Um Conto de Natal escrita por FireboltVioleta


Capítulo 13
Reparação




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"Ama a verdade, mas perdoa o erro."

Voltaire

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Após alguns segundos, reapareci no delicado tapete de neve que recobria a calçada da casa de Aline.

Olhei para o imóvel cinzento, que mal dava impressão de ser tão animado e colorido por dentro, como eu havia visto na noite passada.

Ali, naquele momento, me veio a consciência de que aquele poderia ter sido meu lar o tempo todo. Ali era onde estava a família de minha mãe.

Irritava-me não conseguir resgatar nenhuma lembrança dela agora. Senti uma tristeza me angustiar, quando percebi que aquilo era só mais uma das coisas que eu havia ignorado com tanto afinco durante os últimos vinte anos.

Esfreguei as mãos no rosto, aflita. Como eu tinha deixado tudo aquilo acontecer?

Sim, eu tinha passado por muita coisa. Mas esquecer meus pais – esquecer minhas origens – foi um dos piores erros que eu já cometera.

Eles haviam morrido lutando pelo que era certo. Mas e eu? O que eu tinha feito da minha vida desde então?

Mal conseguia jogar toda a culpa em Howard Ogden agora. Eu sempre o odiara pelo que fizera comigo... e, nos últimos três anos, estava praticamente me tornando o meu avô. Nem sabia como julgá-lo depois daquilo.

Balancei a cabeça. Não ia ficar pensando muito nisso naquele momento. Tinha um Natal para passar com minha família.

Família... nunca pensei que eu e essa palavra teríamos uma associação um dia!

Suspirei, me adiantando e batendo na porta de madeira, batucando o pé no batente.

Nem me lembrei de olhar pela janela para conferir se haviam pintado meu quadro, como o Espírito do Natal presente me mostrara.

Então, não pude refrear um riso mental quando William me recebeu, ainda com um resquício de tinta verde no rosto.

O rosto dele empalideceu, como se um dementador tivesse sugado cada gota da cor da sua pele. Ergui a sobrancelha, crente que o garoto ia cair desmaiado de cara na neve.

– Oi, Will – murmurei, segurando o riso.

A boca dele abriu e fechou pro alguns segundos, como um boneco de corda. Finalmente, ele conseguiu gaguejar algumas palavras.

– Como... Helena... sabe...?

– Quem é, Wiliam? – berrou uma garota de dentro da casa.

Ele olhou de mim para o ponto atrás de seu ombro, aparentando querer sair correndo.

– Se eu disser, não vai acreditar – ele choramingou, esfregando a bochecha para limpar a tinta do rosto.

_ Ai, sai da frente, tampinha – alguém surgiu por trás de William e o empurrou para dentro, rindo.

Vi o pincel na mão de Aline cair no chão, respingando a neve de verde, quando ela finalmente me encarou.

Os olhos dela se arregalaram.

– Helena? – Aline guinchou, espantada.

Afaguei o casaco, sem graça, tentando me distrair com o olhar indulgente de William por trás de Aline.

– Bem, você me convidou... – chiei, olhando para baixo – se... o convite ainda estiver de pé...

Aline sacudiu a cabeça, incrédula.

Alguma coisa muito estranha pareceu pairar entre nós duas.

Mesmo assim, não pude deixar de ficar surpresa, quando Aline saltou para frente, me acolhendo num abraço apertado.

Você veio! – ela cantarolou, alegre – veio de verdade! Não acredito!

Em vinte anos, não me lembrava de ninguém ter me abraçado... nem tido coragem de fazê-lo.

Arfei, chocada com o quanto aquilo era bom.

Levantei meus braços, retribuindo o abraço. Nossa, aquilo era realmente fantástico.

William saiu correndo porta adentro, com a expressão ainda pasma.

Aline riu, se afastando de mim e sacudindo de leve meus ombros.

Desde que ela finalmente me aparecera pela primeira vez, jurava nunca ter visto Aline tão feliz.

– Claro que está de pé, sua boba – ela segurou minhas mãos, eufórica – ande, entre logo. Vai se resfriar aí fora.

Deixei Aline me puxar pela mão para dentro da casa, sentindo minha garganta estremecer com uma risadinha.

O choque de todos que estavam na mesa não poderia ter sido maior, quando, por fim, surgi na sala de jantar.

O quadro que havia adiante – o que havia sido pintado – já estava limpo, embora minha eu enquadrada ainda espumasse de raiva, saltitando irritada em cima de uma cadeira.

Ri ainda mais, deixando todos ainda mais embasbacados.

– Gente, a Helena veio cear conosco – Aline anunciou, olhando, de olhos estreitados, para uma das meninas que deitara em três cadeiras na mesa.

A garota fez uma careta, retirando as pernas das cadeiras sobressalentes e limpando os assentos.

– Ahn... pode sentar – fungou a menina, entreolhando com o menino ao lado.

Não sabia se continuava rindo pela reação deles ou dava um tabefe na menina que nem se dignara a me olhar depois que sentei com Aline.

Sorri para a senhora adiante de mim.

– Vovó Willow – Aline afagou a mão dela, me olhando contente – a Helena está aqui.

A senhora virou o rosto em minha direção , apertando os olhos enrugados.
Segurei a mão de vovó. Aline assentiu, me incentivando.

– Olá, vovó.

Vovó sorriu, dando uma arfada.

– Helena... – a senhora devolveu um aperto quase imperceptível em minha mão – voltou pra casa, querida...

Senti minha garganta se embolar, enquanto lançava um olhar para todos que estavam ali.

– Voltei, vovó – murmurei.

Aline segurou meu braço, sorridente.

– Casa é onde a família está – entoou William, desviando do damasco que Aline jogou nele – ai, deixa de ser chata, sua mala.

– Helena vai achar que somos doidos – disse Aline, resmungando.

– Acho que ela já sabe, Aline.

Para minha agradável surpresa, aquilo bastou para que todos rissem, e atenção se dissipasse na sala.

A comida estava ótima, e as risadas pareciam fazer parte daquela família como os quadros faziam parte das paredes.

Esfaqueei um pedaço de peito de peru, quase me sentindo deslocada na atmosfera brincalhona e completamente maluca da casa.

Já tinha desviado de mais umas tantas uvas passas que William tentara jogar em Aline, ao que esta tentou revidar com um pêssego que quase o derrubou ao atingir sua testa. Aquilo estava ás vésperas de se tornar a Terceira Guerra Bruxa, e eu não conseguia parar de rir.

Quando uma das uvas pegou em mim, vi o garoto se encolher.

– Ah, não – ecoei – você não fez isso.

– Olha, vai pegar na vovó – William gargalhou, se escondendo atrás da nossa avó.

Quando vovó deu uma bengalada em sua cabeça, não segurei mais. Lágrimas me escorreram dos olhos quando me enverguei, chorando de tanto dar risada.

Dali para frente, tudo prosseguiu maravilhosamente bem. Eu não me lembrava, desde que me dava por gente, de estar num lugar tão agradável, nem de estar me sentindo tão satisfeita e feliz.

Quando chegou a hora de me despedir, senti meu peito se apertar.

Um a um, todos os meus primos e a vovó Willow me abraçaram, agradecendo pela visita e me deixando muito envergonhada e feliz.

Aline me acompanhou ate a porta, me dando um grande abraço.

– Obrigada, Helena – ela disse, afagando minhas costas.

– Pelo que? – dei de ombros, timidamente.

Aline deu risada, suspirando.

– Um dia você vai saber por que, garota – ela me encarou – não quer ficar mais um pouco?

– Adoraria – respondi – mas tenho uma coisa pra fazer ainda hoje.

Ela assentiu, me soltando e entrando em casa.

– Tudo bem. Tome cuidado... até mais.

Acenei para Aline, descendo a soleira.

– Até mais, Aline.

Não consegui tirar o rosto sorridente dela de minha cabeça, enquanto desaparatava.

____________O____________

O lugar permanecia quase deserto, como era típico da sua existência.

Foi fácil andar tranquilamente pelas lápides desgastadas ao meu redor.

Tinha recolhido algumas flores no caminho, e as carregava junto ao peito, enquanto olhava cada um dos jazigos, tentando localizar aqueles que eu procurava.

Enfim, achei-os, moldados em mármore branco, como que emergindo da terra escura, unidos numa única lápide, sem datas ou dizeres.

Richard Ogden Demeter Ogden

O soluço foi tão brutal e inesperado que quase me fez perder o ar.

Ajoelhei diante do túmulo, deitando um dos buquês que recolhera.

– Feliz Natal, papai... Feliz Natal, mamãe.

Senti meus olhos arderem.

Por que deveria segurar?

Foi ali que deixei as lágrimas escorrerem, desabando, no cemitério, toda a angústia e raiva que havia guardado dentro de mim, por tanto tempo.

O vento acariciou meu rosto, me fazendo erguer a cabeça.

E, junto com as folhas do chão, pareceu levar embora toda a minha tristeza.

Era como se um peso gigantesco tivesse me deixado. Senti-me aliviada.

Voltei a me levantar, olhando uma última vez as fotos em movimento de meus pais.

Mamãe me sorriu, assentindo. Papai também me olhou, com uma expressão de puro contentamento.

– Até mais – sussurrei, me afastando, e continuando a caminhar pelo corredor de lápides adiante.

Não foi difícil achar o outro túmulo que eu procurava. Embora fosse recente, tinha riscos e manchas que eu julgava não terem sido causados pelo tempo ou clima. O nome, escrito de forma grosseira, porém, se destacava em meio ás lascas de pedra que haviam sido arrancadas dali.

Lembrei do que Howard havia dito, quando me surgira, antes da visita dos Espíritos.

Eu poderia muito bem ter aproveitado uma oportunidade impar de despejar toda a mágoa que ainda havia em meu coração e minha alma.

Mas decidi fazer a escolha mais difícil... por que ela seria a única que me permitiria exorcizar os fantasmas do meu passado.

Senti o que restava daquilo deixar minha mente e meu corpo para sempre, me libertando eternamente da angústia, e deixando meu coração em paz, quando finalmente coloquei o buquê que restara na relva macia.

Não havia melhor época do que aquela para fazer o que fiz. E não podia ter tomado decisão melhor para acertar minha vida de uma vez por todas.

– Eu te perdôo...


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