitos. Um, em especial, me chamou a atenção: era um garoto, parecia ter a mesma idade que eu, e mostrava um porte de gente grande. Meu pai logo comprou os vinte homens mais fortes que achou e 3 mulheres para a casa. Uma das mulheres chorava desesperada e se agarrava ao garoto. Nesse momento eu percebi que aquele porte que aparentava era apenas aparência. Ele se pôs a chorar junto da mulher. O vendedor os chicoteava para que se soltassem, mas aquilo os fazia se segurarem mais ainda um ao outro. Meu pai conversou com o vendedor e, depois de algumas barganhas, ele também comprou o garoto pela metade do que valia. Voltamos para casa grande com 21 escravos homes e 3 mulheres.

Meu pai já tinha contratado um feitor. Eu não gostava dele e passei a odiá-lo mais ainda depois que chegamos. Ele logo fez os escravos entrarem na senzala a custa de chicotadas e os acorrentou lá. As escravas foram levadas para dentro para mamãe Inês as ensinar como se cuidava da casa. Eram as mais bonitas da feira e serviriam como mucamas da casa, já que mamãe Inês estava ficando velha e não conseguiria dar conta do lugar sozinha.

Lembro que passamos muito tempo em uma rotina cansativa. Logo de manhã cedo os escravos eram obrigados a procurarem ouro nas minas. Eu não recebia instruções, não havia professores para isso, mas meu pai me enviava para a casa de dona Teresa. Era mulher de um dos mais poderosos extratores de ouro daqui. Ela tinha uma filha quase da minha idade. Ela nos ensinava a como agirmos como damas e também um pouco de escrita. Meu pai não queria que eu aprendesse a ler e a escrever, mas aprendi.

Essa rotina durou quase 5 anos. Dona Teresa e o marido haviam se mudado e eu perdi minha única distração. Tive que arrumar outra e isso não agradou em nada a meu pai. Aquele escravo que era de minha idade, logicamente, como eu, cresceu. Ele havia se tornado um jovem esguio e, hoje não me envergonho de falar, atraente.

Ele era muito fraquinho para ir para as minas. Havia ficado doente várias vezes e se salvado por milagre. A mãe dele havia implorado ao meu pai que não o vendesse. Ele concordou e Bentinho (o chamávamos assim, os escravos vinham com um nome próprio e não falavam o português, aqui os rebatizávamos com algo mais fácil) foi trabalhar na casa grande. Fazia as tarefas que eram mais difíceis para as escravas e, geralmente, também tratava dos cavalos.

Eu comecei a me encantar por aquele escravo. Fiquei curiosa. Queria saber mais coisas, de onde eles vinham, porque possuíam aquela cor. Queria aprender tudo o que podia. Comecei a tentar conversar com ele. Ele falava poucas palavras em português, mas comecei a ensiná-lo e, em pouco tempo, começamos a conseguir conversar. Claro, isso tudo escondida de meu pai.

O tempo passou e eu cresci. Completei 18 anos. Não tinha coragem para falar com Bentinho, mas o amava. Sei que não era certo, mas não se manda no coração. Também tinha medo de meu pai descobrir. Se ele soubesse ou desconfiasse, sei que faria muito mal a Bentinho. Nutri esse amor secreto. A cada dia o amava mais.

Tudo caminhava bem, até que descobri estar prometida em matrimônio para Jorge, o filho do sócio de meu pai, que havia voltado de Portugal. Enlouqueci. Não queria me casar. Acho que foi a primeira vez que meu pai me bateu. Tomei uma surra de cinta. Triste, sai e fui procurar por alento em Bentinho. Ele me abraçou e tentou confortar-me e sanar minhas feridas. Ele, mais que eu, sabia o que era essa dor física. Suas costas eram marcadas pela marca da chibata. Não sei o que me deu, mas troquei um rápido beijo com ele. Meu primeiro beijo. Maravilhei-me, mas ele desesperou-se. Pediu-me para nunca mais fazer aquilo e saiu correndo.

Sem escolha, casei-me com Jorge e os anos se passaram. Ele não era uma má pessoa, mas nunca senti por ele o que sentia por Bentinho. Ah, Bentinho, esse passou a me evitar desde o beijo. No fundo, entendia que ele tinha medo de sofrer represálias caso fosse visto comigo.

Mais anos se passaram. Eu já era mãe de 3 garotos. Meu pai havia falecido e a fazenda passou para as mãos de Jorge. Ele era mais benevolente que meu pai e concedia a alforria aos escravos que lhe trouxessem as maiores pedras das minas. Apenas um havia conseguido. Bentinho, na esperança se ser livre, pediu-nos para voltar para lá. Foi a primeira vez que ele trocou uma palavra comigo desde que nos beijamos há anos atrás.

Mais anos se passaram e acabei ficando viúva. Jorge foi acometido por uma doença desconhecida e não resistiu. Meus filhos estavam em Portugal estudando. A fazenda ficou o meu cargo. Uma esperança renasceu em mim com relação a Bentinho. Havia pouco tempo que um boato corria por essas bandas. Um contratador havia dado alforria e morava com uma negra, Xica da Silva, se não me engano. Talvez pudesse fazer isso com Bentinho.

Um dia, depois que os escravos voltaram das minas, chamei Bentinho para uma conversa na casa grande. Contei para ele todo meu plano. Ele me olhou e chorando me explicou que não poderia aceitar. Que não era correto um escravo com uma senhora distinta como eu. Foi quando lancei a pergunta que sempre me assombrou: se ele me amava. Ele me confidenciou que gostou de mim desde que me viu pela primeira vez na feira, quando eu tinha dez anos. Aquilo acabou comigo. Tentei fazê-lo mudar de ideia, mas ele não quis. Ele tinha mais princípios que muitos brancos por aí. Mesmo eu o tentando, ele não cedeu. Me pediu desculpas e disse que não poderia me desonrar. Chorei a noite inteira por essa descoberta.

No dia seguinte tratei de assinar os papéis para alforria-lo e entreguei a ele junto a uma quantia de dinheiro para que se mantivesse pelo resto da vida. Se não queria estar comigo, que fosse livre para seguir seu caminho, fazer suas escolhas. Acho que seria menos doloroso para mim se não o visse. Ele aceitou sua liberdade, mas me pediu um último favor: Um beijo. Queria relembrar de quando era jovem e do dia em que fora mais feliz. Eu aceitei de bom grado. Trocamos um beijo terno e demorado banhado por nossas lágrimas. Depois disso ele me disse adeus e partiu. Eu fiquei com essa lembrança feliz. Isso valeu mais que aquelas pedras que me traziam das minas.

Hoje estou com 70 anos. Já vi de tudo por aqui. Vi insurreições, senhor que se juntara com escrava e até escravo alforriado que construíra Igreja*. A única coisa que queria ver e que nunca mais vi foi Bentinho. Não sei se ele ainda é vivo. Mesmo não acreditando, espero que ele tenha sido mais feliz que eu. A minha felicidade era ele.

Fim!


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Notas finais do capítulo

* Insurreições: Refere-se a inconfidência mineira (Tiradentes).
* Senhor que se juntara com escravo: Diz respeito ao contratador Fernandes e Xica da Silva.
* Escravo que construíra igreja: Há uma lenda que um escravo alforriado, Xico Rei, com a ajuda de outros escravos alforriados ergueram a igreja do Rosário em Ouro Preto, Minas Gerais.


Isso é tudo. Espero, de coração, que tenham gostado. Se puderem (e quiserem) deixem um comentário, por favor. Críticas sempre são bem vindas.
Agradeço por terem lido e lhes deixo um forte abraço!



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