É claro, de forma evidente, que ele era um manipulador, enganador e mentiroso. Sádico. Mas de alguma forma, eu sentia sua aura, tão tenebrosa e assustadora, tão sombria e perigosa, mas com uma cicatriz profunda, irreversível pelo passado. Eu não fazia ideia como ele estava fazendo isso, e era quase perfeita a forma como nos comunicávamos apenas com o olhar, apenas com a essência. Eu não apenas via a dor em seus olhos, mas as sentia dentro de mim, como se fossemos pertencentes de uma mesma carne ou um mesmo coração.

Era o destino, eu sabia. Mas também, era além disso. Era o meu eu dizendo, com todas as palavras, que aquele homem, aquele ser, aquele demônio, já sofrera brutalmente pelo amor. E fora por minha causa.

— O que eu era em outras vidas?

Ele continuou me fitando, como se dissesse para mim que eu sabia responder essa pergunta. Lúcifer no corpo de Philip parecia cada vez mais cansado, exausto, como se ele tivesse passado por uma longa e dolorosa jornada. E na minha cabeça, as coisas pareciam fazer sentido agora. Ele ainda não me matou, porque ele jamais quis isso. Ele não me machucou, porque seria incapaz de encostar um dedo sequer em mim. E...

— Eu nunca quis seus poderes, Francesca, Dorothea, Helena, Clarice, Le Blanc, Elizabeth, Denize, Angela, Catherine e Emily.

— Que nomes são esses?

Ele lançou aquele sorriso sem humor, um leve puxar no canto esquerdo da sua boca, onde em pequenos segundos, sumiu do ar.

— Suas vidas passadas, em ordem temporal crescente. — Ele começou a andar de um lado para o outro. — Me apaixonei por cada Emily, cada alma sua pertencente a este mundo. Me apaixonei por cada espírito que habitou e ainda habita dentro de cada corpo. Esperei milênios até sua próxima reencarnação, e no total, foram mais de seis mil anos aguardando a sua chegada.

— O que nós tínhamos?

Ele voltou a me olhar.

— Amor, paixão, fervor. O que existia entre nós Emily, fora muito além do destino. Nos apaixonamos desde o início dos tempos. Desde quando os primeiros anjos foram criados.

— Anjos? Do que está falando? Lúcifer, o que eu era?

— Você era um anjo, Emily. Uma serafim.

Meu coração disparou, e uma necessidade absurda de lembrar-me tornou-se mais que urgente. Tornou-se primordial. Eu era um anjo?

— Se eu era um anjo, o que estou fazendo na Terra? Eu me rebelei?

— Jamais, você é favorita deles. Você só está reencarnando, Emily. Porque você possui os poderes guardiões do céu. Sua função aqui é protegê-lo. Ninguém te contou isso?

— Sim, mas não que eu era um anjo!

Eu não entendia. Como eu não me lembrava de nada? Isso só poderia ser mentira!

— Deus me castigou de propósito. Depois que me rebelei, ele tirou você de mim. Ele sempre soube dos meus sentimentos — ele soltou uma risada falsa —, ele me criou, não é mesmo?

— Eu não acredito em você.

Ele começou a se aproximar mais uma vez, e eu me senti insegura de repente.

— Emily, por que eu mentiria? Eu só queria... Eu só queria que você se lembrasse do que vivemos juntos. Do que passamos juntos. Ah, Emily, como eu queria você comigo... — Ele fez cara de dor. — Como eu queria lhe mostrar o universo! Você não faz ideia... Do quanto eu tentei.

— Mas não conseguiu, não foi?

Ele ficou sério.

— Não.

— Você não conseguiu... Porque eu nunca quis ficar com você.

Mas quando eu disse isso, Lúcifer pareceu levar um susto, enrijecendo-se para trás. Ele parecia surpreso, embora sua expressão estivesse calma.

— Você já me amou. Mas o destino enfeitiçou você. Tirou você de mim. O destino que Deus quis escrever de propósito só pra levá-la para longe.

— Para o Philip.

Ele não respondeu, mas seu rosto tornou-se sombrio.

— Eu não consigo acreditar nisso. O que eu sinto por Philip não é apenas "feitiço" do destino. — Engoli em seco. — Eu sinto, aqui dentro, que... Que não pode ser verdade. Que não é verdade!

— Você não se sente atraída por mim, agora que sou praticamente o próprio Philip?

Ele sabia que eu estava atraída, por isso perguntara isso. Mas antes que eu pudesse mentir e negar, ele continuou:

— Agora finalmente conseguiremos ficar juntos. Você é o amor da minha vida. Você é minha, finalmente.

— NÃO Lúcifer! Não sou sua! Nem nunca fui, e nem nunca serei! Eu não amo você, eu odeio você. Eu... Tenho nojo de você — eu berrei com todas as forças, sentindo que meus pulmões explodiriam. E de certa forma, a queimação dentro de mim só parecia confirmar esse fato.

Lúcifer pareceu assustado, ou nervoso... Ou decepcionado. Seu olhar de angústia invadiu todo o ambiente, e o que isso causou em mim foi muito mais que uma "coisa" negativa. Era mais que sombria, ou um sentimento de luto, ou uma dor profunda no peito... Era quase mortal. De repente, ele se afastou de mim e estalou os dedos.

Foi quando na minha frente, um dos meus maiores inimigos apareceu.

Hedrick estava amordaçado. Havia correntes tão grossas de ferro que quando chocavam-se ele gritava de dor. Ela estava com algum tipo de poder anti-movimento. Ele estava completamente acabado, sem nenhum resquício de esperança em seu olhar de agonia. A marca do pacto brilhava como uma chama flamejando, como a própria luz do sol concentrada naquele ponto. Era forte de mais, profunda de mais, e atordoante de mais. Hedrick sangrava por várias partes de seu corpo, como se acabasse de sair de uma sessão longa e interminável de tortura.

Agora, ele olhou pra mim, implorando-me apenas com seus olhos pela vida. Ou pela alma.

— Você quer uma prova de amor, não é? Você só precisa entender o quanto eu amo você. O quanto eu sacrificaria por você. Então é isso que você terá — ele começou a andar em volta de Hedrick, lentamente.

E prosseguiu:

— Esse homem foi responsável pela morte das duas pessoas mais importantes da sua vida. Querida Emily, se você soubesse o que esse ser fez com os seus pais antes de cortar suas gargantas...

O ódio dentro de mim crescia com tanta força que eu mal concentrava-me na minha respiração. Havia descontrole, e mais ódio. Muito ódio.

— ... Você terá sua vingança, meu amor.

E todo o meu ódio pareceu ser compartilhado com os dedos de Lúcifer, que num gesto rápido, as correntes pegaram fogo, acendendo uma luz semelhante a de sua cicatriz, só que acompanhada de um grito mortal de Hedrick que ecoou por todo o salão evidenciando a agonia e a dor que ele sentia. Suas veias estavam saltadas, como se fossem explodir, e seu sangue jorrava pelos poros junto com o seu suor. Queimava, ardia, como ácido. Eu sentia através da sua expressão. Ele se sacudia, lutava, berrava ainda mais alto.

E no meio disso tudo, Hedrick novamente voltou-se para me olhar. Ele chorava. A tortura parara por algum pequeno momento, e a respiração dele era profunda e urgente. Ele estava prestes a morrer.

Lúcifer tocou em seu ombro, e mais um grito mortal cortou o silêncio de poucos segundos. Ele caiu no chão, de joelhos. Ele franzia o cenho, inclinando as costas para trás e olhando para cima, como se procurasse ajuda superior. Mas daqui ninguém os ouvia, era impossível.

A corrente começou a afundar em sua pele. Sua carne derretia a cada momento, e o cheiro repugnante impregnou o ar. O cheiro de carne morta, queimada.

Então, observando seu olhar, seu momento de dor e sofrimento, seu momento de castigo… eu não pude mais permanecer preenchendo o ódio em mim. Algo despertou-se em mim. Um desejo de proteção, de acolhimento, uma busca por um eu existente dentro de mim de desistir disso tudo e ajudá-lo. Ele fizera algo horrível com a minha família. Ele matara meus pais. Mas por que… por que eu não queria machucá-lo?

— Lúcifer — imediatamente ele olhou para mim. Eu o chamei em voz baixa, mas urgente. — Deixe-o — ele levantou a cabeça, sério. — Por favor.

Ele balançou a cabeça.

— Desculpe-me, meu amor — ele deu uma pausa. — Mas a vingança aqui, é comigo. Hedrick machucou você. E isso eu não posso permitir. Ele merece a morte.

— Não Lúcifer, não por favor. — Cheguei mais perto dele, procurando seu olhar. Estava ficando tão difícil evitar... Estava tão difícil não vê-lo como Philip... E como ele dizia, eles já estavam se fundindo. Lúcifer se tornava Philip a cada momento, enquanto Philip se tornava Lúcifer também.

Segurei em sua mão, esforçando-me para que ele me ouvisse. Mas ele parecia cego, cego e assustadoramente seguro de si. E de certa forma, isso me assustava.

— Como sempre tão bela... E tão piedosa — ele sorriu, e seus olhos pareceram brilhar para mim. O cinza opaco de antes agora tornava-se mais claro, e aos poucos, era quase os olhos verdadeiros de Philip. Meu coração disparava com tanta força que era difícil respirar calmamente.

O mais estranho era que Lúcifer falava de mim com base nas minhas outras vidas — ou outras experiências passadas. Era assustador e muito incomodo alguém falar de você e você não conseguir se lembrar. Era angustiante.

Mas foi nesse momento, que tudo me surpreendeu. Meus olhos vagaram pela imensidão do salão, o tempo tornou-se lento, e a única coisa que eu conseguia ter consciência era de seu olhar tão jovial e belo, tão… puro? Não, essa não era a palavra correta. Mas era pecaminosamente perfeito, maravilhoso. Eu já não tinha absoluta noção de realidade, e mal conseguia me lembrar o que antes me incomodava. A pessoa na minha frente era perfeita, como um anjo. E ele sorria… ah, seu sorriso… por que era tão encantador e tão impecável? Quem era a pessoa na minha frente que de alguma forma me atraía tanto?

O tempo parecia retorcido, e um embaralhamento de diversas realidades, sentimentos e sensações pareciam esvair-se da minha mente de forma tão rápida que era impossível acompanhar.

Eu não conseguia me lembrar.

Eu já não me lembrava de absolutamente nada.

Mas o que havia dentro de mim… bem, era mais medo que paixão.

— Você aceita se casar comigo, Emily Foster Stanford? — Perguntou a figura deslumbrante na minha frente. Eu o queria — mas algo me dizia que não era assim que deveria ser.

Mas quando já possuía a minha resposta — a resposta da minha intuição, a mais urgente e provavelmente a que vinha lá de dentro…

— Sim, eu aceito.

… Foi o meu coração que respondeu.