Serena escrita por Maria Lua


Capítulo 3
Uma história perturbadora




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Em geral, o primeiro dia é sempre conturbado. As pessoas ficam confusas, perdidas, sentem-se sozinhas, sentem-se intrusas, como se não pertencessem àquele lugar. Infelizmente, não há como melhorar isso. Não devemos nos prender às ilusões de, estranhamente, alguém legal te acolher e te ensinar a se enquadrar no lugar. Esse tipo de coisa não acontece. Mas, é claro, toda essa situação tem, sim, como ser pior.

Depois de uma longa tarde dando aulas a seis turmas de primeiro ano diferentes, eu mal tinha fome. Sentia exaustão. Mas, como é o meu primeiro dia, decidi ir jantar nem que seja um prato de sopa. Ao chegar à sala de refeições, sendo o último a chegar, fui logo sentando e fazendo o meu prato. Todos conversavam sobre o período de aulas, até que uma das professoras me puxou para o assunto.

– E o senhor, Sr. Humphrey? O que achou das garotas? – ela era uma senhora simpática. Seus cabelos eram brancos em sua totalidade. Olhos pequenos que sequer seriam aumentados pelos óculos. Ela sorria. Apesar do uniforme consideravelmente detestável, ela usava um cachecol rosa no pescoço. Era uma mulher com a presença muito agradável. – Ah, Coutney. É o meu nome.

– Muito prazer. – a cumprimentei. – É a minha primeira vez em sala de aula, admito ter ficado um pouco assustado de início. Algumas delas destacaram-se, seja com inteligência, interesse, ou simplesmente uma mania incompreensível de aparecer. – a maioria das professoras próximas riu. – No geral, foram ótimas. Nada que me atrapalhou.

– Mania incompreensível de aparecer. Deixe-me adivinhar: primeiro ano A e primeiro ano F. Estou certa? – uma delas comentou. Limitei-me a rir.

– Exatamente.

O resta da noite seguiu dessa maneira. Fiquei mais uma hora ali, conversando e procurando conselhos para lidar com as alunas mais rebeldes ou desinteressadas. É claro, elas citavam algumas, diziam coisa ou outra, mas sempre que mencionavam no nome da Serena eu travava. Relembrava da humilhação que ela me causou na primeira aula. E, também, a humilhação que eu me causei. Serena não aparentava ter quinze anos, estava na frente da turma, aparentemente dando aula, era extrovertida. Achar que ela era uma professora é um erro comum, mas ter desejos e esperanças com uma aluna é algo inaceitável. Está certo que qualquer impureza ficou em minha imaginação, mas e se descobrem? E se eu falo alguma coisa, ou ela fala de alguma impressão que teve, ou alguém inventa um boato que não saberei negar? Perco o meu emprego, as chances de ter um futuro trabalho que se preze, e ainda corro o risco de ir preso.

No caminho de volta para o dormitório eu ouvi algumas risadas em volta, mas não via ninguém. Procurei mais um pouco, detrás dos muros. Logo, o som dos cochichos aumentava. Mesmo à distância eu vi um grupo de alunas, depois do toque de recolher, sentadas na beira da escada. Algumas vigiavam as outras, que bebiam em garrafas pequenas e metálicas.

– Ei! – chamei, me aproximando. Elas começaram a pegar suas coisas e sair dali, então reconheci uma delas. Serena. Ao ver que era eu, ela parou de catar as garrafas, deixando a tarefa para as amigas, que rapidamente saíram correndo e rindo dali. Quando cheguei ao seu lado, ela sorria. – O que pensam que estão fazendo?!

– Pensam? Mas só estou eu aqui fora.

– Não banque a engraçada. Eu vi que estavam bebendo, e tenho certeza de que não era cidra. – falei.

– Se sabe, por que perguntou? – novamente suas roupas estavam diferentes do fardamento. Apesar da saia igual, ela usava um moletom escarlate por cima. Agora, seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo raso, onde várias mechas de cabelo caem por seu rosto de uma maneira encantadora. Isso era quase irritante.

– Serena, sabe que horas são? – ela deu de ombros. – Oito e quarenta da noite. Quarenta minutos depois do horário em que você deveria estar na cama. E, ainda por cima, bebendo. Algo estritamente proibido aqui, inclusive para nós, professores.

– Mas você não vai me entregar, vai? – ela falava com convicção, como se soubesse que atitude eu iria tomar. Ela mexia na ponta dos cabelos, roçava as pernas uma na outra, movia-se de um lado para o outro, e cada movimento desses me hipnotizava mais. Eu sentia o ambiente ficar mais quente, como se ela fosse a dona do mormaço. Meus sentidos se apuravam, de modo que eu ouvia a língua dela roçando no céu da boca, sentia o cheiro de baunilha de seu cabelo me abraçando, e até mesmo a temperatura de seu corpo sugando o meu para mais perto.

– Venha comigo. Vamos até a diretora Wilkes. – fomos. Logo estávamos batendo na sala dela. Demorou um pouco para abrir, e quando o fez a sua expressão era de pura surpresa a me ver, e irritação ao ver a Serena, que sorria. – Desculpe-me incomodar, diretora. Mas encontrei essa garota do lado de fora do quarto com umas amigas consumindo bebida alcoólica.

– Por favor, entrem. Sentem-se. – quando o fizemos, ela parou alguns instantes encarando a garota, com a testa franzida. – Imagino que não vai entregar as suas amigas. Estou certa?

– Corretíssima. – ela falou audaciosa. A diretora limitou-se a pôr a mão na testa e assinar alguns papéis. Eu estava perdido, nunca havia ido para a diretoria em meu tempo de escola, mas por relatos eu conseguia ter certeza de que não era dessa maneira.

– Outra advertência. Mais uma vez eu repito: não saia da cama depois do horário, Srta. Doolitle. É proibido. Você sabe. – entregou o papel da advertência para ela. – Agora vá. Corra para a cama e não desvie o caminho.

Serena assentiu e levantou, andou até a porta onde se voltou para nós com um deslumbrante sorriso.

– Sra. Wilkes. Sr. Humphrey. Tenham uma boa noite. – e saiu.

Olhei para a diretora, que aparentava estar exausta. A indagava com o olhar, querendo explicações para o ocorrido e a saída praticamente impune da aluna.

– Sr. Humphrey, espero que entenda. Não dou privilégios para a Srta. Doolitle, de maneira alguma, mas a situação dela é um pouco diferente das demais. Peço apenas sua compreensão. Serena é uma garota que passou por certas coisas que ninguém precisava passar em vida. Sua mãe foi sequestrada e assassinada quando ela tinha apenas cinco anos de idade. Aos sete, seu pai casou novamente. Aos dez, ele desaparece, é dado como morto, e a deixa uma fortuna imensa. No mesmo ano é mandada para cá, onde a madrasta, sua tutora, a mantém, paga suas despesas, a manda uma mínima mesada, e ainda nos oferece uma grande ajuda com as despesas do colégio para não incomodá-la com assuntos triviais, não mandá-la para casa nas comemorações festivas, e não expulsá-la.

Ouvi tudo sem dar um pio, mas meus olhos arregalavam-se a cada palavra. Eu estava em choque. A história da garota era mais perturbadora que muitos contos do H.P. Lovecraft.

– Como permitem uma coisa dessas? A madrasta é responsável por ela, e se não consegue ser, deveria ser passada para outro tutor. E, de qualquer maneira, ela tem que ser chamada para conversar. A enteada dela pode ficar perturbada com essa situação, pode enlouquecer. Nem imagino o que se passa na cabeça dela!

– Nós a procuramos. Mandamos cartas, e-mails, telefonamos, mas está sempre em países distantes, não pode vir, não quer vir, não tem viabilidade. E quanto a outro tutor, não existe. Ela veio de uma linhagem má sucedida no quesito saúde. Todos mortos. Eles são uma família importante, e a garota é uma familiar sanguínea da realeza belga. Nós tentamos de tudo para ajudá-la, mas está sempre se envolvendo em problemas.

– Que tipo de problemas, se me permite perguntar?

– Antes, com álcool. – começou.

– E agora, também. – a interrompi.

– Não. Ela não estava bebendo. Estava acompanhando. Há dois anos não toca em álcool. Prometeu a todos nós quando foi internada, mas jamais parou de sair com as meninas que bebiam, que fumavam. Que eram arruaceiras. A psicóloga do colégio diz que é uma maneira de ter a atenção que ela nunca recebeu da família. Ela é uma ótima garota. Inteligente, bem educada, e com um dom comunicativo surpreendente. Ela comanda as meninas da turma. Quando os professores saem da sala, ela vai para frente do quadro e serve de oradora da sala de aula. Tem um futuro brilhante, se souber obedecer as regras.

Tudo o que ela disse explicou o ocorrido desta manhã, mas também me chocou. Não sabia como reagir a esse bombardeio de informação.

– Peço que não conte isso a ninguém, mas preste atenção nela. Todos os professores tentam ajudá-la, mas até hoje ninguém teve êxito. Não deve ser diferente com o senhor, mas quanto mais ajuda, melhor.

– Está bem. Boa noite.

Fui para o meu quarto. Tomei uma ducha, tentei ler, tentei me distrair na internet, mas nada conseguia arrancar Serena Doolitle da minha mente. Como aquela menina tão doce tinha esse passado? Seus olhos grandes e azuis demonstravam tanto sentimento que jamais poderia identificar dor. Seu rosto era tão suavizado que qualquer linha de expressão passa despercebida. E a sua postura, tão segura de si, orgulhosa, divertida, esperta e autônoma, mas, ao mesmo tempo, petiz, demonstrava o quanto deve ter aprendido com tal situação. Tais situações, na verdade. Adormeci com a imagem de seu rosto em mente, e acordei dezenas de vezes no meio da noite com a mesma visão.


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