Abrindo a porta , Letícia encontra a casa na alta escuridão. Ela tira as sapatilhas tomando todo cuidado como um ladrão em entrar no recinto e começa a caminhar nas pontas dos pés quando a luz da luminária da sala acende revelando uma velha senhora. A sua temida avó Emaci.

Só de ver aquele rosto enrugado com nariz de bruxa , cheio de rugas, com uma dentadura amarelada descuidada e pelos debaixo do queixo causavam arrepios na garota.

– ONDE É QUE VOCÊ ESTAVA, Letícia Okubo ? São onze horas da noite e eu estava ficando doente de preocupação. Nem a Melissa, nem você estavam aqui para tomarem conta de mim. Pelo amor de Deus, Letícia , será que não pode voltar para casa como combinamos , depois de seu expediente na agência? Você sabe como eu sofro de pressão alta por você?

Letícia detestava olhar para avó. Era grande e corpulenta , com uma barriga que se projetava agressivamente à frente de seu corpo e gostava de ocupar todo o espaço do sofá para que ninguém sentasse a não ser ela . Ela usava roupas rasgadas ou furadas nas costuras e nas barras. Usava camisas largas com estampas de políticos corruptos ou de lugares que ela já havia visitado no passado distante . Letícia não gostava nem sequer de ouvir a voz de bruxa velha dela. Ou sentir o cheiro exagerado de lavanda que ela usava no corpo para disfarçar o seu cheiro de idosa.

–Boa noite , vovó ! Desculpe, isso não irá acontecer de novo. E poderia dar licença que preciso tomar meu banho.

Mas a senhora Emaci não se importava com os desejos da neta. Tudo era ela, ela , ela e ela. E Emaci agarrou o braço da neta quando Letícia ia ao banheiro.

–Letícia ,eu não terminei de falar com você. –Lá vinha o sermão, pensou ela olhando para o chão de madeira sentindo repulsa em sentir aquela mão cheia de unhas que arranhavam a sua pele e o toque gelado. -Você acha que isso é horas para chegar em casa?! Você entrou numa gangue por acaso ? Quem era aquele homem que ofereceu carona à você ? Cuidado ! Ele tem idade para ser seu irmão mais velho , Letícia .Quem educou você para ser assim desse jeito?

– Ele é um amigo em comum do pai do Alex , o menino que cuido, vó . E eu não entrei numa gangue ... – mas bem que eu gostaria para ficar bem longe de você, pensou.

– Amigo ?! - Ela esbugalhou os olhos e mostrou a língua para a neta. – Você não me engana , Letícia ! Aquele lobo mau de longe vai ser seu amigo. Não gostei da energia que ele emanava quando estava te acompanhando até aqui em casa.

Então você nos viu?!

Emaci sempre conseguia surpreender ela quando não queria. Também ela era a maior bisbilhoteira e fofoqueira da cidade depois da Neném Botelho.

Letícia não deixou Emaci terminar de falar, ela puxou a mão da velha e saiu daquele cômodo andando até no banheiro. Não se esquecendo de trancar a porta para que a bruxa não invadisse o seu momento de privacidade com o seu anjo - gato.

Ela despiu- se de sua roupa jogando no cesto de roupa vazio. Ainda bem que lavei e passei as minhas roupas para trabalhar , lavei a louça e deixei comida para a vovó , levei o lixo para fora e paguei as contas. E abriu a torneira do chuveiro buscando refugio no barulho da água quente para acalmar as suas dores.

Letícia não sentia orgulho em ter sido criada por Emaci. Durante a infância sempre imaginava ter uma avó imaginaria guerreira e forte como a Dona Vitória, avó de Felipe e Pedro.

Pedro...

Tão lindo. Tão cheiroso . Com um sorriso farto , feito sorriso de criança que nunca vai crescer. Um homem que parecia tão agradável, simpático, compreensivo ...

Parecia até um príncipe encantado.

Mas que absurdo !, disse uma voz chata idêntica a de sua avó , ele parece mais um lobo atraindo o cordeiro.

Xô, sai daqui ! disse ela jogando no lixo imaginário aquela voz inferior .

Por que será que eles não se conheceram antes? Durante a infância ou na escola?

Por quê?

Letícia ainda conseguia sentir os braços dele envolvendo o seu corpo. Mas como isso é possível ?, pensou com o coração pulsando em seu peito.

Enxugou seu corpo depois do banho na sua toalha rosa que estava estendida no gancho de toalhas. Colocou os seus chinelos limpos e saiu indo para o seu quarto.

Mas foi acompanhada pelo gato que fazia companhia para as duas chamado Faustão de pelagem branca e manchas alaranjadas que haviam adotado da ONG de animais Belarrosa.

Abriu a porta do quarto se lembrando dos momentos calorosos bons vividos à poucos. Seu quarto era pintada de azul celeste com uma mobília simples e entalhada em madeira, e tinha uma janela que dava uma vista do seu quintal e da cidade . Era perfeito . Letícia adorava ouvir o barulho da movimentada Belarrosa . Não tinha muitas coisas matérias , apenas o essencial como a estante de livros que ficavam na sua mesa de estudo.

Ela se sentou na penteadeira e começou a pentear os seus cabelos lisos e se recordando das coisas boas que havia acontecido nesse Natal.

A felicidade que Letícia sentia era naquelas coisas simples da vida como o jantar, saborear os doces pela primeira vez , sentir o calor acolhedor da família Santarém e Beraldini e nos braços de Pedro.

–ATCHIM! – expirou bem alto a Dona Emaci.

–Saúde. – Letícia virou a cabeça para responder .

Foi naquele momento em que ela olhou pela janela e viu Melissa, a sua prima e melhor amiga de infância dela saindo do fusca do Pedro. Com uma cara carrancuda de dar medo.

Letícia colocou a mão na janela , com medo, pensando que Melissa fez algum mal ao Pedro. O que seus olhos viram foi que ele estava abalado , machucado por alguma coisa que Melissa disse.

Mas o que poderia ser ? Só tinha que ser uma possibilidade : se afastar de mim!

Letícia foi dominada pela tristeza.

–Por quê ele tem que se machucar tanto por minha causa , Fausto? - perguntou para o gato que dormia tranqüilo em sua almofada da cama. -Ele não merecia me conhecer! Eu devo ser totoca da cabeça para deixá-lo entrar em meu coração. E ele me deixar entrar no dele.

Vestiu o seu pijama , e quando ia apagar a luz de seu quarto acaba tropeçando no tapete e seu livro Morro dos Ventos Uivantes cai revelando um cartão da loja do Pedro com o número de seu celular e uma mensagem que deixou a sua noite de sono um pouco melhor.

Eu quero ser seu amigo palhaço

Que não se importa com as pessoas que nos vê na rua;

Abraçando-nos ou rindo ...

Quero te levar ao parque;

Mostrar toda a nossa cidade para tu

Quero quebrar as regras com você

Levar –te para tomar um banho no riacho...

Simplesmente não importo com as pessoas.

Mesmo que seja a Melissa ou sua avó.

Boa noite.

Letícia não pode evitar . Se sentiu aliviada. Riu, tendo um ataque de risos, apoiando a cabeça contra o colchão em suas costas, a tensão que sentia aos poucos se cedendo.E então ela fez a única coisa que poderia fazer...