Anjo Mau escrita por annakarenina
Notas iniciais do capítulo
Esse capítulo é narrado por Emily Foster
Seus lábios sangravam continuamente, e de longe, seus olhos pareciam cristais verdes, ou talvez esmeraldas. Ela era assustadora, mas estupidamente bonita.
— Ora, ora, olha o que eu encontrei aqui — ela apontou para Gabrielle ao meu lado. A menina estava completamente enrijecida, e sua respiração era tão ofegante que eu conseguia ouvi-la com facilidade. Gabrielle parecia temer essa mulher.
— Lisandra, você só caiu agora? — Perguntou Gabrielle. Mas a mulher não tirava os olhos de mim.
— Você está nos traindo, Gabe? — Perguntou ela, desviando finalmente o olhar.
— Não — ela disse. — Não é por nós que estou aqui, é por Philip.
Ela soltou uma risada nervosa.
— Philip? Afinal, onde ele está? Ele está com você, não é Emily? Vocês estão juntos, não estão? — Lisandra parecia querer chorar, mas reprimia com veracidade através da voz. Ela estava muito irritada, e me fuzilava com os olhos.
— Não — respondi duramente. Ela era um deles, um dos que queriam me matar. — Seja lá quem você for, ele está em perigo — continuei.
Lisandra ainda me fuzilava com os olhos — mas dessa vez, ela pareceu relaxar, só um pouco.
— O que é essa energia toda? — Ela fez cara de nojo e olhou em volta.
— É claro que é a guardiã — respondeu Gabrielle.
Mas a mulher balançou a cabeça várias vezes em negativo, como se quisesse afastar a ideia.
— Sua idiota, é negra. É doentia.
— Lúcifer — foi a única palavra que Susan disse.
A mulher instantaneamente enrijeceu, e como Gabrielle, um olhar assustado atingiu suas íris esverdeadas.
— Do que está falando? Ele ficou lá… Por que ainda o sinto aqui?
Eu olhei para Gabe, a expressão sombria.
— Ele está em Philip.
E nesse momento, a expressão de Lisandra desmoronou. Eu não sabia se ela iria chorar, ou qual seria sua próxima reação. A verdade é que a mulher estava em choque, e paralisada, como num transe eterno. Ela baixou o olhar e começou a fitar o chão, como se processasse as palavras lentamente. Sua boca se abriu, buscando a formação de algum som, mas de lá nada saiu, apenas uma estranha necessidade de expressar-se. Nela, eu via sua necessária contenção, mas não entendia o porquê ela não fazia nada. Se eu pudesse ler seus olhos, nesse momento eles significavam uma dor interna.
— Então é isso — disse ela, com os cabelos atingindo o rosto. — Era tudo um plano — a mulher falou tão baixo que eu mal pude ouvir.
Gabrielle aproximou-se cuidadosamente dela, em passos lentos e receosos. Como se soubesse que à sua frente havia uma predadora de grande porte, muito perigosa.
A decepção preenchia a expressão de Lisandra.
— Sim, Lis. Ele pretendia o tempo inteiro o corpo de Philip. — Disse Gabrielle.
— Rá — Lisandra sorriu, mas não era um sorriso de alegria, e sim de dor. — Era isso o tempo inteiro? Aquele demônio mentiu para nós o tempo inteiro?
— É muito provável que ele permaneça com o corpo e espírito de Philip para sempre…
— Porque ele já tem a alma dele — finalizou Lisandra.
— Ele quer a Emily. Ele quer matar a guardiã.
Lisandra olhou para Gabrielle.
— Não.
E então, em uma pequena fração de segundo, consegui ver perfeitamente uma lágrima caindo de cada olho de Lisandra. Ela as limpou rapidamente, tirando os fios lisos do rosto. O vento piorava a cada instante — uma tempestade se aproximava. E enquanto isso, era nós quatro na rua, próximo à uma cratera em que um provável anjo caíra.
Gabrielle olhou em duvida para Lisandra, e num momento, a possibilidade de Lúcifer não querer me matar agradou-me mais.
— Ele não quer matá-la. Ele a quer para ele.
Minha garganta pareceu fechar-se, e eu esqueci de respirar por alguns segundos. O que essa mulher estava dizendo?
— Lis, do que está falando?
Lisandra revirou os olhos, e então saiu de dentro da cratera, já restabelecida. Segundos depois, suas cicatrizes começaram a curar, e o ser angelical ficava a cada instante mais angelical ainda. Lisandra parecia ser feita à mão. Seus traços de humanidade eram quase imperceptíveis, inexistentes. Cada parte do seu rosto era pequena e delicada, afinada, como se definitivamente não pertencesse a esse lugar, e sim, a um lugar infinitamente mais belo e com pessoas mais belas que aqui. Sua beleza estonteava qualquer gosto, afinidade ou restrição. Era a pessoa mais próxima da perfeição que eu já havia visto, ou talvez, sonhado. E então eu entendia claramente a definição de anjo — seres perfeitos, invocáveis e extremamente fortes. Ou talvez, perigosos.
Mas quando a resposta de Gabrielle não foi atendida, minha guarda aumentou, e um medo visível deve ter estampado-se em meu rosto — Lisandra me fitava por um longo período, com as pupilas dilatadas, o corpo enrijecido e uma cicatriz grande e aparente em seu pulso esquerdo. Seu ódio por mim tomava forma ali, naquele momento, e eu sabia com uma grande escala que mesmo que estivéssemos do mesmo lado, ela jamais seria minha amiga. Seu olhar semicerrado me fez recuar um passo — algo perfeito para uma perdedora como eu. Mas eu sabia que se não recuasse, eu poderia sofrer um ataque de pânico muito facilmente — e ela sabia que me intimidava.
— Lis, o que está fazendo?
— Eu quero fazê-la sofrer — respondeu ela, amargamente. Mas sua voz saiu fraca, quase como se fosse inútil sua tentativa.
— Lisandra, pare — Gabrielle segurou em seu pulso, pressionando sua cicatriz. Ela desviou o olhar mutilador, agora passando para a amiga. Pressionar a cicatriz pareceu incomodá-la — e talvez até pela dor. — Machucar Emily não vai levá-la a lugar algum. Isso não irá trazer quem você ama de volta.
Eu tentei entender a forma de amor que Gabrielle referiu-se. Mas algo me dizia que era um amor muito maior que meros amigos.
— Isso não estaria acontecendo se não fosse por ela!
— Iria acontecer de qualquer jeito. Haveria outra guardiã, haveria uma outra pessoa…
— Não! Não mais — ela berrou, quase sufocando. — Eles são marcados — Lisandra estava me olhando, e eu tentei entender o que suas palavras significavam. A única marca que eu conhecia era a de Lúcifer.
— O que você está dizendo, Lis?
E então, ela começou a chorar continuamente, e a mulher poderosa aparentou ser alguém com mais dificuldades dentro de si do que mostrava. Lisandra amava Philip — e isso estava tão claro quanto seus olhos que eu já não sabia se apenas me olhavam ou se me analisavam. A segunda opção era muito mais provável. Eu sentia uma queimação dentro de mim, meu estômago embrulhava, e eu estava com medo do que estaria por vir. Lisandra parecia saber muito mais que Gabrielle.
— Eu falo do livro de Deus. — Ela, ainda com as lágrimas escorrendo e a expressão de negação para mim, lançou uma risada abafada, sem humor.
Gabrielle estava com a mão na boca, e olhava a amiga como se não acreditasse no que ela dizia. Lisandra então a olhou, dando de ombros.
— Isso é mentira, é impossível. Ninguém jamais leu o livro de Deus.
Lisandra revirou os olhos, parecendo irritada com a subestimação de Gabrielle.
— Mas eu li, Gabe. E acredite se quiser, vi coisas ali ridículas, praticamente impossíveis de acontecer.
— Mas quem o ler, será expulso do céu. E até mesmo... — Gabrielle parou, e refletiu suas palavras. — Você não caiu dos céus porque se rebelou?
Lisandra não teve reação, e tudo indicou uma afirmação invisível.
— Lis... Você nunca nos contou nada... O que há naquele livro sobre a guardiã? Como você conseguiu aquele livro..? Como você o encontrou?
Lisandra sorriu falso.
— Eu era uma serafim, Gabrielle. Eu era a mais próxima de Deus. Meus poderes jamais devem ser subestimados, e aliás — ela parou, fitando-a —, eu sei os segredos dos céus.
Quando olhei para Susan, a mulher estava assustada. Ela me olhou também e balançou a cabeça em negativo — e isso pareceu ruim, muito ruim.
— O que havia sobre mim? — Eu perguntei quando tive forças, e preferi não tê-lo feito quando Lisandra voltou para mim com seus olhos mortais e visivelmente tristes.
— Algo ruim, Emily. Não havia nada sobre a guardiã lá. Havia sobre você... — Houve uma pausa. — E Philip. — Sua voz falhou no final, como se sentisse muito por ele.
— O que eu e Philip... O que nós estávamos fazendo lá?
Eu estava tão nervosa que a minha voz saiu desengonçada, sem uma pergunta completa e nítida, mas como uma tentativa desesperada de perguntar tudo de uma vez. A chama dentro de mim crescia como uma criança querendo ver a luz.
Lisandra balançou a cabeça em negativo, e deu meia volta.
Em lentos passos, ela caminhou como se não tivesse rumo a tomar. E então, ela olhou para mim novamente, sem virar seu corpo.
— Está acabado, guardiã. O seu destino já foi escrito — houve uma breve pausa. — Pelas mãos de Deus.
Suas palavras saíram ásperas, dolorosas e terrivelmente sombrias. Ela deu um outro sorrisinho sem humor, e voltou a caminhar novamente como se sua vontade de viver tivesse esvaído-se completamente. E então, sua última frase ressoava na minha cabeça como pancadas violentas e intermináveis. Um pavor formava-se na minha garganta, e novamente a queimação ardente passava por todo o meu corpo, parecendo dilacerar cada parte minha. Era o meu poder, meu único poder. O meu destino já fora escrito — mas essa frase tornava-se muito mais assustadora quando eu era a única pertencente a esse caso.
Entretanto, o pior não era isso — o pior era que Lúcifer estava a solta, e preocupar-me com os negócios do meu destino era pura perda de tempo. Eu não me importava comigo — eu me importava com Philip, que de alguma forma, estava lá dentro. E eu precisava, de qualquer forma, encontrá-lo e salvá-lo.
— Lisandra — chamei, não pensando muito bem. Por que eu não tive medo dela quando… quando ela parecia tão assustadora? Por que eu via, em seus olhos, algo melhor e mais calmo que a fúria dela aparente?
Ela me olhou mais uma vez. Seus olhos estavam caídos, sem vida, seu corpo não estava mais enrijecido como antes, e havia uma expressão puramente angelical desanimada, também sem nenhum resquício de vontade de viver. Ela fora enganada por Lúcifer, e o mundo parecia estar acabado para ela. Mas algo me dizia que não era somente a decepção em seus olhos que eu via; ela estava triste por algo a mais. E definitivamente não me envolvia unicamente — havia Philip também. Lisandra sabia de mais coisas que eu poderia imaginar. E ela temia por isso.
— O que vai acontecer?
— Tudo vai acontecer, tudo o que Lúcifer planejou, tudo o que foi escrito.
— Você o ama, não o ama?
E ela sabia exatamente de quem eu falava. Da única pessoa que poderia ser.
— É claro que eu o amo — ela respondeu, com voz de choro. — Mas eu só quis tentar salvá-lo, eu só tentei tirá-lo desse caminho.
— Que caminho?
E então, numa fração de segundo, pequena e imperceptível, minha realidade já não era mais a mesma. Eu me vi caindo, profundamente, numa escuridão inalcançável e aparentemente interminável. Era um vazio sem fim, como um túnel tão negro que eu já não entendia mais a noção de altura — ou a noção de mim. Eu estava desesperada, sufocada, e meus gritos eram inteiramente inúteis, abafados e uma falta de ar constante parecia sugar a minha vida a cada pequena tentativa de manter-me consciente.
Conforme a profundidade estendia-se para o ilimitado, as lembranças começaram a fluir na minha cabeça de forma vaga e embaralhadas. Minha ida à Disney pela primeira vez com sete anos; meu primeiro urso de pelúcia edição limitada; e a morte repentina dos meus pais. E foi aí que tudo parou — na situação mais trágica da minha vida, a mais dolorosa, a mais inimaginável. É claro que todo ser pensa quando alguém importante irá morrer — mas sempre pensamos positivo, acreditando fielmente que eles partirão bem velhinhos. E era assim que eu pensava. Até acontecer o que aconteceu.
E eu parei, finalmente, num chão frio de concreto. Ou algo semelhante ao concreto. Era duro, mas a queda não foi tão brusca quanto eu pensava; na velocidade que eu caía, eu poderia partir em centenas de pedaços. Mas uma pequena dor abaixo de mim fez tudo parecer inacreditável. Eu estava no nada, e a escuridão envolvia absolutamente tudo.
Foi quando tudo começou a clarear, lentamente — abrindo-se para mim como olhos enxergando a vida pela primeira vez.
Eu estava no chão de um salão brilhante e perfumado. O cheiro era até enjoativo de tantas rosas. E eu descobri de onde vinham — havia pétalas delas por todo o chão, envolvendo-me num círculo, num elo perfeito de cada extremidade. E eu estava exatamente no centro dele, como se fosse feito especialmente para mim.
Ao meu redor, tudo o que eu via era ouro e ouro. Pinturas de anjos com espadas flamejantes enfeitavam praticamente todo o salão, além de esculturas que pareciam reais de mais para serem artificiais. Elas olhavam para o vazio, observando o nada, e suas expressões de aceitação carregavam consigo um ar profundamente melancólico e sentimental.
E então duas portas enormes abriram-se, e de um breu, uma forma humana conhecida surgiu de lá. Era Philip, ou Lúcifer no corpo de Philip — e seus olhos sem luz ou vida me encaravam de longe. Ele sorria, e seu sorriso sempre lembrava-se o do meu amor — mas nem chegava perto do que eu sentia quando era o sorriso próprio de Philip.
Ele abriu os braços, num gesto de boas vindas. E eu sabia internamente que ali era o inferno. E eu sabia também, que estava ali pelo sacrifício.
— Querida Emily… como é bom vê-la de novo.
Seus olhos maliciosos causou um arrepio em mim, e o que eu via ali era um desejo intenso de ter. De me ter.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Notas finais do capítulo
E então lindas? Me contem o que estão achando! Um beijo enorme